ENSAIO | O Povo Derrotado em As Vinhas da Ira (1940)

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Por Guilherme Otávio Barroso Reis

Redação RUA

 A ideia da atual greve na maioria das universidades federais do Brasil surge de uma necessidade, agravada nos últimos anos, de restabelecer um pagamento justo para os trabalhadores envolvidos nessa rede de ensino. A função essencial desse movimento de parada é proporcionar, para as instituições capazes de alterar a situação, a mesma urgência por mudança que os trabalhadores afetados vêem na precariedade de seus locais de trabalho e na negligência com a sua profissão. O movimento grevista está muito presente no mundo moderno e estabelece uma função muito importante para os trabalhadores que desejam melhorar sua qualidade de vida. É uma ferramenta muito poderosa na mão do povo, que, quando executada de forma correta, pode trazer mais igualdade e prosperidade para toda a nação. 

 John Steinbeck estava pensando nesses mesmos temas quando escreveu o livro que lhe rendeu o prêmio Pulitzer, As Vinhas da Ira (1939). O romance conta a história da família Joad – composta por idosos, adultos e crianças – durante a Grande Depressão americana em 1930. Os Joad são expulsos da sua terra emprestada no Oklahoma, por conta do fim repentino de um contrato que eles tinham com a empresa proprietária. Esta que, agora, não precisava mais da mão de obra da família – devido a mecanização com a chegada dos “tratores de lagarta”. Frente a isso, eles decidem ir para Califórnia, em cima de uma caminhonete improvisada, em busca de emprego e melhores condições de vida. Entretanto, não é isso o que eles encontram. 

 O livro ganhou uma adaptação homônima para o cinema no ano seguinte, dirigida por John Ford e produzida por Darryl Zanuck, um dos líderes da 20th Century Fox. O filme conta com a participação de Henry Fonda no papel principal e Jane Darwell como coadjuvante (que venceu o Oscar de 1941 pela interpretação da mãe Joad). 

O afeto pela luta

 Analisando anacronicamente a filmografia de John Ford, é possível observar uma predileção por temas que envolvem a luta por igualdade e por justiça. Em filmes como Sangue de Heróis (1948), Como Era Verde o Meu Vale (1941), O Homem que Matou o Facínora (1962) e outros, o conflito narrativo surge justamente do conflito entre classes ou entre pessoa e Estado. Na sua filmografia, existe, diversas vezes, a relação tênue entre o bem-estar individual e o bem-estar social – contexto que, por nunca estar em equilíbrio naturalmente, acaba, às vezes, em luta ou guerra –, e a comoção com os indivíduos afetados pela devida conjuntura.

 Esse aspecto se comunica intimamente com a obra original de Steinbeck. No livro, os capítulos vão se alternando entre situações específicas dos personagens e digressões mais generalistas sobre o contexto social. Ou seja, existe, desde o trabalho original, a necessidade de colocar em pauta o contato entre o individual e o social, a parte e o todo. 

 É preciso ter clareza que, por mais que seja um ponto de vista crítico à opressão, ele nunca passa para o lado socialista dessa perspectiva. Na verdade, mantém seu viés nacionalista enaltecedor da civilização americana, mesmo que seja na figura do oprimido – que nunca desiste e tem a força de espírito digna do cidadão cristão estadunidense. 

A contradição

 Ford era declaradamente posicionado ao espectro de direita. O estúdio que produziu o filme era uma das maiores empresas de entretenimento americana (parte do que se chama “Big Six”, o bloco das seis maiores produtoras da época). O filme se utiliza dos principais elementos da indústria hollywoodiana (o Star System, a hierarquia das profissões, o foco no roteiro e o esquema de divisão por gêneros,  como estabelece Carlos Augusto Calil no capítulo “Cinema e indústria” do livro O Cinema no Século organizado por Ismail Xavier, publicado em 1996). Então como um filme como esse encontra espaço para fazer um retrato tão crítico e expressivo sobre a situação dos Estados Unidos? 

