Por: Matheus Amaral
Graduando (bacharel) em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos
“É que a fobia de pobreza me persegue a tempos
Eu tenho medo de não ter mais tempo pra vencer
Suficiente pra deitar numa cama macia
Chuveiro quente, cochilar na sala de TV
É que o sistema é corrompido, inverte os lados
Quanto convém manter o pobre, mais pobre, isolado?
Viver servindo à burguesia, ao escravo do estado
Que faz lavagem na mente de mais um favelado”
Marks, MC in; “Chá de Vida”, 2023.
I
Este ensaio tem por objetivo realizar algumas reflexões e análises sobre o filme Copacabana Mon Amour, neste sentido a partir da reflexão visamos elucidar alguns pontos e temas cruciais do filme, como a questão do transe, a temporalidade fílmica não-linear, o mal-estar social brasileiro retratado no filme, a importância que o filme dá para as culturas afrodescendentes e a tensão entre os debates de gênero a questão do entrelaçamento entre desejo e violência. Por meio de tal temática tentar nortear um posicionamento dissidente ao projeto moderno de cinema e o discurso cinematográfico que muitas vezes em paralelo aos ideais de progresso visou constituir uma visão da realidade ignorando o impacto da colonização neste contexto da dita “modernidade”.
II
Copacabana mon amour (1970) dirigido por Rogério Sganzerla é um dos grandes filmes da produtora Belair (fundada por Sganzerla com Helena Ignez e Júlio Bressane) que ficou conhecida por seu marco de produzir, em apenas dois meses no ano de 1970, seis longas-metragens e um curta-metragem (Wahrhaftig,2021, p.4). Por outro lado, é conhecida também apesar das discordâncias terminológicas pelo famoso movimento “Cinema Marginal”.
A versão restaurada que temos do filme já de início nos surpreende com uma mensagem de que a obra fora restaurada inúmeras vezes e a versão atual é uma aproximação mais possível da última versão do filme (Sganzerla,1970) realizada pelo diretor. Marca-se nessa aproximação a constituição de um filme diferente do primeiro, feito pelo diretor. Mas ao mesmo passo que insubmisso discorda das formas de narratividades cristalizadas onde os sentidos e montagens devem ser padronizados onde qualidade do filme se apresenta por ser mais próximo ao que se entende por original/perfeito. Assim, o filme não altera o seu sentido ou significado, pois justamente uma das características do filme é a não-linearidade dos fatos temporais da sua narrativa.
Assim, em linhas gerais o filme é um mergulho vertical no cotidiano da personagem Sônia Silk (Helena Ignez) e de seu irmão Vidimar (Otoniel Serra), divididos entre o morro onde moram e as ruas de classe média onde trabalham — ela, como prostituta, e ele, como empregado doméstico de “Dr. Grilo” (Paulo Villaça) (Wahrhaftig, 2021, p.6), por este caminho a narrativa nos mostra um cotidiano urbano, marcado pela e construído por um passado colonial e escravocrata. No entanto, a polifônia (Bakhtin, 2010, p.5) do filme é um fato marcante, visto que desde o início várias são as vozes que conduzem o andamento da narrativa, o que contribui para a estas várias temporalidades presentes no filme, bem como os diversos pontos de vistas e reflexões sobre o conteúdo, apresentado pelas vozes que narram o andamento do filme.Assim, para tal configuração na narrativa do filme dois elementos nos apresentam estes aspectos analíticos. Em primeiro lugar a presença das religiões afrodescendentes (Candomblé ou Umbanda) que entra em cena por meio do ponto que se confunde com a composição da trilha sonora por tambores, junto da benção inicial que a personagem Sônia recebe no inicia, quebrando a quarta parede e observando inquietamente o espectador. No entanto, essa sonorização que atravessa o filme até o fim e costura ele, conta também com a presença do samba de Noel Rosa e de algumas canções elaboradas por Gilberto Gil para o filme. Neste sentido, a religião e a música são parte do próprio tempo do filme e da forma na qual ele constrói o seu discurso/experiência, assim como para Wahrhaftig (2021), essa trilha sonora rompe a moldura de época do qual o filme poderia estar constituindo, com isso a própria música e ritmo frenético dos tambores nos conduz para um ambiente não-linear da realidade.
