A ópera nas obras de Luchino Visconti: uma análise baseada nos filmes Senso (1954), Rocco e Seus Irmãos (1960), O Leopardo (1963) e Morte em Veneza (1971)

A ópera é um gênero teatral que baseia-se na ideia de um espetáculo encenado, apoiada na noção de exagero e excentricidade. Popularizou-se a partir do século XVII e desde então passou por diversas alterações e, também, integrou-se a outras formas de arte, como o cinema. O gênero, como dito, caracteriza-se por sua apresentação cênica essencialmente demarcada e dramatizada, tais exageros estão presentes tanto em sua forma, quanto em seu conteúdo. Nesse sentido, nota-se a presença de elementos advindos da ópera em certas representações cinematográficas, como por exemplo, nas obras do cineasta italiano Luchino Visconti, dentre as quais enfatiza-se Senso (1954), Rocco e Seus Irmãos (1960), O Leopardo (1963) e Morte em Veneza (1971). Tais obras, pode-se dizer, flertam de alguma forma com o gênero operístico, uma vez que são dotadas de um grande exagero cênico e de trilhas sonoras devidamente acentuadas, muitas compostas pelo famoso compositor Nino Rota, possuem também referências diretas à composições de ópera.

Luchino Visconti era um aristocrata de berço e desde sua infância teve contato direto com o teatro, tendo dirigido em sua vida adulta um número considerável de peças teatrais e óperas. No cinema, sua carreira teve início como assistente do cineasta Jean Renoir, na França, durante a década de 1930. No entanto, é nos anos 1940 que o diretor italiano começa a dirigir suas próprias obras, seu primeiro filme é Ossessione (1943),  considerado por muitos como a primeira obra do movimento neorrealista italiano. Visconti continua, nesse mesmo período, a realizar outras obras que abordavam com criticidade uma realidade social de classes menos abastadas. Mas é em 1954, com a obra Senso, que Visconti começa por referenciar mais diretamente sua paixão pela ópera, atribuindo elementos dela a seus filmes, como um maior apreço por questões cenográficas, assim como a utilização de temas que remetem ao melodrama. A produção marca uma passagem nas obras do cineasta, visto que a partir dela Visconti começa a realizar grandes produções que tratam sobre a decadência da aristocracia e subsequentemente a formação de uma burguesia. Com exceção ao filme Rocco e Seus Irmãos, que dialoga com o neorrealismo, tais obras são pautadas em uma noção de espetáculo, e ligadas a uma proposta de controle da mise-en-scène.

SENSO (1954): UM MELODRAMA OPERÍSTICO

Em Senso, de 1954, obra ambientada durante a Unificação Italiana, o diretor Luchino Visconti nos apresenta a história da Condessa Lívia e seu desafortunado romance com um oficial austríaco, Franz. Logo no início da obra, somos apresentados a um palco onde se passa a ópera Il Trovatore, de Giuseppe Verdi, importante compositor italiano e figura durante a Unificação Italiana. 

Já na primeira cena do filme, o diretor apresenta a seus espectadores tramas essencialmente passionais. Tanto Verdi, quanto Visconti procuraram retratar o movimento de Unificação Italiana, mas enquanto o compositor procurava fomentar um sentimento nacionalista durante o período histórico em que vivia, o cineasta partiu de uma visão futura dos acontecimentos, retratando em suas obras tal período sob uma perspectiva decadente, isto é, nos filmes de Visconti  que retratam uma determinada aristocracia, em geral contemporânea ao movimento de Unificação Italiana que acontece meados do século XIX, prevalece um sentimento de decadência e pessimismo. Portanto, a presença de uma ópera de autoria de Giuseppe Verdi como abertura do filme acrescenta, também, um certo simbolismo ao filme, principalmente ao levar em consideração o período histórico retratado na obra.

Percebe-se, primeiramente, a influência do gênero operístico na própria referenciação feita por Visconti e, logo durante esta cena inicial do teatro denota-se um estilo definido de mise-en-scène e dramatização que serão  recorrentes em toda a obra. Tal estilo dramático faz-se presente, por exemplo, no primeiro embate entre os italianos  e os austríacos, nesta mesma cena.

