Cinema e Estado

As relações entre Estado e Cinema no Brasil, no que diz respeito ao surgimento de uma legislação normalizadora da atividade, fazendo com que a mesma deixasse de ser regulada apenas pelas leis do mercado, remontam à instauração do governo de Getúlio Vargas, em 1930. A idéia de moderno e o esforço na constituição de um mercado e do desenvolvimento industrial difundida pelo Estado valorizaram os instrumentos de difusão cultural, criando novas relações entre cinema e poder. A intervenção ocorreu nos planos da produção, distribuição, importação e exibição, regulando a atividade e atendendo, em certa medida, as reivindicações de diversos setores, organizados, então, sob a forma de entidades corporativas (diferentemente do que ocorria antes da mediação do Estado, período no qual os interesses particulares dos envolvidos eram colocados acima do desenvolvimento da ocupação efetiva do mercado pelo filme nacional).

Entre as normas que passaram a regulamentar a atividade cinematográfica, a partir de 1930, estava o controle das taxas alfandegárias de importação de filmes tanto virgem como impresso (o que permitia a existência do filme brasileiro sem modificar a estruturação do mercado, já que atuava também sobre o filme estrangeiro) e a obrigatoriedade de exibição do filme nacional no programa, que pretendia claramente a defesa da exibição do filme sancionado pelo Estado, o Filme Educativo, que em 1937 passou a ser produzido pelo INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), primeiro órgão estadual de produção cinematográfica.

As medidas instauradas pelo governo de Getúlio Vargas continham os princípios de grande parte das medidas que viriam a ser instauradas ao longo dos anos posteriores, em consonância com o desenvolvimentismo do Governo de Juscelino Kubitschek e o posterior nacionalismo e valorização da tradição cultural brasileira dos anos da Ditadura Militar.

Os realizadores cinematográficos procuraram interferir no processo de modernização do setor empreendido pelo Estado Ditatorial por meio do INC (Instituto Nacional de Cinema) e da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S. A), aproveitando-se de aspectos ideológicos de viés nacionalista comungados pelas lideranças da ditadura militar. O meio cinematográfico defendia o aprofundamento da intervenção no mercado a fim de modificar as nossas frágeis estruturas produtivas. Desta forma, desde o final dos anos 1960 e com mais intensidade ao longo da década de 1970, a produção cinematográfica procura afirmar-se como setor industrial integrante da economia do país, utilizando-se de órgãos como os já citados INC e Embrafilme.

Em consonância com a política institucional centralizadora e nacionalista do Estado surge em 1966 o INC e em 1969 a Embrafilme. Esta última tinha inicialmente a função de promover a distribuição e a divulgação do filme brasileiro no mercado estrangeiro, mas depois de progressivas mudanças no seu alcance, ela passa a intervir diretamente no mercado, assumindo a responsabilidade pela coordenação das atividades do setor cinematográfico em sua totalidade a partir de 1975. A Embrafilme aliava o nacionalismo dos cineastas de esquerda egressos do Cinema Novo com a política cultural do Estado, utilizando-se do fator comum entre ambos os grupos, a promoção e a afirmação da identidade cultural nacional[1].

Esta legislação apesar de existir desde os anos 1930, como já citado anteriormente, tomou impulso apenas nos anos 1960 com a ação do INC, ela foi ainda bastante ampliada com o surgimento do Concine (Conselho Nacional de Cinema) em 1973, que chegou a fixar a cota obrigatória de exibição do filme nacional em 112 dias no ano de 1977, determinando posteriormente a obrigatoriedade de exibição na semana subseqüente de lançamento, “caso seu faturamento [do filme] seja igual ou superior à média semanal de faturamento da sala em que está sendo exibido”[2].