Entre as várias camadas e frases, há assim um contexto cosmológico de onde filme repousa “No Panteão brasileiro a entidade suprema é tupã/ Xapanã deus da peste/ Ilea deus do mal/ Oko deusa dos vegetais/ Omolu deus dos mortos e Dadá deusa das matas” (Sganzerla,1970), posicionando explicitamente estas referências a entidades reais de religiões brasileiras, sejam indígenas ou afrodescendentes. Assim, este aspecto narrativo, musical e religioso nos joga a uma viagem ancestral na constituição do Brasil, busca-se por esta narrativa constituir uma nova perspectiva sobre a constituição brasileira.
Sônia, por sua vez situada dentro desta narrativa épica de constituição do Brasil, onde diversas vezes seu passado é enunciado como parte desta história ocultada “Exu que persegue Sonia desde que ela saiu da África em um navio negreiro” (Sganzerla,1970), neste sentido o próprio quadro de formação brasileiro, tradicionalmente aceito também é rompido apresentando um caminho afro-diaspórico na constituição da personagem. Assim, a narrativa do filme desterritorializa a temporalidade, pois visa apresentar um processo de diáspora.
Por meio de seu incessante movimento fragmentário e surreal a contraposição ao mito da nacionalidade é apontada pelo filme, se os mitos nacionais como aponta Hall (2003) são constituídos muitas vezes sempre por uma dupla inscrição e por uma transitoriedade, “Os mitos fundadores são, por definição, transitórios: não apenas estão fora da história, mas são fundamentalmente a históricos.” (Hall,2003, p.29), assim, estes mitos são permeados por uma criação falseadora, é neste sentido que o diretor abusa desse anacronismo do caso brasileiro para situar uma memória apagada. Em contrapartida aos mitos fundadores que são “anacrônicos e têm a estrutura de uma dupla inscrição. Seu poder redentor encontra-se no futuro, que ainda está por vir. Mas funcionam atribuindo o que predizem à sua descrição do que já aconteceu, do que era no princípio” (Idem). A narrativa inquietante e não-linear do longa aponta esta fraqueza do discurso nacional brasileiro que tentou unificar aquilo que é insubordinável, que conduz a realidade para um verdadeiro transe ficcional do qual os personagens estão inseridos é que produz o incômodo e uma inquietação presente do começo ao fim.
III
Neste sentido, a estrutura não-linear da obra faz parte de outro elemento constituinte da narrativa: o transe. No início do filme recebendo uma benção Sônia entra em transe, ela e seu irmão ao voltarem para a casa são reprimidos pelos gritos de sua mãe que mostra a potência violenta da intolerância religiosa direcionada às práticas religiosas de descendência africana ao exclamar “meus filhos estão possuídos pelo demônio” (Sganzerla,1970) e em meio a esta discussão Sônia nos oferece um presságio “eu vou morrer hoje” (Idem), que destaca um mal estar vivido no cotidiano, quando se está fora do transe, fora da experiência cultural ou religiosa.
Assim o filme nos confunde e poderíamos até1 violenta que brota dessa cidade e da experiência melancólica dos personagens? Ou ainda, o grito elemento que atravessa o filme, não seria uma outra expressão de transe? Para nós como será explicitado o filme carrega uma relação ambivalente de violência e desejo, onde o grito violento e o transe de possessão são lados da mesma moeda. Por outro lado este, elemento de deslocamento é próprio “fantasma” que acompanha ou persegue Sônia, destaca-se que ele é caracterizado de uma forma não verossímil, ele é um homem com uma capa branca que fica girando e acompanhando Sônia, essa precariedade propositalmente posicionada pelo filme pode se confundir com a precariedade social dos sujeitos retratados e contribui para essa experiência de transe.
