A Conversação (Francis Ford Coppola, 1974): um estudo de personagem

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Por Marcela Rauter

A Conversação, filme de 1974 dirigido por Francis Ford Coppola, segue a vida de um vigilante particular, Harry Caul (Gene Hackman), que é contratado para investigar um casal de jovens a pedido de um diretor de uma grande empresa, porém ele começa a desconfiar que as pessoas que investiga estão em perigo e tenta alertá-los. Com uma premissa simples, pode-se pensar que esse é mais um filme de espionagem, mas Coppola o transforma em um estudo de personagem: Harry é um homem de meia idade que mora sozinho, tem poucos (ou quase nenhum) amigos e vive pelo trabalho, sendo justamente isso que transforma seu estado psicológico. De observador ele passa a ser observado.

O modo como Harry trabalha faz o som ter um papel importante no longa, ele lida com aparelhos de escuta e consegue gravar conversas em qualquer ambiente, como na cena inicial na qual durante um longo zoom in de um praça cheia de pessoas ouvimos claramente um casal conversando, porém há algumas interferências no diálogo e logo descobrimos que os dois são os alvos da investigação. Dessa forma, o espectador é colocado no lugar de Harry e escuta o mesmo que ele, tendo uma percepção maior do seu trabalho. Talvez por isso haja um trocadilho com o nome do personagem: Caul é muito semelhante foneticamente com a palavra call (ligar, chamar), dessa forma, ouvir está intrínseco no seu ser.

Além disso, tendo o som um papel de destaque, a trilha musical contribui para criar uma atmosfera de suspense e até mesmo solidão. Composta por David Shire, a maioria dos temas são tocados apenas no piano, mas em momentos chaves ele ganha o acompanhamento de outros instrumentos, causando uma descontração, como na cena em que acontece uma “festa” no galpão que Harry utiliza para trabalhar, ou tensionando o drama, como quando ele tenta conversar com O Diretor (Robert Duvall), quem solicitou seu trabalho, mas acaba sendo expulso do escritório, deixando-o mais desconfiado de que algo ruim vai acontecer.

Logo começamos a perceber a preocupação do personagem com sua segurança e privacidade. Quando chega em seu prédio uma vizinha o cumprimenta desejando-lhe feliz aniversário e ao adentrar seu apartamento encontra um presente no chão, ele começa a questionar como ela conseguiu entrar no local – há três fechaduras na porta e um alarme – e ao descobrir que ela também possui uma cópia das chaves, pede para ela se livrar delas. Quando visita Amy (Terri Garr), que é o mais próximo que ele tem de um relacionamento, ela pouco sabe sobre sua vida e quando tenta fazer perguntas pessoais não obtém sucesso. É a partir desses pequenos detalhes sobre a sua vida particular que a complexidade do personagem se constrói; ele tem problemas em confiar e ficar íntimo de pessoas.

Ademais, seu apartamento e o galpão em que trabalha são filmados em planos gerais e médios, mostrando o espaço vazio ao redor do personagem. Na cena já citada em que conversa com sua vizinha sobre as chaves, ao ser questionado sobre o que faria se acontecesse um incêndio no prédio e ninguém conseguisse entrar em seu apartamento, ele diz que não se importaria de perder suas coisas pois não tem nada de pessoal lá. Em sua sala – único cômodo que vemos – há apenas o essencial: um sofá, uma mesa com o telefone, uma estante com objetos de pouco valor, ou seja, até mesmo em sua casa Harry está isolado. O mesmo acontece no galpão, há uma grande área vazia enquanto os aparelhos que usa para trabalhar ficam concentrados num espaço pequeno, assim, ele está sempre rodeado por esses objetos, ouvindo as mesmas falas diversas vezes e vivendo sempre o mesmo momento. Quando está trabalhando ele está separado do mundo concreto.