Nota-se por toda a trama uma predileção pelo exagero que reforça um ideal melodramático, e isso pode ser visto na forma como Visconti localiza os objetos em cena, sempre deixando os ambientes cheios, o que acaba por acrescentar dramaticidade aos personagens que ali estão (GUIMARÃES, 2009). Além disso, é importante ressaltar como esses ambientes lotados possuem um caráter opressivo aos personagens que ali estão dispostos, principalmente quando relacionados aos sentimentos destes personagens.

Ademais, outro fator que evidencia o exagero e minuciosidade imposto por Luchino Visconti em em Senso é a caracterização dos personagens, desse modo, os figurinos agem denotando a que classe social aquele personagem pertence. Não somente, a figura principal da obra, Condessa Livia possui toda uma caracterização voltada a representar seu emocional essencialmente romântico, o que acaba por ser refletido em seu figurino, majoritariamente composto por vestidos bufantes e diversos acessórios.

Voltando-se agora para as atuações, percebe-se em momentos pontuais da obra uma descarga emocional feita pelos personagens, principalmente em momentos de impasse. Tais momentos são dotados de um sentimentalismo exacerbado, flertando com o gênero da ópera e também do melodrama. Um exemplo dessa utilização está localizado ao final do longa, quando a Condessa Livia descobre que Franz é um delator e a usou para obter dinheiro. Ao descobrir isso, Livia grita desesperadamente e, além disso, apoia-se na expressão corporal para transpassar seus sentimentos. Nota-se que a utilização de corpos para demonstração do que não pode ser falado era uma prática muito comum no cinema silencioso, principalmente em melodramas, o corpo se torna, portanto, a forma máxima de expressão da palavra (BROOKS, 1976). 

Continuando na mesma linha, ainda baseado no pensamento do teórico Peter Brooks, há uma certa diferenciação no modo como esses gestos são utilizados na ópera propriamente dita, já que essa a utilização da musicalidade serviria como fator de expressão exímia. No entanto, torna-se evidente em Senso, a utilização de uma combinação desses fatores, visto que trata-se aqui de uma obra melodramática e, sobretudo, com influências operísticas. Tendo por base essas expressões do melodrama na obra, considera-se a seguinte citação do teórico francês André Bazin “Visconti declara ter querido fazer passar o ‘melodrama’ (entendam: a ópera) para a vida. Se foi esse seu propósito, ele conseguiu perfeitamente.”. Como já dito, a obra de Visconti apoia-se na noção de gestos para expressividade pessoal, mas em contrapartida utiliza também a trilha sonora para essa finalidade. Aqui, tanto a ópera de Giuseppe Verdi, quanto a adaptação feita por Nino Rota da Sinfonia No. 7 de Anton Bruckner corroboram com o desígnio de Luchino Visconti.

ROCCO E SEUS IRMÃOS (1960): UM APELO OPERÍSTICO ASSOCIADO AO ESTILO NEORREALISTA

Após Senso (1954), Luchino Visconti retoma pressupostos neorrealistas em seu filme Rocco e Seus Irmãos (1960), a trama trata de uma família italiana composta por uma mãe e cinco irmãos que migram de Lucania em direção à Milão, em busca de melhores condições de vida. Aqui, novamente temos uma parceria entre o diretor Luchino Visconti e o compositor Nino Rota. A presente obra não possui personagens bem abastados, assim como Senso ou obras posteriores do diretor, não se trata de uma aristocracia decadente ou até mesmo uma burguesia, como em Morte em Veneza (1971), mas de uma família comum, de pessoas vindas do campo, que subsistem. Embora não possua um exagero cênico como em outras obras do diretor, certamente devido uma questão de classe, Rocco e Seus Irmãos continua sendo uma obra com influências melodramáticas e operísticas, há um certo apreço, aqui, às obras de Giacomo Puccini, principalmente considerando os finais trágicos da obra do compositor, e também da ópera Carmen, de Georges Bizet. Nota-se, portanto, a desenvoltura do diretor em conseguir refletir seu apreço por diferentes gêneros teatrais em obras com assuntos tão diversos. 

