Melodrama: Uma Odisseia Empírica

A experiência de crescer, por si só, é traumática.  Ao encarar a realidade do mundo, conturbado por sequenciadas crises econômicas sem perspectiva de superação, a quebra e desencantamento das experiências humanas é pungente – assim, o sociólogo alemão Max Weber acreditava que, com o passar das décadas, as relações se tornam mais racionais e menos pessoais, gerando menos espiritualidade e conexão com outros seres. Em tal contexto, a cantora neozelandesa Ella Marija Lani Yelich-O’Connor, conhecida pelo nome artístico “Lorde”, compunha em seu primeiro álbum, Pure Heroine (2013), melodias desiludidas e sarcásticas retratando a sensação de ser uma adolescente nos subúrbios experienciando novas e frescas ocasiões em uma sociedade que não a escuta e valoriza como deveria – as primeiras palpitações acaloradas sentidas após o início do primeiro relacionamento sério,  combates com limitados colegas da escola e a solidão são temas que percorrem o disco em uma exploração de sonoridade incomum para uma jovem de apenas 16 anos, inexperiente e ainda conhecendo a si mesma e ao mundo. Crescendo na era das redes sociais, Lorde se depara com um fatídico espaço social a qual está presa como jovem adulta, vivenciando, após o início de sua carreira e fama, situações contrastantes com as descritas em seu primeiro álbum – ao enfrentar um término, entende, por fim, que sua existência não é especial e que talvez ela não seja tão diferente dos indivíduos descritos com depreciação em canções como White Teeth Teens e Buzzcut Season, uma vez que está suscetível a ser facilmente substituída e manipulada. A partir disso, surge a obra Melodrama (2017), uma versão mais madura e consciente de si que explora as fragilidades de sua existência, repleta de sensacionalismos, extenuações emocionais e martírios sofridos após entrar em contato com a vida adulta, deixando para trás o subúrbio em que sua família mora para enfrentar problemáticas em um mundo no qual sua única certeza é que está sozinha.

Se em Pure Heroine Lorde se aproximava de uma dúbia percepção desencantada de sua existência no mundo contemporâneo, em Melodrama a artista extrapola todos os limites emotivos por meio de uma aproximação autoral imensa, relatando seu recente término em composições inspiradas em Kate Bush e David Bowie, exorbitando vulnerabilidade e melancolia ao longo das onze faixas do disco – a sinestesia apresentada, uma mescla de cores frias e quentes com sentimentos e música, perpassa uma introspecção justaposta em diversas faixas, como em Hard Feelings/Loveless, que induz em tom irônico a necessidade das gerações recentes negarem sentimentos a troco de demonstrar à antigos pretendentes uma aura evoluída – todavia, os versos “But I still remember everything / How we’d drift buying groceries, how you’d dance for me / I’ll start letting go of little things / ‘Til I’m so far away from you, far away from you, yeah” revelam a melancolia hiperbólica ainda presente no eu lírico, que não se dissipou completamente do relacionamento como deseja manifestar publicamente. Além disso, em tal faixa é possível demarcar um traço melodramático lancinante: após o segundo refrão, a produção musical aguçada amplifica em “pontadas” sônicas o desamparo deixado quando o rompimento de uma relação romântica ocorre, revelando a influência da pantomima, do dizer por não dizer, mas por significar por vias não verbais, evocando o teatro melodramático do século XVIII e XIX em uma encantadora produção musical. Outrossim, a significação do espaço e fala pública perdura em todas as faixas – um dos motivos do término do namoro da cantora com seu ex, James Lowe, foi a exposição e exploração da mídia em torno do relacionamento, fato que o perturbava – em Sober II (Melodrama), tal preceito é identificado nos seguintes versos: “They’ll talk about us, and discover / How we kissed and killed each other, whoa / (And we’ll tell them)”. 