1 – Falamos de náusea aqui em dois sentidos: 1. Em relação a um contexto mais fisiológico da ânsia do enjoo, que pode ser produzido pela experiência visceral do filme, 2. Em um sentido filosófico-existencial cunhado por Sartre nas suas obras “A Náusea” e “O Ser e o Nada”, náusea como uma percepção da realidade contingente que não apresenta nenhum sentido fixo e que por isso tem uma significação que escapa a mão do sujeito e que justamente não é confortável é não busca corresponder à nosso princípio racional de buscar um sentido nas coisas e que justamente causa um sentimento de desconforto existencial.
Porém, o transe em si se apresenta de várias formas, em uma das cenas final, na cama Sônia e o patrão de Vidimar após terem relações sexuais, gritam energeticamente e seus corpos saem totalmente fora de um padrão cotidiano de maneira repetitiva. Assim, a repetição é um elemento marcante desta tópica. A repetição sendo um elemento fílmico usado, principalmente na criação de personagens tipo, que podem beirar o caricatural (Forster, 1985, p. 67) ou marcar os personagens com uma ideia fixa que é reiterada constantemente ao mesmo passo que reitera a estrutura repetitiva do próprio filme. Neste contexto o recurso é utilizado na repetição de frases desconcertantes que muitas vezes expressam as contradições dos personagens, que são contradições brasileiras muitas vezes ocultadas ao mesmo passo que situa o deslocamento deles no sufocamento do real.
Por meio disto marca-se o efeito nauseante de um Brasil Ideal que não foi alcançado, que é apresentado por meio da presença do elemento da repetição no filme, onde as falas deslocadas dos personagens que muitas vezes expressam sua inquietação existencial são repetidas incessantemente. Nisso frases como “Money please“, “eu odeio pobres“, “fedendo, fedendo, fedendo“, “o patrão aqui sou eu“, “estou apaixonado pelo meu patrão, estou com fome” (Sganzerla,1970) são colocadas ao espectador como um disco riscado que incomoda, incomoda pois apresenta questões ambíguas e que estão além da moralidade, visto o estado total de desespero do filme frente a realidade e a violência cotidiana que banaliza outras violências, como o termo “macacada” (termo extremamente pejorativo e racista ao ser empregado para denominar pessoas negras) que no filme pode ser interpretado como forma de se referir aos moradores do morro e que neste caso aqui entra como um jogo do diretor para mostrar a desumanização total e banalizada que os sujeitos nesta situação colonial brasileira passam, no entanto a própria repetição do termo alfineta o espectador, estendendo o incômodo e a violência sofrida no filme.
Por meio disto vemos uma relação estranhada entre humano e animal que nos é apresentada “Ontem sonhei com aqueles monstros malfeitores, de novo apareceram homens leopardos, homens cobras, cachorros de sete pata animaizinhos e todos os monstros contra nós duros, um mundo de barreiras, proibições e inibições” (Sganzerla, 1970), donde a psicodelia do filme borra essas separações anima-homem e a figura do opressor também toma um aspecto animal dentro dos sonhos.
Com isso, na ótica do transe o presságio de Sônia “eu vou morrer hoje“, marca justamente essa imediatez brusca e violenta, essa vida infinda que pode acabar a qualquer momento sem sentido algum. Vale registrar que enquanto espectador, nós observamos estas relações através de uma câmera que vê a personagem por cima e de forma distanciada, como se fôssemos cúmplices de tudo isso. No entanto, o elemento da câmera no filme também contribui para este efeito de transe, ela se move rapidamente e de forma não casual, na maior parte das vezes ela está distante dos personagens, que ao mesmo passo são distantes do centro, pois estão naquilo que o próprio centro considera a margem, justamente o morro.
Essa alternância/alteridade confusa entre as personagens e o morro é colocada em jogo não apenas pelo filme, mas por posições ambíguas de Sônia que não aceita o lugar onde mora, na sua icônica frase “eu odeio gente pobre” (Sganzerla, 1970), nos atira para um distanciamento, como uma personagem que possui relações religiosas, culturais e de própria descendência com o seu local se afasta tão incessantemente dele?