É graças a esse tempo que passa ouvindo conversas privadas que o personagem carrega uma consciência pesada, e aliado a isso uma culpa religiosa, pois sabe que aos olhos da Igreja o trabalho que exerce não é correto. Quando vai se confessar, começa dizendo coisas “banais” como usar o nome de Deus em vão e pegar um jornal da banca sem pagar, mas logo diz o que realmente lhe aflige: ele sabe que seu trabalho vai ser usado para matar pessoas e que isso já aconteceu antes. Durante toda a cena temos um primeiro plano de seu rosto e pouca iluminação, que vai ficando cada vez mais escura conforme Harry confessa seus pecados e, finalmente, mal vemos seu rosto.

Entretanto, é durante uma convenção sobre vigilância que entendemos mais sobre seu status e também somos apresentados a Bernie Moran (Allen Garfield), o oposto de Harry. Caul é reconhecido por todos e considerado o melhor especialista da área e, se ele é retraído e não gosta de chamar a atenção, Bernie é um exibicionista que à primeira vista pode parecer um charlatão, mas na verdade usa de métodos diferentes para obter um resultado e parece não ter uma consciência pesada sobre a atividade que exerce, sempre falando abertamente sobre os trabalhos que faz. Talvez por isso sempre haja em suas trocas de diálogos um tom de julgamento por parte de Harry.

Após o evento temos a sequência da festa que marca uma virada no filme pois é a primeira vez que vemos Harry falar sobre seus sentimentos e também descobrimos mais sobre seus trabalhos passados. Ao conversar com Meredith (Elizabeth MacRae) ele diz, de maneira impessoal, o que sente por Amy. Novamente temos um primeiro plano de seu rosto, e, diferentemente de quando se confessou, o ambiente claro permite que possamos ver todos os sentimentos reprimidos por ele. Porém, esse momento de abertura logo é substituído pela revelação dos detalhes do trabalho que levou à morte de pessoas inocentes. Bernie o confronta, tentando descobrir como ele realizou o trabalho, mas Harry rebate dizendo que o que fazem com suas gravações não é de sua responsabilidade e que não tem culpa pelo acontecido, mas nessa altura já entendemos que esse fato o persegue e por isso teme pela vida do casal que investiga.

Em sequência, ao dormir, Harry sonha com Ann (Cindy Williams), alvo de sua investigação, e conta outro fato de sua vida. Quando criança ficou seis meses com metade do corpo paralisado e um dia sua mãe o deixou sozinho na banheira e ele quase se afogou. Além disso, de que sua mãe era muito religiosa, o que explica sua devoção. Através de campos e contra-campos vamos seguindo os dois, e logo após contar essa passagem Harry confessa que teme pela vida de Ann e é aí que chegamos na cena do quarto do hotel, que é bastante onírica. Nela, Ann sofre uma tentativa de assassinato mas sabemos que isso é fruto do subconsciente de Harry, porém quando o evento acontece na vida real, a cena é permeada de alucinações como um vaso sanitário transbordando sangue e não se sabe o que de fato aconteceu pois a paranóia do personagem atinge seu ápice.

Porém, há uma grande reviravolta que muda o entendimento dos acontecimentos vistos. Descobrimos que o casal de jovens não eram as vítimas, mas sim o diretor da empresa, que é morto em um acidente de carro. Com isso, Harry passa a ser uma ameaça pois sabe tudo o que aconteceu e é aí que seu maior medo se torna realidade, ele recebe uma ligação e a mensagem é bem clara: ele está sendo vigiado. Por fim, toda a solidão do personagem é concentrada na cena final. Após destruir todo seu apartamento em busca de uma escuta, o vemos sentado em meio aos destroços dos móveis tocando um saxofone – o único objeto que resta – e a câmera faz uma panorâmica, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, indo e vindo várias vezes, lembrando o movimento de uma câmera de segurança. Dessa forma, o seu medo é concretizado, ele é observado pelo espectador em toda a sua fragilidade e solidão.

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