Um primeiro exemplo que diz respeito a estima que Visconti possuía com o teatro está presente nas divisões que se passam no filme, isto é, a obra é dividida em cinco partes (com continuidade) e cada uma delas é atribuída a um dos cinco filhos de Rosaria Parondi, como se essa segmentação  fosse equivalente às divisões dentro do espetáculo teatral, os atos. O longa-metragem inicia-se com parte da família se deslocando para Milão, onde um dos quatro irmãos, já estava estabelecido, Vincenzo, este que corresponde à primeira divisão do filme. 

Como já dito, o longa não possui uma mise-en-scène pautada em uma excentricidade, um exagero, mas mesmo assim, dentro do que propõe o diretor, é algo cuidadosamente pensado. Aqui a mise-en-scène representa um ambiente orgânico a partir de suas sutilezas , ou seja, são fotos, colagens e alguns artefatos como panelas apoiadas na parede que dão a esses locais uma impressão de naturalidade. Por mais que a presente obra possua um reforço à um ideal neorrealista, a partir de certos elementos cinematográficos, como a iluminação, ela constrói um determinado refinamento e até mesmo certo exagero, o que acaba por distanciar o filme de uma máxima neorrealista, por mais que a obra ainda detenha similitudes com o movimento cinematográfico. Desse modo, é perceptível a partir de certos planos que o diretor usa a iluminação a fim de criar efeitos mais rebuscados e dramáticos. Um  tipo de iluminação utilizada que delineia bem essa intenção é a low key, que cria uma fotografia contrastada. Segundo o cineasta Josef Von Sternberg, a utilização correta da iluminação serviria para dramatizar e/ou embelezar qualquer objeto (BORDWELL, 2013). Ressalta-se, nesse sentido, um papel importante conferido à iluminação na criação de uma atmosfera dramática no filme de Visconti. 

Exemplo de uso da iluminação Low Key em Rocco e seus irmãos.

Partindo para a análise  da encenação, a obra, ao mesmo tempo em que possuí atuações exageradas e expansivas, têm também atuações contidas e sutis. Pode-se dizer que, assim como em Senso, Rocco e Seus Irmãos possui uma alta recorrência (e até mais que o filme anterior) à expressão gestual. Exemplo disto é  a personagem de Rosaria Parondi, a mãe, esta que age por boa parte do filme de maneira exagerada, tanto em suas falas quanto em seus gestos. Também  a personagem de Nadia, uma prostituta,  se comporta de forma exuberante, um exemplo desse comportamento é a risada descontrolada que dá na cena em que conhece a família de Rocco.


Gargalhada da personagem  Nadia, em Rocco e seus irmãos.

Além desses exemplos, temos também a expressão que se dá através do embate corporal, muito bem denotado no filme, principalmente devido à condição a que Simone e Rocco (ambos filhos de Rosaria) se condicionam, a de boxeadores.  A função do boxe por todo o enredo é de notória importância, ao analisarmos sua relação com o  personagem de Rocco, temos que este é dotado de uma incomunicabilidade, de uma certa passividade, portanto o boxe, para ele, serve como um modo de expressar aquilo que não é dito verbalmente, seus anseios e angústias. Quando analisamos a presença do boxe através  por outro personagem, Simone, que é mais agressivo, temos a utilização desse esporte como um instrumento de poder. 

Não se restringindo a esses momentos, há no decorrer do filme algumas cenas onde a expressão desse sentimentalismo age de forma melodramática e teatral, para exemplificar isso, podemos observar duas cenas: a primeira é o momento em que Nadia é assassinada por Simone. Muito emblemática, consta nessa cena a presença de uma montagem paralela que contrapõe dois tipos de violência, a vivenciada por Rocco no boxe naquele momento e a de Nadia, ressalta-se durante essa cena a presença da trilha sonora para intensificar o acontecimento, o que o deixa essencialmente operístico; já na segunda cena,  momento que Simone conta à Rocco que Nadia está morta, ouvimos o grito desesperado de Rocco como única parte de sua reação, reforçando um final trágico.