Assim o transe apresentado pelo filme é marcado por uma ambivalência, um desejo e uma repulsa, para o pensador Homi K. Bhabha o elemento da ambivalência é intrinsecamente ligado à imagem e a repetição que muitas vezes marca uma ausência, pois:
a imagem como ponto de identificação – marca o lugar de uma ambivalência. Sua representação é sempre espacialmente fendida – ela torna presente algo que está ausente- e temporalmente adiada: e a representação de um tempo que está sempre em outro lugar, uma repetição (Bhabha, 1998 p.85, grifo nosso).
Podemos caracterizar esse processo no próprio título do filme, como destaca Wahrhaftig (2021, p.4) há uma “ambivalência no próprio título: Copacabana mon amour, ao mesmo tempo que atesta o localismo, o faz através da língua francesa e, mais do que isso, através da referência ao filme de Alain Resnais, Hiroshima mon amour (1959)”, pensamos neste deslocamento também como um “um procedimento paródico que entrelaça a imagem de Copacabana pós AI-5 à imagem do terror nuclear de Hiroshima” (idem), assim ideologia nacional/nacionalista do AI-5 seria metaforicamente a bomba que no filme de Alain Resnais destrói o passado, onde no contexto deste outro filme mostra que este passado não é algo exótico do qual um jornalista deva explorar, assim como a ideia turística do Rio de Janeiro e de um Brasil exótico que é vendido. No entanto, essa negação de sua própria situação é um transe que envolve tanto a personagem quanto a realidade brasileira da qual o filme se situa.
Apesar de situar elementos que apresentam um Brasil de 1970, ainda sim o filme desloca o espectador, visto que, segundo o narrador, o filme se passa mais próximo da idade da pedra (Sganzerla,1970). Localizando essa crítica ao fator social que o filme retrata em relação aos morros, apesar de “estarmos” em 1970, materialmente falando a desigualdade colonial coloca a realidade daqueles que habitam o morro como sendo mais próximos a idade da pedra. Como vimos, o tempo não-linear é uma característica importante do filme, porém o espaço é igualmente um aspecto importante da obra, pois sempre vemos um contraste entre Copacabana e o morro, entre o azul límpido do mar e o sol quente que assola a favela, uma representação que já torna algo ausente presente.
Por esta via, observamos nas cenas dois tipos de Brasil em uma mesma cidade, contrastando dois “tipos de cidade” constituído por uma herança colonial do país, esta cisão como expressa Fanon mostra que “a cidade do colono é uma cidade de material resistente, toda de pedra e de ferro. É uma cidade iluminada” (Fanon, 2022, p.33), por outro lado “a cidade do colonizado (…) é um lugar mal-afamado povoado de homens mal-afamados. As pessoas ali nascem em qualquer lugar, de qualquer jeito. E as pessoas ali morrem em qualquer lugar, de qualquer coisa” (Idem), justamente essa cisão produz o mundo do colonizado ou no caso do favelado brasileiro como “um mundo sem intervalos, os homens se apertam uns contra os outros, as cabanas umas contra as outras.” (Fanon, 2022, p.33). Do mesmo modo que o tempo, o diretor nos mostra a não linearidade espacial que se apresenta na materialidade do país e do seu filme, por meio disso a câmera dissonante do filme tenta dar conta destes dois elementos não lineares, o tempo e o espaço.
Por fim, o próprio transe do filme se materializa nestes dois aspectos onde o corpo performativo tenta dar conta de um tempo e espaço linear. Por outro lado, o transe também é apresentado na forma na qual o longa foi conservado historicamente, o seu apagamento, censura e o mau cuidado com a sua conservação, fez com que por um quase momento que essa memória dissonante do brasil fosse perdida da memória do cinema brasileiro, ou seja o “delírio” do filme foi materializado também por um delírio real de “esquecimento”.
IV
Por meio disso, através da psicodelia e da narração poética e muitas vezes lírica, o filme tenta recontar a história do Brasil por um ponto de vista não convencional para a época ou para o discurso nacional, através da colocação da personagem como uma “fúria oxigenada”, pode-se refletir sobre essa performatividade da identidade brasileira em se aproximar da branquitude, adotando termo imprecisos e datas como o de “mestiço”. Sendo que esta categoria foi fundamental para a construção de um ideal problemático de democracia racial vigente no século XX, onde o problema racial no Brasil não existia visto que ele era uma país miscigenado onde as “raças” convivem bem e em perfeita harmonia. No entanto, esta representação do “mestiço” pode ter um tom sarcástico dessa confusão realizada pela desumanização entre animal e humano, visto que no olhar desumano nem todos humanos são de fatos humanos, ao mesmo tempo que a violência também desumaniza a figura do violentador. Ainda sim o elemento da oxigenação do cabelo, reflete também a neurose de negação daquilo que é não-branco ou não loiro, mas mosta o fracasso da personagem ao buscar uma “originalidade” de sua identidade pautada em um ideal de brancura.