Ademais, constantemente durante a sequência de faixas é possível explicitar composições que verbalizam elementos cinematográficos por meio de uma amálgama de situações e sentimentos, como em Liability, que apresenta ao final da canção uma ocasião abundante em diversas obras cinematográficas inspiradas em melodramas, o final ao pôr do sol, como em Indiana Jones e a Última Cruzada (1989): “They’re gonna watch me disappear into the sun / You’re all gonna watch me disappear into the sun”, aqui, Lorde continua a acédia introspectiva apresentada ao longo da canção, que comenta o afastamento de amizades próximas devido ao estilo de vida diferenciado da intérprete, provindo da fama e a necessidade de esperar muito de outros indivíduos – apesar de sumir da vida desses, não poderá esvaecer completamente, evidenciando a importância dos versos em que diz que desaparecerá ao sol, uma metáfora para sua permanência na cultura popular em contradição com sua falta de presença física com tais amigos. Em outro momento, à metade do disco é disposto um flashback a fim de retornar e analisar o fim do relacionamento com seu ex: “Go back and tell it”, em Hard Feelings/Loveless inicia com acordes similares ao sucesso de 2013 Royals, período no qual a cantora estava conhecendo James – tematicamente semelhante à faixa de abertura do Melodrama, Greenlight, o retorno ao passado é finalizado quando a transição para a segunda parte, Loveless, inicia. De tal modo, Lorde transita em uma odisseia de quatro anos em apenas 6 minutos, sintetizando de modo cinematográfico suas emoções e sentimentos – similarmente à Liability, ruídos do estúdio e respirações profundas permanecem na mixagem de som, causando uma hipérbole dramática adicionada à voz rouca e lacrimosa da intérprete, utilizando o corpo como veículo de significação emocional.

Indiana Jones e a Última Cruzada (1989)

Destarte, a construção visual e sonora provinda da habilidade sinestésica de Lorde resulta em um complexo e profundo trabalho musical lapidado em irônico contexto, uma vez que uma tragédia romântica em fase de amadurecimento proporcionou um dos maiores e mais icônicos álbuns do século XXI devido sua ampla utilização de referências cinematográficas e melódicas e, com apenas 19 anos de idade, provocou através do exagero estético e sentimental um disco universal que penetra no âmago de uma geração de indivíduos desesperados por serem compreendidos e se relacionarem com outros seres humanos. Nos últimos versos do álbum, a canção Perfect Places indaga: “What the fuck are perfect places anyway?” – por fim, a conclusão derivada é que não há lugares perfeitos e a adolescência é apenas uma fase eufórica regada por imperfeições e sentimentalismos oníricos, uma transição imperfeita e impreterível ante as responsabilidades e obrigações oriundas da maturidade racional advinda com os anos de experiência da vida adulta. Melodramaticamente proporcionado, planejado e executado, Melodrama finaliza sua jornada empírica se concretizando como uma odisseia que masteriza as marcas do subgênero desenvolvido nos últimos séculos, elevando sua realizadora a um dos maiores nomes de sua geração.

Capa do disco “Melodrama”, de Lorde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Antônio Flávio PIERUCCI. O desencantamento do mundo: todos os passos de um conceito. São Paulo, Editora 34, 2003. 236 páginas.

INDIANA Jones e a Última Cruzada; Direção: Steven Spielberg. Estados Unidos, 1989.

LORDE. Melodrama. Nova Zelândia: Universal Music New Zealand Limited, 2017. (40 min.).

LORDE. Pure Heroine. Nova Zelândia; Universal Music Group, 2013. (37 min.).

SINGER, Ben. “Meanings of melodrama”, capítulo 2 (pp.37-58) de Melodrama and modernity, New York, Columbia University Press, 2001.

XAVIER, Ismail. “Os excessos, a dupla moldura e a ironia do mestre do melodrama.” In: GUIMARÃES, Pedro Maciel; STARLING CARLOS, Cássio. (org.). Douglas Sirk: O Príncipe do Melodrama. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil; Ministério da Cultura, 2012, p. 87–104.

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