1. Introdução
O filme O Homem Urso (2005) do renomado diretor Werner Herzog na verdade começa em vídeo, com um enquadramento perfeitamente distribuído. Feito por Timothy Treadwell durante seus últimos verões no Alaska, o plano apresenta dois ursos, um ao extremo esquerdo e outro a direita, uma montanha ao fundo e, saindo de quadro a direita, uma floresta. Timothy entra caminhando e se posiciona agachado à direita em primeiríssimo plano para completar o quadro.
Sua chegada parece lembrar a onipresença do homem mesmo em um ambiente inóspito e selvagem como aquele. A figura do humano, quase sempre omitida quando se trata de filmes ambientais, vem à tona e coloca-se como o principal elemento do plano, chamando a atenção para si através da fala.
Harmonia, auto-afirmação e morte, temática do primeiro discurso de Treadwell, são assuntos que vão se repetir durante o resto do filme e serviram de pontos de partida para esse estudo que busca descobrir e entender as contradições cercadas ao redor dessa figura mística e trágica.
Denominando-se o “Guerreiro Bondoso”, Treadwell utiliza a metáfora do documentário direto americano (mosca na parede) para definir sua interação com os ursos: observador, evitando a interferência, apenas o fazendo em caso de perigo de vida. No entanto, não é o que veremos na continuidade do filme de Herzog, pois a interação com os ursos e a invasão dos espaços destes são as principais críticas ao trabalho de Treadwell.
Durante esse plano, afirma ainda que “será um deles (ursos)”, ao mesmo tempo em que alega poder “cheirar a morte em seus dedos”. O personagem/cineasta demonstra e discursa constantemente sobre os perigos de sua aventura, sua vulnerabilidade sem armas, da força dos ursos (“Eles podem morder, decapitar, cortá-lo em pedacinhos”), e principalmente de como tem que intervir para sobreviver. Essa dualidade de amor e perigo é outro fator a ser desenvolvido nesse estudo.
Werner Herzog é muito feliz ao escolher esse como o plano inicial de seu filme, mostrando a problemática que guiará o documentário. Durante esse longo plano um momento específico chama atenção e acontece rapidamente, quase despercebido. Esse instante é o que poderíamos chamar de punctum, fazendo uma analogia a denominação de Roland Barthes à fotografia. “Picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge”[1].
Um plano complexo como esse poderia ter vários detalhes especiais, mas para meu trabalho, o punctum é a pequena parada que Treadwell dá durante sua fala. Nesse breve intervalo ele olha para trás visando o urso, dando a entender que observa o animal, contudo esse tempo estratégico parece acontecer justamente para que o ativista lembre-se de seu texto previamente planejado e retome o fluxo de pensamento. A meticulosidade desse plano será importante para o desenvolvimento do texto mais adiante.
Homem Urso é um documentário sobre um documentarista, realizado por um terceiro (Herzog), mas que se torna praticamente uma autobiografia na medida em que a maioria das imagens que aparecem no filme (a não ser as fotografias) são feitas pelo próprio Treadwell. Em outras palavras, as imagens feitas por Timothy vivo são as mesmas utilizadas depois de sua morte por Herzog. Por esse motivo o estudo acontecerá paralelamente/simultaneamente, discorrendo sobre as imagens de Timothy, mas sem deixar de analisar os recursos escolhidos por Herzog e até tomando depoimentos deste para auxiliar na problemática.
O trabalho consiste, portanto, em tentar entender o paradoxo existencial do personagem principal através da leitura de Werner Herzog, considerando a câmera como a única testemunha da tragédia. Buscarei explicar também o papel preponderante desse instrumento no desenrolar da história, assim como a hipótese final que seria “A câmera cinematográfica como instrumento de suicídio em Homem Urso”.
2. Desenvolvimento
2.1 – Crise de Identidade: A busca pela Animalização/Personificação
Depois de treze anos vivendo entre animais selvagens no Alaska durante o verão, Treadwell e sua namorada, Amie Huguenard, foram atacados e mortos por um urso em 2003. Sua tragédia ganhou âmbito nacional e chamou a atenção de Werner Herzog que juntou as mais de 100 horas de material registrado por Timothy em seus últimos anos de visita e realizou O Homem Urso em 2005.
Herzog entrevista amigos, familiares e pessoas que trabalharam ou conheciam a causa de Treadwell e o discurso é praticamente unânime: todos sabiam que o ativista se arriscava e que o acidente era questão de tempo.
