Eles Vivem: Uma Crítica ao Imperialismo Cultural

INTRODUÇÃO

Desenvolvida por pesquisadores de diversos países ao longo da década de 1970, a teoria do Imperialismo Cultural é caracterizada pela abordagem da intervenção cultural estadunidense na sociedade latino-americana, onde um propósito de dominação econômica é implementado através dos meios de comunicação de massa, que têm a função de veicular mensagens de caráter ideológico, visando promover a aceitação dos valores vigentes na Metrópole, a legitimação da dominação e a neutralização da crítica (FRANÇA e SIMÕES 2016, p. 170). Na década seguinte ao surgimento de tal conceito, sua temática demonstra uma influência notável na concepção do longa-metragem de ficção Eles Vivem (John Carpenter, 1988), que embora seja ambientado e produzido nos Estados Unidos da América, foco da denúncia proposta pela teoria, conta com uma trama repleta de analogias voltadas a tal ramo das teorias da comunicação. Assim sendo, este ensaio tem como objetivo a demonstração da correspondência entre conceitos pertencentes à teoria do Imperialismo Cultural e a trama do filme oitentista dirigido por John Carpenter.

ELES VIVEM, NÓS DORMIMOS

Nos minutos iniciais de Eles Vivem, nos deparamos com o protagonista John Nada (Roddy Piper), um homem sem identidade que anda pelas ruas de Los Angeles à procura de trabalho e de um lugar para morar, se encontrando sem perspectivas de vida após ter sido demitido da empresa em que trabalhou durante dez anos, fato relatado por ele durante uma entrevista em uma agência de empregos. Quando finalmente encontra trabalho na construção de um edifício, seu chefe sequer se importa em perguntar o nome do operário recém-contratado ou em lhe dar informações referentes ao seu pagamento, reforçando a ideia de que, enquanto indivíduo, Nada é irrelevante. O personagem é um tradicional arquétipo do “homem-massa”, prosaico, vulgar, sem estilo próprio e seguidor da opinião pública (ASSUMÇÃO 2012, p. 43), algo que se torna ainda mais significativo quando, ao fim do filme, ele virá a se tornar responsável pela ação que põe fim à dominação midiática, corroborando ao ideário rebelde e revolucionário intrínseco à identidade do homem-massa (ORTEGA Y GASSET 2005, pp. 130-141).

O primeiro terço do filme se caracteriza pela apresentação de seu protagonista e do cenário em que ele está inserido, uma comunidade autônoma e interdependente que vive às margens da sociedade, tendo de lidar constantemente com a repressão policial em seu meio. A trama central do longa, que só virá a ser introduzida efetivamente na marca dos 32 minutos de rodagem, é introduzida neste primeiro segmento da obra por meio de pequenos indícios, tais como a constante presença de televisores nos bairros em que John Nada passa caminhando, o pastor cego que discursa em locais públicos se dizendo ciente da dominação pela qual os cidadãos estão submetidos e, principalmente, a sociedade secreta de “lunáticos” que se reúne com propósitos desconhecidos em uma igreja na qual se observa uma pichação com a emblemática frase “eles vivem, nós dormimos”.

Após uma longa e chocante sequência de cenas que mostram uma ríspida operação policial destruindo as instalações do bairro em que Nada vive, o protagonista espera pelo dia seguinte para conferir as consequências das ações dos policiais em sua comunidade, se deparando, então, com a icônica pichação da igreja completamente oculta por uma camada de tinta branca, e encontrando uma caixa que, posteriormente, descobre conter uma expressiva quantidade de óculos escuros. A essa altura a insatisfação de Nada perante as injustiças que observa diariamente ao seu redor já é evidente e, com a aquisição dos óculos de sol, começa a se encaminhar para o reconhecimento definitivo da presença de fontes externas que exercem forte influência em seu contexto social.

ROMPENDO A BARREIRA DA ALIENAÇÃO

A primeira vez em que o protagonista de Eles Vivem faz uso dos óculos escuros recém-descobertos marca uma das cenas mais icônicas do longa-metragem. Sem entender o filtro monocromático proporcionado pelas lentes, o homem não tarda para perceber que os óculos também modificam o conteúdo dos outdoors e anúncios publicitários à sua volta. Cartazes que anunciam computadores e destinos turísticos no centro de Los Angeles passam agora a exibir frases como “obedeça” e “se case e se reproduza”. A linguagem publicitária passa a ser vista de maneira nitidamente autoritária, com o modo verbal imperativo sendo utilizado para induzir o indivíduo a acatar sua mensagem de maneira inconsciente (CARVALHO 1996, p. 13).

Com o uso dos óculos escuros, o cenário de Los Angeles passa a ser dominado por mensagens de caráter autoritário.