No tocante a musicalidade de Rocco e Seus Irmãos, o filme possui trilha sonora de autoria do compositor Nino Rota e é utilizada para expressar diversas impressões, dentre essas, assume o papel de determinar atmosferas e emoções específicas. No cinema, a associação de imagens e elementos sonoros é responsável pela criação de vínculos entre obra e espectador. Desse modo, Nino Rota compõe uma trilha sonora que se liga à diversos momentos da trama e também à diversos personagens, um exemplo disso é o nome das composições. Elas carregam o nome de alguns personagens ou até mesmo situações pontuais, por exemplo temos as músicas “L’amore di Rocco”, “L’amore dei due fratelli” e “Il delitto di Simone”, que correspondem situações específicas. Nessa mesma linha, o teórico e compositor Michel Chion disserta sobre o valor agregado em uma determinada obra, isto é, um efeito criado pela adição de informações e emoções que, conduzidas pela melodia é projetado pelo espectador sobre o que é visto em tela, podendo intensificar determinadas reações. Nesse sentido há em Rocco e Seus Irmãos, uma utilização da musicalidade como força motriz que serve para intensificar o que é visto em tela em um esquema bi-sensorial, já que há emoção refletida por ambos os fatores, imagem e som. 

Agora, tratando de semelhanças que o filme do Visconti possui para com representações operísticas, identifica-se, na relação que a personagem Nadia tem com alguns personagens masculinos da trama, em especial Rocco e Simone, uma semelhança com a ópera de Georges Bizet, Carmen. Primeiramente, devido ao fascínio que ambas as mulheres, Carmen e Nadia, exercem nos homens de seu universo fictício. Em segundo lugar, há uma clara inspiração de Visconti na ópera de Bizet, representada em seu filme em uma sequência mencionada acima, o assassinato de Nadia em montagem paralela.

Em Carmen, ao final da ópera, enquanto Escamillo luta contra um touro, Don José assassina sua amada, Carmen, com uma faca na barriga. Observa-se que a morte de Nadia se dá de forma semelhante, possuindo em comum inclusive a forma como estas duas personagens são assassinadas. Ao final, ambos os assassinos caem com os corpos das mulheres (Carmen e Nadia). De outro lado, temos a semelhança da obra de Visconti com outro famoso compositor, Giacomo Puccini, a aproximação  entre esses dois autores está no tipo de história que costumam contar, Puccini comumente relacionava seus temas a mulheres (heroínas) que devotas à seus amores, acabam por ter um fim trágico. E é nesse final trágico que as obras convergem, atribuindo ao longa metragem de Visconti uma noção operística.  

O LEOPARDO (1963):  UMA TRAGÉDIA PESSOAL OPERÍSTICA

Em O Leopardo (1963), Luchino Visconti retoma o que propôs em Senso (1954), retratar uma aristocracia em decadência em um contexto diretamente ligado ao movimento de Unificação Italiana. Trata-se de uma adaptação de um livro homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, tanto o livro quanto o filme contam a história de uma família nobre decadente a partir de um personagem central, o Príncipe Don Fabrizio Salina, sempre se adentrando ao íntimo do personagem. Aqui a aristocracia se desfaz para dar lugar a uma burguesia ascendente, fator retratado a partir de uma célebre frase, dita pelo sobrinho do protagonista, Tancredi, que permeia toda a obra: “As coisas precisam mudar para continuar as mesmas”. 

A presente obra evidencia um perfeccionismo formal que o diretor tinha para com suas obras, e isto é notado principalmente devido a minuciosidade da mise-en-scène apresentada. Toda a excentricidade construída anteriormente em Senso é aqui abordada de forma intensificada e mais detalhista. Quando associado esse exagero cênico à presença de uma musicalidade bem demarcada, com trilha musical  também composta por Nino Rota, temos novamente a presença do termo operístico à obra de Visconti. Aqui, como em Senso, existe uma homenagem ao compositor Giuseppe Verdi, é importante ressaltar a partir desses exemplos a influência que o compositor possuía a temas relacionados a Unificação Italiana. 

Logo de início somos apresentados ao apreço que Visconti possuía com a encenação de seus filmes. A obra começa com uma panorâmica que adentra o espectador naquele cenário ricamente decorado, o direcionando a uma sala onde acontecem rezas rotineiras.

