O estereótipo masculino e feminino no cinema mainstream

Por Jéssica Agostinho e Kleyton Steinbach*

 

Já faz algum tempo que o filme começou. O protagonista masculino, provavelmente um cara boa pinta, já foi apresentado. Talvez em uma abordagem convencional, mostrando sua rotina da manhã, como acontece, por exemplo, em Eu, Robô (2004). Já descobrimos como ele é durão ou dotado de habilidades específicas. Ele é O Cara.

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1- Em “Eu, Robô”, acompanhamos a rotina matinal do detetive Del Spooner, recheada de malhação e músculos bem torneados.

  Olhar misterioso, close e travelling: No momento “ideal” nos é apresentada a mulher. Idealizada, é claro, a personagem feminina pode, muitas vezes, ser a única do filme, ou pelo menos a única com alguma relevância. Assim que aparece, quase que como um instinto, imaginamos como ela e o rapagão do começo vão não apenas se conhecer, mas ter um relacionamento. Porque é essa a função dela nesse tipo de narrativa: fazer funcionar o necessário, mas não tão importante, arco romântico.

Não basta o protagonista homem ser a imagem do heroísmo e ter a capacidade de derrotar dezenas de capangas com aparente facilidade, afirmando sua virilidade com a sobreposição da força sobre outros homens. É preciso também que a masculinidade seja reafirmada baseando-se no seu sucesso com as mulheres. Nesse sentido, a esquemática é semelhante ao mundo animal. Há o duelo entre dois machos e o vencedor terá os louros da vitória, acasalando com a fêmea. E tal qual acontece no mundo selvagem, o personagem homem não requer qualidades no que diz respeito a uma personalidade complexa, ele não precisa de níveis sofisticados de inteligência ou sensibilidade. Sua máxima é a força e a violência. O suficiente para atrair a mulher e para que esta sempre fique com o melhor. A disputa pode se dar, por vezes, não no campo do visível e direto, mas do simbólico. Em Os Infiltrados (2006), o policial infiltrado Billy Costigan (Leonardo DiCaprio) e o policial corrupto Colin Sullivan (Matt Damon), inimigos que tardam a se encontrar, duelam simbolicamente através da psicóloga Madolyn (Vera Farmiga), que dorme com ambos. Quer maior tapa na cara do que transar com a namorada do seu rival?

A mulher, por sua vez, é apresentada de maneira condizente com o padrão de beleza vigente. Acima de tudo, ela é jovem. Isso é comprovado pelo artigo publicado na Vulture, intitulado  “Leading Men Age, But Their Love Interests Don’t” (Astros Envelhecem, Mas Seus Pares Românticos Não).  No artigo, verificamos a diferença elevada de idade entre alguns dos atores mais bem sucedidos de Hollywood e as atrizes com quem contracenam. Os casos mais acentuados acontecem com Liam Neeson e Olivia Wilde em Third Person (2013), onde a diferença de idade entre o casal é de 32 anos, e com Richard Gere e Laetitia Casta em Arbitrage (2012), com 29 anos de discrepância.

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2- Liam Neeson e Olivia Wilde: 32 anos de diferença. Clichê do ‘amor verdadeiro’ ou padronização da beleza?
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3- Richard Gere e Laetitia Casta: 29 anos de distância.

Além de estarem em uma faixa etária entre 20 e 35 anos, em média, essas mulheres são majoritariamente brancas, magras e ícones do que a sociedade considera belo, ainda que não consigam manter um padrão humanamente impossível em tempo integral. Observando o link, podemos ver que algumas dessas atrizes e modelos são expostas ao ridículo de uma comparação descabida, o clássico “com e sem Photoshop”, carregando o fardo de serem absolutamente lindas o tempo todo. Não há espaço para a reflexão acerca da possível normalidade dessas “estrelas”, onde seus corpos não diferem tanto assim dos corpos cotidianos das mulheres “reais” (ainda que todas permaneçam magras), mas há espaço apenas para a reafirmação do estigma: o tempo dessas mulheres já está acabando. Tempo esse que, para os astros masculinos é muito mais duradouro e livre de cobranças, havendo a possibilidade de simplesmente envelhecerem com pouco julgamento.

Estando em consonância com os padrões físicos, a personagem feminina também deve seguir um regimento de seu comportamento e de sua influência na narrativa. Podemos relembrar alguns perfis básicos que encontramos facilmente nos filmes blockbusters ou da indústria cultural. Um deles, mais antiquado de certa forma, consiste na mulher “de família”, casada, de boa moral e dedicada que lamenta e espera o marido ausente. Há de se refletir que a ausência desse marido não é por motivos que poderiam ser considerados banais ou negligentes: ele está, normalmente, envolvido com algo muito importante, onde ela – e a família – não possuem espaço de inserção. Não é nada que ela entenderia ou pudesse ajudar, ficando, constantemente, fadada ao rótulo de “chata”.  Um exemplo a ser citado é Pulp Fiction (1994). Butch (Bruce Willis) está focado em resolver seus problemas com Marsellus Wallace (Ving Rhames) enquanto sua companheira Fabienne (Maria de Medeiros) se limita a espera-lo impacientemente e cheia de preocupações em um quarto de hotel, causando-lhe ainda mais problemas ao, por exemplo, esquecer o relógio de Butch (na família há gerações) em casa. Ela configura um claro exemplo de mulher que não teria capacidade para se envolver com as questões mais importantes do homem e se limita a lamentar sua ausência.