 O fato é que o sucesso (de crítica e de vendas) da obra literária de Steinbeck e o sucesso (de crítica e de bilheteria) dos filmes de Ford davam grande segurança para que qualquer empresa investisse num projeto que envolvesse os dois. Naquele momento, Hollywood já havia se consolidado como indústria e a linguagem cinematográfica estava muito mais desenvolvida do que 30 anos antes. O foco das produtoras não era somente atrair o público para os cinemas, mas também conquistar um grande número de críticas positivas de veículos importantes, para que o mercado fosse cada vez mais valorizado e atrativo para o resto do mundo. Assim, o tema bastante contextualizado poderia trazer a empatia do público (que havia recém presenciado a crise e ouvido falar do livro de 1939) e a mão dos realizadores (principalmente do diretor) poderia trazer as premiações e críticas positivas.

A desolação do Estado

 Em As Vinhas da Ira (1940), o trajeto da família Joad de Oklahoma para Califórnia é penoso. O grupo acaba perdendo o avô (e, mais tarde, a avó) por conta das condições precárias, o agregado Casy por conta de uma confusão com os policiais  e o filho, Tom, foge pois estava sendo perseguido após ter assassinado um homem.

 A família passa por acampamentos lotados e situações de pobreza e miséria, que vão passando a sensação de desolação e falta de pertencimento. Nesse sentido, o filme se utiliza de uma filmagem mais realista, com elementos documentais – algo que até se assemelha a estética do neorrealismo italiano (ainda não consolidado como movimento em 1940) – como: locações reais com iluminação ambiente; planos longos; enquadramentos e movimentos de câmera simples. 

 Assim, nessa jornada da família, nota-se a presença opressora do Estado sobre tudo e todos. Embora seja um antagonista que pressiona a vida daquelas pessoas, ainda é um obstáculo descaracterizado, o que torna mais evidente o seu caráter onipresente no filme. Essa descaracterização é exemplificada perfeitamente numa cena do início do filme:  a família de Muley contesta um representante, que vai até a casa deles para dizer que estão sendo expulsos da terra. Ele pergunta “de quem é a culpa?” e o homem diz que é da empresa, mandada pelo banco, que também foi mandado por alguém. Muley pergunta “então em quem nós atiramos?”, e ninguém sabe responder.

 Outro fator que amplifica essa atmosfera de desamparo é o som. Exceto pela cena em que a mãe se desfaz de alguns pertences, a sequência da viagem do início, a cena do funeral improvisado e pelo final impactante, a música (utilizada pontualmente) é somente diegética e o som é sempre ambiente. Por mais que exista muito diálogo, o filme não tem medo de deixar o silêncio ou o som ambiente tomar conta. Isso aprofunda o espectador nesse vazio que a família sente e também engrandece o momento final, em que a música toma conta sem justificativa da diegese, com um desfecho mais expressivo.

Equilíbrio no contraste estético 

 Em meio aos momentos de tom realista na obra, estão presentes momentos de maior liberdade na escolha de enquadramentos e composições. O fotógrafo Gregg Toland – que ficou conhecido por Cidadão Kane (1941) – explora muito bem o contraste sugestivo do preto e branco em situações com apelo dramático mais sombrio. Por exemplo, na cena em que Tom Joad e Casy encontram o perdido Muley: a iluminação da vela serve para criar um jogo de sombras que é muito efetivo em comunicar o aspecto obscuro daquela situação – que, no caso, trata de abandono, resistência e desesperança. 

 Esse outro mecanismo traz um balanço muito interessante para o filme, que, de um lado, retrata realisticamente a vida naquele contexto e, de outro, a dramaticidade pesada de forma mais estilizada e sugestiva. Além desse equilíbrio complexificar a linguagem da obra, encaixa-se perfeitamente nos objetivos das produtoras na época.

Um clássico diferente

 Além da fotografia, o filme conta com sequências em que a montagem é, também, mais expressiva. O exemplo mais claro é a sobreposição de imagens. No momento em que Muley relembra os tratores e no momento da viagem da família, a sobreposição está lá como instrumento narrativo – no caso da lembrança, pois entrega às imagens um aspecto imaginativo e fluido, ilustrando que se trata de um pensamento – e de transição – no caso da viagem, ajudando a conectar dois momentos e cenários distintos do filme. Esse é um dos motivos para que a obra possua uma forma mais poética e livre de contar sua história.