Nesta cena, o diretor evidencia seu cuidado com a mise-en-scène a partir de detalhes decorativos como pinturas em todas as paredes e, também, pela visão privilegiada que o espectador possui de outros cômodos. E é por toda a obra que essa decoração exuberante se fará presente, nota-se que a mise-en-scène define, aqui, coisas que não necessariamente são ditas, como a afeição que Don Fabrizio possui com a astronomia, abordada de forma direta no livro, mas não no filme.

A mise-en-scène evidenciando a paixão de Don Fabrizio

A presente obra trata, a partir de um macrocosmo, de questões relacionadas à Unificação Italiana, mas em seu microcosmo aborda temas essencialmente íntimos, sobre questões existenciais, retratados a partir de cenários repletos de informação, o que acaba por atribuir uma maior dramaticidade àquilo que é vivenciado pelo protagonista. É importante ressaltar que os cenários, quando analisados junto ao psicológico de Don Fabrizio, representam uma forma pessimista de vida, principalmente em decorrência a um caráter de finitude que ronda todo o filme.

Voltando à questão da aristocracia representada, torna-se nítida a importância da presença de figuras como Piero Tosi, famoso figurinista italiano que trabalhou com Visconti diversas vezes, inclusive em obras anteriores, como Senso e Rocco e Seus Irmãos. O figurinista italiano é de suma importância para a concepção da obra tal como ela é, uma vez que os figurinos agem como denotadores da classe social que os personagens pertencem e, além disso, servem para exaltar a excentricidade e apreço do diretor por formas exageradas, fator que flerta com o gênero operístico.

Ainda voltado a questões de mise-en-scène, nota-se uma forte influência, em O Leopardo, de outras formas de expressão artística (além, é claro, da ópera), como é o caso da pintura. Grande parte da influência da pintura na obra vem do grupo artístico italiano, do século XIX, denominado Macchiaioli, uma vez que os diretores e outros membros da equipe, como os figurinistas, estudavam tais representações de modo a replicá-las em suas obras. É importante ressaltar que o estudo desses movimentos artísticos de outrora de outrora realçavam uma linguagem nacional, herdada de artistas de outras épocas (FABRIS, 1993). Partindo desse princípio  o diretor Luchino Visconti atribui a seu filme referências a pinturas de Giovanni Fattori e de Giuseppe Abbati. Enquanto a influência do primeiro se dá, principalmente, em tomadas exteriores, a do segundo se dá na forma de inspiração para os figurinos e cenário.

 Evidencia-se, também, que a forma como Visconti dispõe os personagens no plano em alguns momentos pontuais da obra simula a composição de quadros de pintura, utilizando de exemplo a cena em que a família Salina está na igreja.

Além desses fatores, há, como já mencionado, o importante papel que a pintura exerce na mise-en-scène do filme, uma vez que em diversas cenas interiores existe uma grande relevância dada às pinturas na parede, como é o caso de Angélica deslumbrando um quadro de guerra ou Don Fabrizio observando um quadro fúnebre, ação simbólica levando em consideração o psicológico do personagem.

Fica notório, portanto, o papel que a pintura possui na referida obra, seja como referência ou até como inspiração para composição de quadros, o que acaba por denotar um estilo de encenação e cenografia baseados em excessos por parte do diretor.

No que diz respeito a atuação, em O Leopardo  ela se dá de forma contida, isto é, não se trata aqui de um melodrama, mas sim de uma tragédia pessoal. É claro que há alguns momentos singulares em que conseguimos definir características excedidas e, majoritariamente, isso está restrito às figuras femininas presentes na trama.

Pontuando esses momentos onde há um certo exagero encenado, nos voltamos para uma personagem emblemática, Angélica, interesse e par romântico de Tancredi, o sobrinho do protagonista. Esa personagem se diferencia de outras figuras femininas da obra justamente por seu caráter exagerado, destoando-se desde sua primeira aparição no filme, o que se deve ao fato de sua atuação estar baseada em gestos faciais e corporais, como a ligeira mordida nos lábios que dá em sua primeira cena.