“Êxtase humana e turbulência interior sombria. Como se ele tivesse um desejo de abandonar os confins de sua humanidade e se unir com os ursos”. É assim que Werner Herzog define, em sua narração no começo do filme, as imagens de Timothy Treadwell. O cineasta acerta ao acreditar que O Homem Urso vai além e transcende a barreira de certo/errado, louco/são, se tratando de um paradoxo existencial muito maior, levantado por Willian Shakespeare no século XV e atualmente desgastado, mas não ultrapassado: ser ou não ser, eis a questão.
Os trechos das cartas escritas por Timothy, lidas por Mare e Marcie Gaede, amigos próximos dele, demonstram essa dualidade interior. Em uma passagem Treadwell diz que “queria mutar para um animal selvagem”, enquanto que em outra carta afirma que “a morte é a melhor opção”. Sua necessidade de estar (e não só estar, mas co-existir) com os ursos era vital para sua existência durante todos esses anos que freqüentou o Parque Nacional de Katmai. Em suas imagens, Treadwell aparece freqüentemente descumprindo leis que estipulam distancias mínimas entre pessoas e animais, chegando diversas vezes a tocar no focinho de alguns ursos ou até mesmo nadar entre eles.
As raposas também eram companheiras permanentes no solitário cotidiano do ativista ambiental. Essa interação homem-natureza proporcionou imagens inacreditáveis, únicas e inesperadas. No antepenúltimo plano do filme, por exemplo, vemos Treadwell se afastando da câmera montada fixa no tripé, seguido de duas raposas. Ao som de “Coyotes”, música cantada pelo piloto Sam Egli, Timothy e as raposas avançam pela pradaria se perdendo no horizonte.
Em outro plano vemos as patas da raposa em cima da barraca de Timothy, que grava tudo com grande interesse e divertimento. Egli, em entrevista, lembra que Treadwell buscava montar sua barraca entre duas tocas de raposa e freqüentemente captava imagens com suas “amigas”, além de dialogar com elas.
Durante uma dessas “conversas”, Timothy conta a “Timmy” (abreviatura de seu próprio nome), como haviam se conhecido há 10 anos e de seus problemas pessoais com alcoolismo. Nesse plano fantástico, em que Treadwell perto de sua barraca acaricia a pequena raposa, que descansa em cima da tenda, podemos destacar dois pontos chaves para esse estudo: a questão de personificação e auto-afirmação de importância.
A solidão e a aproximação aos ursos e raposas levaram Treadwell a nomear todos os animais que conviveram com ele. Sargento Brown, Mickey, Saturno, Mr. Chocolate, entre tantos outros eram considerados seus grandes amigos (as). Timothy tenta assim aproximá-los a sua realidade, ao mesmo tempo em que tenta uma personificação (ou animalização) colocando seu próprio nome na raposa.
Além dessa mutação nominal, que ele já havia tentado ao trocar seu sobrenome e terra natal quando morava na Califórnia, Treadwell denomina “Timmy” o chefe das raposas e dos ursos. Ao nomear a raposa, que leva seu nome, líder dos animais conseqüentemente se auto-afirma como o soberano daquela região.
Quando comenta sobre seus problemas do passado, Timothy destaca a importância dos animais em sua reabilitação e de sua promessa: parar de beber para ajudar os animais desprotegidos daquela região. Entretanto, conforme aponta a narração de Herzog, o parque é protegido pelo Governo Federal dos EUA e os visitantes/caçadores são controlados e monitorados.
Tamanha contradição pode ser explicada através da teoria de Freud sobre a defesa do ego. Segundo Freud a racionalização se trata da elaboração de desculpas para esconder o real motivo de um comportamento. Portanto Treadwell necessitava da companhia dos animais mais que eles da proteção do ativista.
2.2 – Repreensão e Busca por Resistência
A incompreensão, revolta e fuga da civilização não são entendidas e respeitadas pela maioria das pessoas, que acreditam estar vivendo em uma sociedade livre, democrática e verdadeira. Todos nós nascemos nessa estrutura de leis, códigos, obrigações e deveres, seja nos EUA ou em Cuba, mas nem todos querem estar sob o controle desta. Nesse sentido, Treadwell tenta fugir dessa realidade, primeiro através do álcool e da maconha, e depois drasticamente através de suas viagens para o Alaska onde passava a estação quente convivendo com ursos, raposas em um quase completo desprendimento do mundo social.