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4- Maria de Medeiros como a frágil e irritante Fabienne.

Em outros filmes identificamos um diferente perfil: o da mulher que, por algum motivo, adentra na ação/aventura propriamente dita e se estabelece como um estorvo, o elo fraco que precisa ser salvo a todo tempo. Não há capacidade, força ou independência para auxiliar o homem na resolução dos problemas importantes. É apenas mais um fardo somado à necessidade dele de salvar a si mesmo e o mundo. Sua introdução nos acontecimentos pode se dar por duas vias: a mulher se intromete de maneira inconveniente (o clássico “fica no carro”- que não é obedecido) ou é usada pelo vilão como objeto de troca ou ameaça. No segundo caso, um exemplo é Homem Aranha (2002), onde Mary Jane (Kirsten Dunst) é sequestrada pelo Duende Verde (Willem Dafoe) como uma ameaça ao herói (Tobey Maguire). A questão colocada é uma suposta fragilidade feminina que faz com que em diversas ocasiões a mulher deva ser salva pela virilidade masculina.

Há ainda filmes que sugerem uma possível emancipação mas que, se analisados um pouco mais a fundo, a subalternidade da mulher torna-se evidente, como em tantos outros. Podem ser obras onde a representação tende a ser um pouco mais atualizada do que a esposa aflita, contribuindo para o estereótipo da “mulher moderna”. Essas mulheres são estudadas, inteligentes e bem sucedidas, mas, ainda assim incompletas. Contudo, a completude não tardará a chegar, pois o protagonista masculino há de resolver esse empecilho romântico. Em Eu, Robô (2004), Susan Calvin (Bridget Moynahan) é uma brilhante e bem sucedida cientista que se vê incapaz de resolver o mistério sobre o aparente suicídio de seu chefe, mistério esse resolvido pelo policial durão Del Spooner (Will Smith), com quem, não por acaso, ela desenvolve um affair.

Uma outra possibilidade de emancipação “falseada” pode ser encontrada nas personagens femininas de alguns filmes de ação que protagonizam os embates de corpo a corpo e dominam técnicas de armamento e luta. São personagens que, a primeira vista, parecem independentes e transgressoras mas que, em certa medida, ainda carregam marcas de diferença de gênero. Um estudo realizado com os filmes de ação mais rentáveis de 1991 a 2005, por Katy Gilpatric, pesquisadora e professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade de Kaplan no EUA, mostra que “Mais de 58% das personagens femininas violentas eram retratadas em um papel submisso em relação ao herói do filme, e 42% estavam romanticamente envolvidas com ele. A média das personagens femininas violentas era jovem, branca, com ensino superior e não era casada. Essas mulheres envolvidas em tipos masculinos de violência (luta contra outros homens e estranhos na maior parte do tempo, freqüentemente usando armas e causando alto nível de destruição), ainda mantém estereótipos femininos graças ao seu papel submisso e envolvimento romântico com o homem protagonista.” Exemplo disto pode ser relembrado em Matrix (1999), onde a personagem Trinity (Carrie-Anne Moss), que detém várias habilidades físicas e intelectuais, bastante decidida e pró-ativa, tem como grande propósito de sua vida – como afirma o próprio Oráculo – amar o escolhido, Neo (Keanu Reeves). Ou seja, sua existência na narrativa ainda é atrelada a partir da relação com um homem-herói.

Porém há ainda alguns filmes que poderiam se enquadrar dentro do Bechdel Test (um tipo de teste pelos quais os filmes deveriam passar para sabermos quais valem a pena ser assistidos numa perspectiva feminista, no caso, criado por uma personagem lésbica de quadrinhos), que consiste em: 1- Ter pelo menos duas personagens femininas; 2- Que falem uma com a outra e 3- Sobre algo que não seja homens. Um exemplo possível faz parte de um dos gêneros que talvez mais estereotipem a mulher: o terror. A obra em questão é Silent Hill (2006). No filme, inspirado no jogo de mesmo nome, vemos mulheres que interagem com mulheres para resolverem seus problemas, sem apoio nenhum de qualquer personagem masculino. Rose da Silva (Radha Mitchell) leva sua filha Sharon (Jodelle Ferland) a Silent Hill, uma cidade abandonada, a contragosto do marido, para tentar resolver os problemas de sonambulismo da garota. O marido, Christopher (Sean Bean), cancela o cartão de crédito da esposa, numa tentativa inútil e frustrada de impedi-la. Ele é colocado em uma posição que, em geral, como já citado, se reserva às mulheres: a espera impotente e angustiada. O roteiro, além de trazer questões relacionadas ao feminicídio, tem ainda outras boas escolhas no que se refere às personagens femininas, como, por exemplo, a policial Cybil Bennett (Laurie Holden), que segue mãe e filha até Silent Hill e é jogada para dentro do horror. Seria fácil e óbvio colocar aí um policial homem que salvasse Rose nos momentos necessários, mas o que temos, no entanto, é uma mulher forte e corajosa. Até mesmo a vilania está nas mãos de outra mulher, a fanática Christabella (Alice Krige), que lidera uma seita religiosa composta inclusive por homens. Os homens, em Silent Hill, são apenas acessórios e as decisões são tomadas por mulheres.