Gestos faciais de Angélica

Continuando a tratar de Angélica, essa protagoniza uma cena ímpar e, de certo modo, parecida com uma cena em Rocco e Seus Irmãos, quando a personagem Nadia ri descontroladamente e deixa os que estão em volta dela sem reação. Em O Leopardo, durante uma sequência de jantar, Angélica repete o feito de Nadia e ri durante o evento, o que causa desconforto em outros personagens e faz com que o jantar acabe antes do esperado.

A gargalhada exagerada da personagem, que causa incômodo

Ao se adentrar no fato, temos que Angélica não pertence a classe social ali predominante, ou seja, a aristocracia, percebemos que ela Angélica funciona como  um símbolo para aquela classe que ascende, a burguesia, e nisso temos a razão pela qual a atitude não contida da personagem foi incômoda. Ainda falando de questões relacionadas à atuação, pontua-se o personagem de Tancredi, que não cede aos moldes aristocráticos e, decorrente a isso, conta com algumas cenas que fogem de uma representação contida no gesto, como exemplo temos ainda a cena em que ele apresenta alguns amigos de ofício ao seu tio, comunicando o espectador com uma quebra de quarta parede. Veja que o diálogo do ator para com o público foi uma prática recorrente no teatro, a qual a sequência de O Leopardo faz referência.

O Personagem Tancredi comunica-se diretamente com o espectador

Tratando agora de questões referentes a melodia, O Leopardo possui, além das composições de Nino Rota, uma homenagem ao compositor Giuseppe Verdi, já mencionado acima. Trata-se de uma valsa até então inédita de Verdi, que toca no momento do baile, ao final do filme. Além dessa valsa, há outro momento em que Visconti referencia Verdi, que é quando a família Salina caminha em uma procissão para a igreja, nesse momento o acompanhamento musical é de “La Traviata”, ópera de Verdi. A cena se segue com a ópera até a entrada na igreja, quando os personagens, sujos de poeira, se organizam no quadro como se fossem uma pintura, fato já mencionado acima. 

Não se referindo somente às obras de Verdi, temos, em O Leopardo, composições exímias de Nino Rota, muitas vezes intensificadas em razão da ação ali presente. Nota-se isso durante as cenas de guerra, mas também em cenas onde a paisagem se faz predominante. As músicas de Nino Rota, no filme, possuem diversas utilidades, indo desde momentos silenciosos até as valsas, sempre utilizadas no sentido de intensificar o que se passa em tela, culminando, junto a mise-en-scène, para um exagero cênico. 

O diretor Luchino Visconti, ao delimitar características advindas da ópera em seu filme, fez isso no sentido de construir uma tragédia pessoal, mas também familiar, aliás, trata-se da morte simbólica de uma determinada camada social, a aristocracia. O cineasta, a partir de elementos de encenação bem demarcados, assim como a utilização de uma trilha sonora essencialmente operística, denota à sua obra um tom de tragicidade. Observa-se assim uma visão íntima e subjetiva sobre um homem, o Príncipe Salina, já que todos acontecimentos são vistos e sentidos por seu ponto de vista. Nesse sentido, a mise en-scène rica em detalhes, assim como as atuações e o uso da melodia servem para intensificar a dramatização que envolve esse personagem e seus vínculos. Temos também , a reverência que Visconti possuía com a ópera vista sob forma da figura importante de Giuseppe Verdi, com esse sendo referenciado em diversos pontos emblemáticos do filme e fortificando seu aspecto operístico.

MORTE EM VENEZA (1971): UMA DRAMATIZAÇÃO FEITA A PARTIR DA ÓPERA

Em 1971, o diretor Luchino Visconti realiza sua obra, Morte em Veneza, trata-se de uma adaptação homônima de um livro de Thomas Mann, publicado primeiramente em 1912. Refere-se, aqui, a história de um homem de meia idade, Aschenbach, que, em uma viagem à Veneza, apaixona-se por um polaco, Tadzio, mesmo sem ter tido contato direto com o garoto. 

Assim como em O Leopardo (1963), Visconti aborda aqui assuntos referentes ao envelhecimento, bem como questões de finitude, que envolvem uma epidemia de cólera. Não somente, a questão do belo é abordada de forma mais direta na obra, uma vez que não se trata de uma beleza que surge somente da mise-enscène, mas sim da busca de um ideal de beleza transcendente, que acaba refletindo-se em toda encenação.