Entretanto, ao mesmo tempo em que tenta fugir dessa existência burocrática e opressiva, Treadwell busca, através da câmera, imortalizar-se, registrando imagens impares dele com os animais selvagens, nadando, tateando, conversando, enfim, interagindo com a ação, não como mero espectador ou documentarista, mas um ser agente.
Na tentativa de ajudar acaba, ao ver de ambientalistas e funcionários do parque entrevistados por Herzog, prejudicando os animais que se acostumam à convivência com humanos. Timothy teria ultrapassado a “linha invisível” que divide os ursos e os homens, arcando com sua vida.
Assim como Werner Herzog intervém em seu texto fílmico, quando Treadwell critica o desequilíbrio e caos da natureza, para discordar a respeito do ponto de vista de Timothy, também faço aqui um breve parêntese.
Sven Haakanson, nativo da região e curador do museu do Parque nacional de Katmai, acusa Treadwell de faltar com respeito à cultura nativa ao ultrapassar tal linha “respeitada” durante séculos. Apesar de concordar que existiu um excesso da parte de Treadwell, a hipocrisia na fala de Haakanson e de outras autoridades parece representar a ignorância causadora de outro caos, este artificial construído com o esforço do homem: o ambiental.
Em minha opinião, a única linha existente é a que divide o território imposto e delimitado aos ursos do resto do mundo “pertencente” aos humanos. Faltamos com respeito desde o momento em que nos consideramos superiores, e que devemos decidir pelo resto dos outros seres, demarcando áreas de reservas que limitam recursos e espaços as outras espécies, enquanto nós gastamos os recursos naturais a nosso bel-prazer.
E mais: a invisibilidade dessa linha parece bem inteligível para mim, pois não se trata de até o quanto podemos nos aproximar, mas quando podemos ultrapassar. Se hoje precisamos “proteger” contra a extinção é porque provocamos o genocídio dessas espécies. Onde está então esse respeito secular pregado?
Treadwell também parece perceber essa contradição. Durante o plano de despedida da expedição de 2001, o ativista explode sua raiva contra a câmera. Instigado pelas críticas ao seu trabalho, ele dispara contra diversos funcionários do parque, ofendendo e ridicularizando essa contradição. Timothy afirma que eles o perseguem e dificultam seu trabalho enquanto permitem que caçadores e turistas irresponsáveis desrespeitem os animais.
Sua indignação com o sistema do parque, suas leis e proibições impostas é análoga a sua incompreensão diante da morte de um filhote de urso, do crânio de uma pequena raposa ou da morte espontânea de uma abelha durante a polinização de uma flor.
Treadwell considera esse desequilíbrio “injusto” e sua intervenção na natureza passa a ser uma missão, uma obrigação. Enquanto em uma seqüência ele modifica o curso da água em ordem a aumentar o fluxo de salmões para os ursos e seus filhotes que passam fome por causa da estiagem, em outra ele atua como o psicanalista de Mickey, urso derrotado após uma disputa por uma fêmea.
Dessa forma, ele atua da mesma maneira que a sociedade que o critica: intervém na existência dos animais, com a diferença de estar atuando diretamente e não indiretamente através de contratos, mapas e réguas.
Timothy Treadwell chegou ao Alaska fugindo de uma sociedade que o impossibilitou de se tornar outra pessoa, quando tentou diversas vezes ser um ator de teatro. Sua tentativa de ser e “mutar” para um urso foram mais uma vez barradas pelo mesmo sistema que o oprimia anteriormente. A ferramenta escolhida pelo ativista para expor seu amor pelos animais e indignação contra seus demônios (palavra usada pelo próprio diretor de Homem Urso) foi a câmera.
Herzog percebe isso e opina: “Fica claro para mim que o Serviço do Parque não é o verdadeiro inimigo de Treadwell. Há um adversário maior e mais implacável: o mundo dos povos e a civilização. Ele só tem escárnio e desprezo por eles”.
2.3 – Câmera e Morte: Divulgação de um ideal
Timothy passa então a registrar sua vivencia com os ursos, fazendo imagens maravilhosas, espontâneas e impressionantes. Sua percepção e sensibilidade de cineasta são extremamente aguçadas e podemos perceber um grande prazer em gravar. A câmera passa a ser sua ferramenta, sua companheira, seu outro eu.
O talento e a coragem proporcionaram cenas únicas que logo ganharam vitrine nacional, sendo entrevistado em programas renomados de televisão. Seu carisma conquistou as crianças pelas escolas que passava, sempre gratuitamente, mostrando seus vídeos ou ministrando palestras sobre meio ambiente e proteção dos animais.