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5- Cena de “Silent Hill”: a policial Cybil Bennett e a protagonista Rose da Silva.

Se analisarmos os filmes citados nesse texto, poderemos entender que este aborda um certo tipo de cinema – o mainstream, blockbuster, dominante. Existiriam inúmeros outros exemplos de filmes nos quais as questões de gênero são tratadas de maneira mais lúcida, em outros nichos e cinematografias. Ou, ainda, em obras de menor orçamento. Porém, é esse cinema mainstream que possui maior inserção e influência no imaginário popular, por ser mais acessível, e que é feito por uma indústria dominada por homens. Em agosto desse ano, o portal IG publicou uma série de matérias, escritas por Luísa Pécora, sobre a participação das mulheres no cinema. Em entrevista, a pesquisadora Paula Alves afirmou: “É um assunto ingrato porque a primeira coisa que você ouve é que não existe mais preconceito, que as mulheres já estão em todos os lugares […] O primeiro passo é ver que não, não estão. Há muito trabalho pela frente.”. A situação é comprovada a partir dos números levantados: nos 250 filmes de maior bilheteria dos EUA em 2012, apenas 18% dos diretores, produtores, roteiristas e diretores de fotografia eram mulheres. E o cinema brasileiro não difere muito da tendência, já que apenas 15,37% dos filmes lançados entre 2001 e 2010 foram dirigidos por mulheres.

Em uma indústria na qual existem pouquíssimas mulheres, dificilmente se desenvolverá um olhar mais feminino, ou ainda melhor, mais feminista e igualitário. Em entrevista ao IG, a atriz Miranda Otto diz: “Tenho fome de bons papéis femininos – tanto de interpretá-los quanto de assisti-los. Mas muitas vezes parece que eles são escritos apenas para mostrar que os homens do filme não são gays”.

Enquanto as classes e grupos oprimidos não chegarem aos locais de decisão pouco mudaremos a realidade dominante. No caso das mulheres no cinema, a questão não é tão simples quanto sofrer preconceito por ser uma diretora, roteirista ou produtora mulher. A questão é que as mulheres necessitam se emponderar para chegarem a esses espaços, em uma sociedade que não incentiva esse emponderamento. Mas seguimos lutando para ocuparmos todos os espaços que nos são de direito, da política ao cinema, do cult ao pornô.

 

* Jéssica Agostinho é estudante de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos.
* Kleyton Steinbach é estudante de Pedagogia na Universidade Federal de São Carlos.

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Referências:

“Por trás das câmeras, mulheres lutam por oportunidades iguais em Hollywood”.  Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2013-08-13/por-tras-das-cameras-mulheres-lutam-por-oportunidades-iguais-em-hollywood.html

“Retomada amplia espaço, mas mulheres ainda são minoria no cinema brasileiro”. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2013-08-14/retomada-amplia-espaco-mas-mulheres-ainda-sao-minoria-no-cinema-brasileiro.html

“Com poucos e piores papéis femininos, Hollywood “esquece” mulheres da plateia”. Disponível em:  http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2013-08-15/com-poucos-e-piores-papeis-femininos-hollywood-esquece-mulheres-da-plateia.html

“Filmes de ação americanos ainda retratam as mulheres como o sexo frágil”. Disponível em: http://www.shoujo-cafe.com/2010/04/filmes-de-acao-americanos-ainda.html

“Homem mais velho que a parceira? Natural!”. Disponível em: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/04/homem-mais-velho-que-parceira-natural.html

“Atrizes valem pela beleza e juventude”. Disponível em: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2010/03/atrizes-valem-pela-beleza-e-juventude.html

“Cinema que exclui as mulheres”. Disponível em: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2011/02/cinema-que-exclui-as-mulheres.html

“Leading Men Age, But Their Love Interests Don’t” (Astros Envelhecem, Mas Seus Pares Românticos Não). Disponível em: http://www.vulture.com/2013/04/leading-men-age-but-their-love-interests-dont.html?mid=twitter_vulture

“Mulheres no cinema brasileiro”. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/13661/9512

“Bechdelt Test”. Disponível em: http://bechdeltest.com/

 

 

 

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