Ressalta-se ainda toda uma questão envolvendo a musicalidade da obra, utilizando melodias do compositor Gustav Mahler. O filme, em contrapartida a outras obras de Visconti, soa mais contemplativo e parte disso se deve a condição de amor platônico dos próprios personagens, no caso o que Aschenbach nutre por Tadzio, essa relação é toda pautada na observação e no subsequente encantamento. Ressalta-se, nessa admiração tida pelos personagens e na beleza ímpar de Tadzio, um trabalho do próprio diretor que, inclinado a desenvolver a obra, viajou por toda Europa procurando um garoto que refletisse uma beleza incomum e que fosse, de fato, a figura mais bonita do mundo. Essa procura foi documentada sob forma de um filme “À Procura de Tadzio”, que mostra o caminho até o ator Bjorn Andréssen, escolhido para o papel. 

Tratando agora de questões de mise-en-scène, logo ao início o diretor direciona o espectador ao personagem principal, Aschenbach, que parte para Veneza, onde a história se passará majoritariamente. Após isso, há toda uma contextualização do porto, da cidade, do hotel e da praia, pontos chaves para a construção da narrativa. Há, aqui, novamente um exagero cênico, mas diferente de outras obras de Visconti, essa excessividade se dá principalmente pela caracterização de alguns personagens, estes que, por sua vez, apresentam-se com uma carregada maquiagem branca, técnica recorrente em práticas teatrais de outrora, como no teatro elisabetano e também no teatro do século XVIII.

Exemplo da caracterização do personagem

Percebe-se via esses personagens destacados uma forma de atuação que se destoa das demais, uma vez que agem de forma não contida, contrariando totalmente personagens que mal ouvimos a voz, como  Tadzio e sua família. É importante ressaltar em toda essa questão de ação contida ou não contida a influência da classe, visto que os bem abastados agem com sutileza, em oposição aos personagens de  outras classes presentes na obra.

São também nesses pequenos detalhes que se evidencia o apreço que Visconti possuía com o teatro, partindo da composição dos ambientes para a dos personagens, pensando em seus figurinos e maquiagem. Aqui, assim como outras obras do diretor, há a presença do figurinista Piero Tosi. O diretor trata novamente sobre uma classe burguesa, e isso se define a partir de uma caracterização excessiva dos personagens, um exemplo disso é a mãe de Tadzio. Embora seja um filme carregado em suas composições, a concepção de beleza tida pelo diretor age como um dos pontos mais excessivos da obra, a beleza havia de ser algo perfeito, inalcançável.

De forma a transpassar para obra sua afeição por música, Visconti adapta o personagem escrito por Mann, Aschenbach, de modo com que este, originalmente um escritor, no filme passa a ser um compositor. No tocante a trilha musical da obra, há  composições de Gustav Mahler, Mussorgsky e também de Beethoven. Nota-se que aqui a utilização da música serve para dar fluidez a cenas que possuem uma certa distensão temporal, além de contribuir na concepção da atmosfera fílmica contemplativa, percebe-se isso em sequências pontuais, como a da praia, quando Aschenbach observa Tadzio a uma certa distância. A presença da musicalidade é, em Morte em Veneza, mais presente do que em outras obras de Visconti e isso se deve ao fato de se tratar, aqui, de uma obra menos dependente de diálogos. Percebe-se, portanto, a relevância que a trilha sonora possui em todo o contexto fílmico, corroborando para um ideal de excesso da obra.

Pensando na relação para com a pintura, observa-se , assim como em O Leopardo, a influência de pintores italianos do século XIX, os Macchiaioli e, especialmente, o pintor Giovanni Fattori. Luchino Visconti se apropria, pois, de outras artes visuais para incrementar sua obra, e as utiliza principalmente nas tomadas externas de seu filme, que se passam majoritariamente no ambiente da praia.