Por trás de uma aparente ingenuidade, amadorismo e espontaneidade das técnicas de Treadwell, que o aproximavam do público jovem e adulto por razões distintas, existe um cineasta muito metódico e persistente.
Sendo na narrativa casual ou em sua aparição nos planos, Herzog nos mostra, através do material bruto e dos rabichos que não seriam utilizados por Timothy, que esse cineasta era meticuloso ao extremo, repetindo cenas mais de 15 vezes.
Roland Barthes, em seu livro a “Câmera Clara”, aponta: “a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a posar, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem”[2]. Essa transformação é muito perceptível em Homem Urso graças à oportunidade que temos de ver o material que seria descartado por Treadwell. Desse modo, vemos a diferenciação entre o personagem criado pela cineasta e sua personalidade real. Herzog lembra que “Sua raiva é quase incendiaria, artística. O ator de seu filme sobrepujou o cineasta”.
Esse acontecimento causa uma pane positiva na diferenciação feita por Barthes em seu livro. O autor aponta que a operação fotográfica tem três pontos de vista: a do operador (fotografo), do espectador (nós) e do fotografado (alvo referente). Nesse caso, Treadwell participa do tripé: é operador, fotografado e também espectador, pois faz as cenas, comenta e refaz novamente de modo a obter a melhor performance: a mais simpática e sem erros de modo a aumentar seu carisma com o seu público.
Em um plano, vemos Treadwell à beira de um penhasco repetindo diversas vezes o mesmo take e nos intervalos seus comentários sobre a atuação. Às vezes divertido, outras explosivo, Timothy apresenta uma personalidade cheia de altos e baixos que é totalmente o oposto da persona criada por ele: sempre calma, coerente e pacifica. Sua preocupação em manter esse eu valente e solitário na selva era tamanha que a presença de sua namorada, Amie, era omitida das imagens.
Sua imagem passa a ser maior que a dos próprios animais. Herzog nos mostra as imagens de Treadwell atuando, posando ou andando com sua câmera, repetidas vezes, com diferentes figurinos e com diversas velocidades. Herzog narra: “A câmera era seu instrumento para explorar a natureza a sua volta, mas de maneira crescente, ela se tornou algo maior. Ele começou a esmiuçar seu mais profundo ser, seus demônios e sua alegria”.
O encarar a lente da câmera ganhou uma qualidade de confessionário, quando, em uma das cenas mais pessoais do filme, ele conta a “sua história”. Tripé ao ombro, sem cortes, a cena dura aproximadamente dois minutos, com Treadwell opinando sobre temas como mulheres, sua personalidade, sua dificuldade de relacionamento, seus defeitos e qualidades.
Bellour, em “Entre Imagens”, explica que “Existem desde sempre, em todos os grandes diretores de cinema de ficção, momentos de parada durante os quais o fascínio fílmico parece se voltar repentinamente a si mesmo para produzir efeitos (mais ou menos visíveis) de contemplação e reflexão” [3].
Treadwell ignora esse fato e busca sempre chamar a atenção do quadro para sua figura. Herzog percebe e comenta sobre esse fato: “Em seu estilo de filme de ação, Treadwell não deve ter percebido que momentos aparentemente vazios tinham uma beleza secreta. Às vezes, suas imagens ganhavam vida própria, seu próprio estrelato misterioso.”
Podemos então voltar ao plano inicial do filme, descrito anteriormente. O punctum, ou seja, a pequena pausa no discurso de Treadwell, ao mesmo tempo em que proporciona esse momento de “vazio” também demonstra a preocupação do cineasta em buscar sempre o melhor plano, a melhor fala e a melhor “representação” de si próprio.
Aceitado o ponto sobre a importância vital da câmera para Treadwell e seu constante calculísmo diante da lente, passemos então para o próximo passo da análise.
Herzog, durante todo o filme, mostra-se frio e distante ao comentar as atitudes de Timothy. À medida que o roteiro vai se desenrolando para o final, o diretor de Homem Urso começa a esgrimir pequenas frases e imagens soltas sem nunca desenvolver profundamente sua opinião sobre o assunto. Esses pedaços de informações ajudam a fortalecer minha hipótese, que talvez seja a mesma de Herzog.
No ultimo capitulo de O Homem Urso, o diretor descreve uma discussão ente Timothy e um agente da aviação devido à validade de sua passagem. “Como eu odeio os povos do mundo”, escreve Treadwell. Esse fato teria causado a volta ao Labirinto dos Ursos, onde normalmente não estaria naquela época do ano.