Porém em relação à discussão sobre o “mestiço”, de um ponto de vista mais adequado é pertinente pensar em torno de uma hibridez cultural e da afrodescendência. Por meio desta outra lente conceitual o filme aponta um ponto de vista interessante da constituição das personagens e dos seus espaços tempos ao retratar uma personagem (Sônia) com origem afrodescendente que está situada em um espaço infernal e totalmente sem estrutura, que por meio de um tempo que representa os acontecimentos no filme totalmente de modo não linear, somos imputados a compreender a não linearidade da miséria nacional.
Neste sentido, apresentando as tensões sociais deste contexto em relação aos problemas de gênero e sexualidades enfrentadas pelas personagens, a questão da miséria, a pobreza do Brasil e a tensão primordial entre violência e desejo, que parece orquestrar todas estas.
A montagem não reluta ao jogar em nossa face o rosto de Jesus estampado em uma nota de um dólar, marcando uma promessa de um progresso quase religioso, como um céu que jamais se alcançará “só fará diferença daqui 100 anos se você morou em um palacete ou em um casebre alugado, só fará diferença daqui 100 anos se você for uma pessoa salva ou perdida, se daqui a 100 anos você estará no céu ou no inferno pela eternidade” (Sganzerla,1970), os resultados da desigualdade se darão somente em um longínquo futuro, nessa imediatez social esse fator não é importante, não se deve pensar na miséria, se deve deixar explorar é isso que indiretamente o Brasil da década de 70 exclama para os personagens, que desejam uma vida melhor no futuro mas são violentados no presente.
Por outro lado, em uma cena temos a cliente que vai até Sônia solicitar um programa, o diretor chega a usar o p/b nesta cena, onde o assunto de prostituição é inserido explicitamente, visando trazer um ar mais “sofisticado” ao espaço que está sendo gravado, ao mesmo tempo que dramatiza a inquietação da personagem, que sempre responde a sua cliente com a frase “eu tenho pavor da velhice“, repetida de forma incessante acaba por nos trazer-nos uma sensação ambígua da personagem que deseja estar no modernidade, na juventude na boemia ao mesmo tempo que sente medo do que é “velho“, mostrando as contradições de uma personagem que mora no morro e ao mesmo passo tem “nojo de pobre “, para validar isso narra que foi expulsa de uma família rica do qual ela já pertenceu, mas que de fato não enquanto expectador não se sabe se a história é verdadeira ou falsa, visto que conhecemos sua família e seu contexto no filme. Assim, trata-se de uma “sofisticação” no sentido em que o p/b mascara a complexidade da realidade que a personagem confronta.
Essa posição da personagem em relação à modernidade e a famigerada “boêmia” do Rio de Janeiro é totalmente diferente do retrato produzido no filme “Garota de Ipanema” (1967) de Leon Hirzman, que passa uma outra visão sobre a mesma cidade, e teve a marca de ser o primeiro filme colorido do Brasil. Por este elemento comparativo a alternância entre as cores e o p/b configuram também mais uma parte do deslocamento deste filme, visto que hipoteticamente ele retrata Copacabana e não Ipanema, ao mesmo tempo que retrata o morro e não o cotidiano burguês, mostra elementos afrodescendentes e viscerais dos tambores e não a nacional/popular e confortável bossa-nova. Desde o início do filme Sônia é reprimida por sua mãe, não somente pela frase “meus filhos estão possuídos pelo demônio”, mas também pela repressão acerca dos sonhos da personagem, expressos na sua utopia de estar na rádio, a rádio nacional que garantiria a realização desta busca por “emancipação” financeira da personagem, que depende da prostituição para se sustentar.