Dessa maneira, o uso dos óculos passa a ser interpretado como um rompimento da barreira da alienação, e posto que o personagem principal do longa é uma representação arquetípica do homem-massa, os óculos de sol indicam a sua constatação da dominação capitalista do mundo. Se nos estudos de comunicação latino-americanos setentistas foi evidenciada a intensa intervenção ideológica norte-americana nos países da América Latina, a produção dirigida e roteirizada por John Carpenter traça um paralelo temático ao retratar alienígenas numa posição hierárquica de domínio cultural superior aos Estados Unidos, onde o país perde a sua hegemonia e passa a ser a economia dependente. Ademais, essa analogia é exemplificada na marca de 1h10 do longa, quando um homem cita a frase “somos o terceiro mundo deles”, se referindo às ações impositivas dos antagonistas.

Por fim, outro importante aspecto da teoria do Imperialismo Cultural que pode ser observado no filme é o uso dos meios de comunicação de massa como o meio mais fácil e rápido para o exercício da dominação cultural (RIZZOTTO 2008, p. 4). A presença de televisores enquanto aparelhos alienantes pode ser notada desde os minutos iniciais da película, e é somente com a destruição da rede de transmissão de uma emissora televisiva que o protagonista consegue desmascarar os invasores, permitindo que o mundo inteiro tenha conhecimento de sua realidade submissa. Dessa forma, as práticas abusivas dos alienígenas eram viabilizadas exclusivamente pelo suporte televisivo, e desprovidos de tal alicerce, a sua dominação é cessada por completo.

OUTROS APONTAMENTOS RELEVANTES

É válido observar que, à época do lançamento da obra, a população estadunidense vivenciava o segundo mandato presidencial de Ronald Reagan. Consequentemente, a postura crítica e denuncista do filme com relação ao sistema capitalista se trata de uma reprovação de Carpenter a políticas de caráter elitista como a economia do gotejamento (trickle-down economics) proposta pelo governo de Reagan, que apresentava fundamentos de redução fiscal que beneficiavam a população mais rica e privilegiada do país (GRANDIN 2007, p. 89). Logo, é sintomático que os monstros interdimensionais infiltrados em Los Angeles e autores dos princípios capitalistas sejam membros da elite econômica da cidade – estando infiltrados, ainda, na esfera política estadunidense, como retratado no momento em que John Nada assiste ao pronunciamento de um político em uma TV e, ciente da aparência alienígena deste, ironiza que já o imaginava desta maneira.

No que se refere ao elenco da produção, a escalação de Roddy Piper como o protagonista apresenta uma inusitada ironia com relação aos meios de comunicação de massa. Visto que o filme se propõe a criticar a significativa influência da grande mídia na sociedade americana, torna-se contraditório que o ator escolhido para viver o anônimo responsável pela ruína da televisão seja um lutador da World Wrestling Entertainment (WWE), um fenômeno midiático estadunidense assistido por uma quantidade vultosa de telespectadores – indicando que a visão crítica de John Carpenter não se limitou à trama de sua obra, atingindo também o seu casting.

CONCLUSÃO

Ainda que seja uma obra audiovisual concebida, produzida e ambientada nos Estados Unidos da América, Eles Vivem desenvolve inúmeras críticas à intervenção ideológica estadunidense em países como os latino-americanos, o fazendo por meio de interessantes analogias em sua trama, bem como por outros aspectos formais que são executados de maneira criativa sob a finalidade de indicar a importância dos meios de comunicação de massa no âmbito da teoria do Imperialismo Cultural, se valendo de um protagonista multifacetado e de antagonistas com propósitos ameaçadores para reforçar seus simbolismos e se consagrar como um filme-denúncia que se opõe à hegemonia capitalista possibilitada em cenários marcados pela dominação cultural estrangeira.

REFERÊNCIAS

ASSUMÇÃO, Jéferson. Homem-massa: A filosofia de Ortega y Gasset e sua crítica à cultura massificada. Porto Alegre: Editora Bestiário, 2012.

CARVALHO, Nelly. Publicidade: A linguagem da sedução. 2. ed. São Paulo: Ática, 1996.

ELES vivem. Direção de John Carpenter. Estados Unidos: Universal Pictures, 1988. (94 min.), son., color.

FRANÇA, V.; SIMÕES, P. Curso Básico de Teorias da Comunicação. São Paulo: Autêntica, 2016. p. 161-185.

GRANDIN, Greg. Empire’s workshop: Latin America, the United States and the rise of the new Imperialism. Nova York: Henry Holt & Company, 2007.

ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-americano, 2005.

RIZZOTTO, Carla Candida. O imperialismo cultural: breve análise da influência dos EUA na mídia latino-americana. 2008. 11 p. Dissertação (mestrado) – Curso de Comunicação e Linguagens, Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, 2008.

SCHILLER, Herbert. Communication and cultural domination. White Plains: International Arts and Sciences Press, 1976.

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