O diretor coloca então depoimentos de Treadwell com intertítulos explicando que haviam sido feitas alguns dias antes de sua morte. Ele diz para a câmera coisas como “Acampar em terra de ursos pardos é perigoso. As pessoas devem acampar em áreas abertas e não em mata fechada como eu faço.”; “Eu vivi mais tempo entre os ursos marrons-pardos que qualquer ser humano na história moderna. Sem armas!”; “Cada dia eu estou à beira de uma agressão física ou até morte”; “Eu descobri um jeito de viver junto deles”. “Eu sou diferente”; “Jamais abandonarei o Labirinto, jamais.”.
Na próxima cena, Herzog mostra a ultima fita de Treadwell antes de morrer. Nessas imagens, Timothy aparece gravando imagens com seu possível assassino com “estranha persistência”. E ,de repente, vemos um plano do urso e Amie Huguenard em quadro. “Treadwell deixou sua ultima fita para colocá-la em seu filme?” pergunta-se Herzog. E ainda: “Para Timothy Treadwell esse urso era um amigo, um salvador”
Herzog parece dizer, sem palavras, o que agora escrevo: Treadwell planejou sua morte acidental. Um suicídio ocasional, sem data para ocorrer, mas que eventualmente aconteceria. Sua câmera é a única testemunha/cúmplice desse ato. Seja ao falar à câmera sobre sua possível (que agora parece caber o termo inevitável) morte pelas garras dos ursos ou quando praticamente assina seu testamento via vídeo em suas ultimas imagens antes de morrer.
Em seu último plano de sua última fita Treadwell parece hesitar em sair de quadro. “Dei um duro danado. Eu sangrei por eles (ursos). Eu vivo por eles. Eu morro por eles.”; “Eu os amo, eu amo isso. Cuidem desses animais. Cuidem dessa terra. É a única coisa que eu sei fazer.”.
A câmera registra, participa e proporciona sua morte. E é através dessa morte que os ideais de Timothy Treadwell chegaram a uma universalização. Morte e cinema são responsáveis por essa divulgação.
Anteriormente, Warren Queeney, amigo íntimo de Treadwell, ao contar a historia de como ficou sabendo da morte do colega pela televisão, afirma: “Meus outros amigos parecem mortos. Timmy não parece morto”.
Essa declaração é ainda reforçada no final do filme, que termina com um plano sombrio e praticamente surreal. Três filhotes de urso brincam na margem de um lago e uma densa neblina serpentina pela cena. Herzog termina sua narração: “Timothy se foi. A discussão de quão errado ou certo ele estava some na neblina à distância. O que fica é sua filmagem. E enquanto observamos os animais em sua alegria de ser, em sua graça e ferocidade, fica mais claro um pensamento. Isso não é apenas um vislumbre na natureza selvagem, é um olhar sobre nós mesmos, nossa natureza. E isso, para mim, além de sua missão, dá sentido a sua vida e sua morte”.
3. Conclusão:
Ao buscar seu asilo espiritual, Timothy Treadwell conheceu a câmera. Ao conquistar reconhecimento, o cineasta conheceu a morte. Com sua tragédia, entrou para a história. Este é o resumo de um evento trágico, porém esperado e talvez premeditado.
Werner Herzog conclui seu filme magistralmente. Após criticar e praticamente apedrejar Treadwell, o diretor termina sua obra destituindo Timothy de culpa, legitimando o sentido de sua morte.
Além de imagens magníficas, Treadwell deixa em aberto a discussão ambiental em um âmbito pouco estudado antes. Sua morte mostra a capacidade humana de se importar com as outras espécies, seja pela razão dos cientistas ou pela emoção dos ativistas. Ao dar sua vida por uma causa, abre as portas para um questionamento sobre quem somos, “nossa natureza”.
Para o cinema, reafirma aquilo que já sabemos, mas muitas vezes é negligenciado: o poder do instrumento cinematográfico. É através da câmera que podemos ver e presenciar as belezas vividas pela cineasta. Observar o outro lado da vida esquecido pela sociedade, uma vida de deslumbramento, apreciação e meditação. Uma volta às origens graças a uma ganância ideológica experienciada através do cinema.
Felipe Carrelli é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
[1] BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Julio Castanon Guimaraes (Trad). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. Pg: 46
[2] BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Julio Castanon Guimaraes (Trad). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. Pg: 22
[3] BELLOUR, Raymond. Entre-Imagens. Campinas, S.P., Papirus Editora. 1997. Pg: 79