Nota-se que desde as medidas instauradas por Vargas até o surgimento da Embrafilme, há a priorização da atividade do produtor em detrimento da verdadeira ocupação do mercado cinematográfico pelo filme nacional. Apesar da obrigatoriedade de exibição e do surgimento da Embrafilme ter ocorrido sob a tutela da divulgação e da distribuição de filmes brasileiros não se pretende uma nova articulação no que diz respeito à distribuição desses filmes no mercado interno e sua consolidação. A permanência do produto estrangeiro e a facilidade da entrada do mesmo no mercado brasileiro se mantiveram mesmo com a existência da legislação. Além disso, no que diz respeito à Embrafilme considera-se que, de certa forma, não havia um interesse expressivo na divulgação e na exibição do filme brasileiro em mercado nacional, mas sim o de voltar-se para o reconhecimento do produto no exterior.

A legislação “paternalista” de financiamento e exibição de filmes brasileiros obteve resultados, haja vista a ocupação do mercado durante a década de 1970 ter atingido até 30% ao ano. [3] Com o fim da Embrafilme e a crise da gestão de Luís Collor de Mello na presidência do país, todas as políticas de incentivo à atividade cinematográfica cessaram  A retomada da produção ocorreu ao longo dos anos 1990, e com ela o surgimento de uma nova legislação, elaborada novamente priorizando a produção de filmes.

O novo conjunto de leis equilibra em certa medida, a relação de domínio exercida pelo Estado em relação à atividade. Nos casos citados anteriormente, o Estado centralizava a produção e seu conteúdo, de forma que os realizadores produziam de acordo com a demanda do governo, a fim de garantir o financiamento das obras. Atualmente, a relação de concessão de benefício financeiro não ocorre necessariamente de forma direta, a partir da doação de recursos pelo Estado.

Com a Lei 8.313, de 23 de dezembro de 1991, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), através do Fundo Nacional de Cultura (FNC) e do Incentivo a projetos culturais, desenvolve-se com o intuito de incentivar a produção cultural em sentido amplo, a partir da doação de recursos para a elaboração do produto ou do mecenato, no qual parte do capital privado investido em produção cultural é abatido do Imposto de Renda pago pela empresa. No que diz respeito à produção audiovisual, e mais especificamente ao Cinema, ao se submeter um projeto à aprovação da lei, não há mais a necessidade de atender às demandas de conteúdo do Estado, de forma que o produtor torna-se relativamente mais independente da tutela estatal, no que diz respeito a esse aspecto.

Da mesma forma que, quando da existência da Embrafilme havia uma produção desvinculada do capital estatal, produzida exclusivamente com capital privado, de baixo custo e que tinha como prioridade o mercado exibidor nacional, tendo sua inserção facilitada pela legislação protecionista caracterizada pela reserva de mercado na forma da “cota de tela”, atualmente há também produtores que não necessariamente utilizam-se dos benefícios oferecidos pela legislação a fim de produzirem suas obras. A vinculação desses novos produtores com capitais de exibidoras e distribuidoras estrangeiras, que por vezes ocorre, gera uma nova adaptação de conteúdo e estética agora em relação a outros países. Dessa forma, o produtor independente está ligado de alguma forma a uma demanda estética e de conteúdo e que em grande parte das vezes não é a do público.

Bibliografia

ABREU, Nuno César. Boca do Lixo – Cinema e classes populares. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.

GATTI, André Piero. Embrafilme e o cinema brasileiro.São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2007.

MATIAS-PEREIRA, José. Curso de Administração Pública: foco nas instituições e ações governamentais. São Paulo: Atlas, 2009.

RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais – Anos 50/60/70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983 p. 15-48/ 117-158.

SMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: AnnaBlume, 1996 p. 92-130.

Maria Cristina Couto Melo é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


[1] RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais – Anos 50/60/70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 117-158.

[2] ABREU, Nuno César. Boca do Lixo – Cinema e classes populares. Campinas: Editora da UNICAMP, 2006. p.20

[3] RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais – Anos 50/60/70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 136.

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