Além disso, esse estranhamento também resultará em um posicionamento consciente do filme acerca das questões de gênero brasileira, pela narrativa de Sônia de ter sido expulsa de casa por ter engravidado aos 13 anos e hoje buscando alcançar a condição que ela idealiza (a rádio). Narrativa que mais uma vez não podemos atestar se é verdadeira, mas neste caso o ficcional se baseia em casos que podem ser totalmente verossímeis, auxiliando a composição de um transe que desliza ente o ficcional e o real.
Essas inquietações que são mostradas em um momento em que a personagem acompanhando outra mulher e vai ao poucos se desafogando em uma afetividade/relação que surge entre as duas, que se vai se modificando aos poucos de um p/b mais frio até um colorido de certa tensão afetiva contrastante entre as personagens, mas que logo retorna novamente para o p/b marcado por gritos, choros e caretas, mostrando que a relação nada tinha de profundidade e era marcada apenas por uma relação de poder mediada pelo desejo carnal e financeiro.
Figura em uma apresentação de uma tensão maior e constante entre o Brasil que é um país rico (com seus recursos naturais) e que ao mesmo tempo é tão miserável. Esta questão latente que a narração apresenta: seria a riqueza do Brasil, a origem de sua miséria? Espelha a irracionalidade da relação colonial da exploração dos recursos, mas também da destruição da terra colonizada.
Por meio desta linha, o filme nos mostra um olhar da pobreza com um distanciamento novamente marcado através da câmera. Mas em meio a esta pobreza temos uma cena em que a manifestação cultural de dois homens negros tocando música toma a cena e confunde a câmera que agora se aproxima como se fizéssemos parte desta roda, desta coletividade, nos trazendo para um pertencimento que se espelha neste discurso que o filme produz, tentando constituir uma reaproximação das descendências culturais do Brasil, ao mostrar a verdade por detrás do Brasil que foi inventado pelo discurso nacional. Este mostrar a verdade não é só mostrar a miséria, mas que ao denunciar a miséria do mesmo modo denúncia os apagamentos destas culturas que em algum momento são o ponto onde se encontra novamente a humanidade e o pertencimento dos personagens.
Frente a esta realidade contraditória os personagens do filme assumem uma posição violenta frente ao desejo, onde o abuso é presente tanto na vida de Vidimar que trabalha como doméstico e é abusado e ao mesmo tempo violentado pelo seu patrão, quanto por Sônia que sofre por todos os lados e ruas em que ela transita, e que já se vê sem aguentar mais a situação “são todos tarados, eu não sou uma tarada” (Sganzerla,1970), nessa dissonância entre o desejo e violência que entendemos a frase de Vindimar que apesar da violência sofrida exclama: “estou apaixonado pelo meu patrão!” (Idem), Marcando um desejo que não reconhece a violência, uma violência que se disfarça por um desejo de uma afetividade violenta .
Isso que se sintetiza na canção de Noel Rosa que atravessa o filme, uma dor que convive com um amor, uma violência e desejo que se abraçam, mas que não alcançam o amor e somente a destruição “E quem fala mal do amor/ Não sabe a vida gozar/Quem maldiz a própria dor/Tem amor, mas não sabe amar”. Portanto, um amor em transe, que mobiliza os corpos em coreografias distanciadas e demoradas, o cair no chão dramático, o cuspir “o grito, o canto, a nudez, a dança e a violência compõem a tônica dos corpos em cena. A performatividade esgarça a representação e faz emergir com força a fisicalidade dos atores e atrizes, tensionando a carga ficcional e conceitual da cena com a presença corpórea” (Wahrhaftig, 2021, p.8), a performatividade dos atores ganha espaço para representar este desejo violento, que questiona a cisão entre o ator e o personagem o improviso e o roteiro, a dança dos corpos conduz também todo este estranhamento. Que se juntam as repetitivas frases desconfortáveis com as coreografias de corpos deslocados da realidade, que reafirmam as posições de poder e as tensões produzidas pela violência e pelo desejo;
Porém toda essa tensão e performatividade presente no espaço da possessão e do exorcismo vai se resolver em uma destruição: a morte do Patrão pelos dois irmãos. Mas que coloca a condição de poder brotar uma nova face no mundo e que pode talvez possibilitar o amor. Como será narrado ao fim do filme.