 Apesar disso, As Vinhas da Ira (1940) ainda segue a convenção do cinema clássico. Afinal, o seu diretor é considerado como um dos principais expoentes da linguagem cinematográfica estadunidense e responsável, também, por construir a “estética clássica”. Por exemplo: há um cuidado muito grande em manter a continuidade espaço-temporal; há uma sequência de planos, em cada cena, que segue a lógica do “Plano Geral – Plano Médio – Primeiro Plano”; a narrativa se desenvolve com certo foco nos personagens e suas experiências etc. 

 Entretanto, o filme demonstra ter uma profundidade além do que seria superficial, na medida em que trabalha com as convenções a seu favor e acrescenta a elas quando necessário – claro que respeitando os limites para manter seu apelo com a grande audiência. Essa característica sutil, mas intensificadora na experiência do espectador, é um dos motivos para que a obra seja tão rica.

 Além dos elementos já discutidos anteriormente, o filme também busca um sentimento geral que foge um pouco do normal clássico. 

A desesperança

 Durante o filme, é recorrente a ideia de resistência. Por mais que sejam feitas alusões a uma suposta luta trabalhista contra a opressão – como no momento em que Tom Joad desabafa com sua mãe, dizendo que, se todas as pessoas gritassem e resolvessem tomar uma atitude, talvez eles tivessem outras chances –, essa luta  nunca acontece de fato. Existe uma esperança quando a família encontra um comitê honesto que se preocupa com o bem dos trabalhadores, já no final, mas também não é a solução dos problemas. Novamente, a devastação representa não só aquele período específico, mas também os outros contextos em que a recessão econômica impacta brutalmente a classe trabalhadora. O mais afetado sempre é o povo. 

 A família passa por uma jornada de reconhecimento desse problema, principalmente do meio para frente, pois é a partir daí que os Joad sentem na pele o quanto os trabalhadores estão sendo injustiçados por toda a parte, e não só em Oklahoma. O filme passa essa sensação de desesperança a partir da contemplação dessa situação miserável e das injustiças presentes em todas as coisas (semelhante ao que a família está sentindo). 

 Diante disso, a única forma de resistência que aparece completamente é a de Muley, no início do filme. O homem se encontra perdido, deprimido e solitário, em meio àquele jogo de sombras mencionado anteriormente. Assim, a resistência isolada, feita por só um ou poucos homens, é representada de forma terrível. No fim, a única possibilidade de êxito na resistência está presente somente nas falas e na esperança dos personagens. Na cena final, o pai Joad diz que eles estão “apanhando” (no sentido de passando por dificuldade) e a mãe Joad conclui: “Eu sei. É isso que nos faz fortes. Os ricos aparecem e morrem; e seus filhos não valem nada e acabam morrendo. Mas nós seguimos em frente, Pa’, porque nós somos o povo que vive. Eles não podem nos extinguir, eles não podem nos vencer. Nós vamos continuar para sempre, Pa’, porque nós somos o povo”.

 Apesar do discurso transmitir um sentimento profundo de esperança, é intrigante notar que essa esperança não está necessariamente ligada a expectativas de melhorias concretas. A fala da mãe Joad expressa a aceitação das condições ruins do povo, mas não prevê nenhuma conquista por mais direitos ou por mais dignidade. Ela fala sobre sobrevivência. Nesse momento, o filme é animador, mas, no geral, ele passa a soturna sensação de que não haverá tanta mudança assim. Nunca existe a resistência concreta e muito menos a possibilidade de melhorar a vida daqueles que mais sofrem com a crise. Não é essa a forma que pensamos sobre o nosso estado atual? De qualquer forma, é entregue uma experiência que inevitavelmente comove e desperta reflexões no espectador, envolvendo-o de maneira genuinamente inesquecível.

REFERÊNCIAS (seguindo norma ABNT):

CALIL, Carlos Augusto. Cinema e indústria. In: XAVIER, Ismail. O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. P. 45-69.

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