Essa tragédia que é inevitável também é consciente pelo próprio filme “no nosso planeta terá a vida humana é um drama, teatro do destino” (Sganzerla,1970), este destino trágico neste mundo é consequência de algo maior que se atribui a um drama humano. Onde o presságio de morte entoado por Sônia, mostra que a morte desses personagens se dá no dia a dia em uma desumanização constante “você vai reencarnar como o galo doido da favela, você será o galo e o galo será você” (Sganzerla,1970), que se marca por uma reencarnação que se traduz no distanciamento cada vez maior da humanidade, até o galo aqui é o galo da favela, pertencente a favela onde se dá o espaço de uma não-continuidade de uma violência brutal produzida na relação temporal descontínua entre Copacabana e o Morro.
V
Portanto, no final o filme ao evocar um ponto que pode ser atribuído à figura de “Exu”, “O sino da igrejinha faz belém-blém-blom/ Deu meia-noite, o galo já cantou” (Sganzerla, 1970) vem evocar um eco fanoniano de “Os condenados da Terra” de transformação da realidade, o planeta não pode ter a mesma face e só pode ser moldado a partir de uma contra-violência que se coloca contra a fome e a miséria, que recusa a situação violenta da qual se está implementado, o canto do galo anuncia um novo dia com a chegada de Exú. Se no começo do filme Sônia para se livrar da sua perturbação de ver espíritos encarnando, procura o Pai de santo Joãozinho da Goméia e pede uma benção, parece que há o fio condutor de cura que a religiosidade afrodescendente coloca para a personagem e delineia a possibilidade de renovação para esta outra vida. Talvez os males que assolavam a personagem aqui são menos espirituais e mais materiais
cansada de ver a cara de Deus há 40 graus a sombra era o fim de mim, de Sônia e começava outra Sônia Silk, antes a fome não me deixava pensar, agora ela me faz pensar não em mim, nem nos espíritos dos meus amantes. Mas a fome me faz pensar cada vez mais na fome dos azarados da terra é preciso mudar a face do planeta transformar pela violência este planeta terra vagabundo metido a besta (Sganzerla, 1970)
Por meio desse desejo reprimido que o filme representa frente a uma situação violenta, a náusea existencial no filme é utilizada para se chegar em uma reflexão de como se deve acabar com esta situação violenta da colonização, ao mesmo passo que este é o destino traçado no início já pelo filme por um presságio de morte, que se realiza como uma morte para renascer.
Com isso, Copacabana monamour assim como a memória brasileira, precisou ser restaurada de diversas formas, de maneiras descontínuas e que não parece mais ser a versão original que tínhamos de nós e dos ancestrais colonizados. Mas, o acontecimento do filme nos direciona para um local, ao mesmo passo que destaca o incômodo da fome e o poder ancestral da cultura e religião de colocaram em jogo a história e restaurar o tempo que foi fragmentado pela violência e pelo ocultamento. A sua psicodelia expressa aquilo que Lélia Gonzales (1984) chama de “neurose cultural brasileira“, essa não aceitação da influência afrodescendente na história e na cultura do país, um ocultamento constante da favela, dos africanos, dos indígenas, das mulheres e dos afrodescendentes em prol de um discurso progressista-nacionalista. Temos um filme que ao ser censurado quando foi lançado em 1970, somente foi restaurado em 2015, quando as verdades não podiam mais queimar (Fanon, 2020).Assim a cumplicidade que a câmara instaura em nós sob a observação desta realidade violenta que nos envolve, nos faz sair do filme sendo forçados e constrangidos a pensar.
Em resumo, o filme marca pelo seu caráter experimental de imagens estonteantes, e fica em nossa memória colocando Copacabana e o Morro dentro de suas contradições e constantes mudanças. Uma obra genial que é capaz de tocar o espectador para além da projeção fílmica ele revira a nossa “memória brasileira” e também os nossos corpos.
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