Pode-se dizer, portanto, que a inspiração para composição pictórica dos planos de seu filme advém da pintura, o que corrobora grandemente para a mise-enscène,  dado que os personagens se dispõem em tela como se fossem nada menos que representações artísticas, como pinturas ou até mesmo estátuas. Esses planos são somados a uma trilha musicalbem acentuada, o que faz com que por meio da música (instrumental ou canção) exista uma correspondência com a subjetividade do protagonista. É notório, pois então, que a utilização da música nesses planos contemplativos serve para intensificar emoções, seja nos personagens ou no espectador. 

Morte em Veneza foi um dos últimos trabalhos de Luchino Visconti, que faleceu no ano de 1976. É notório, na presente obra, a estima que Visconti tinha para com o gênero teatral e seus exageros e, dentre esses, principalmente a ópera, sempre referenciada de alguma forma em seus filmes, sobretudo devido ao uso primoroso da trilha musical. No longa-metragem  o diretor se utiliza de conceitos de  outros meios artísticos  como a música, o teatro e a pintura, de forma a compor sua obra a partir de uma mise-en-scène bem delimitada e de uma alta qualidade técnica. Ao longo da película são retomados assuntos já abordados por Visconti em outras obras, como a finitude, a beleza e, sobretudo, a burguesia. 

O filme diferencia-se de suas outras obras principalmente por seu uso do silêncio, isto é, por uma menor incidência de diálogos entre os personagens, fator esse intensificado pelo uso da trilha sonora. Conclui-se, portanto, a partir da análise de tal obra, a importância do gênero teatral operístico em sua concepção, fator este responsável por sua  característica ímpar, presente nesta e em várias outras produções da filmografia do diretor.

CONCLUSÃO

A partir da seleção proposta  de filmes do diretor italiano Luchino Visconti, percebe-se a afeição do artista por outras artes, por alguns temas comuns  e também por determinados movimentos históricos, como a Unificação Italiana. Dessa forma, através de elementos advindos de outras artes, principalmente do teatro operístico e da pintura, o diretor concebe boa parte de sua filmografia. 

Filmes como Senso, Rocco e Seus Irmãos, O Leopardo e Morte em Veneza evidenciam a arduidade e minuciosidade com que Visconti trabalha a fim de criar sua forma de arte. E nisso, fatores como a nacionalidade ajudam a construir os significados de determinadas obras, uma vez que a utilização de artistas italianos como Giuseppe Verdi e pintores intitulados Macchiaioli ajudam a compreender aquele mundo que Visconti não vivenciou, mas representa a partir de concepções da época. Ademais, tais elementos serviram, também, para uma demarcação única de mise-en-scène, tão característica de Luchino Visconti.

A partir de fatores essencialmente operísticos, como o uso do melodrama em Senso, a forte presença da musicalidade, o exagero cênico e as referências diretas das obras à ópera, colaboram para a concepção de qualidade presente em tais filmes, e isso de deve principalmente devido ao fato de esses fatores acrescentarem dramaticidade e intensidade nas ações vivenciadas pelos personagens e, consequentemente, relaciona se com as reações dos espectadores. Essas obras, a partir de elementos etéreos, como as composições de Nino Rota, os figurinos de Piero Tosi e a própria mise-en-scène de Visconti, que se comporta fazendo com que os planos funcionem individualmente como uma pintura, fazem com que a obra adquira qualidade e permaneça no imaginário do espectador.

REFERENCIAS

A PROCURA de Tadzio. Direção de Luchino Visconti. Itália, 1970. (30 min)

BAPTISTA, André. Funções da música no cinema: Contribuições para a elaboração de estratégias composicionais. Orientador: Sérgio Freire. 2007. 174 p. Dissertação
(Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.

BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode of Excess. New Haven/ London, Yale University Press, 1995.
LIMA, Marcelo. Rocco e seus corpos. ALCEU , Rio de Janeiro, n. 26, 2013.

MORTE em Veneza. Direção de Luchino Visconti. Itália: Warner Bros. Pictures, 1971.(130 min).

O LEOPARDO. Direção de Luchino Visconti. Itália: Titanius; 1963. (186 min).

PAULINI , Marcelo. A constelação Proust-Visconti. Orientador: Maria Betânia

Amoroso. 2010. 161 p. Tese (Doutorado em História e Teoria Literária) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem., Campinas, 2010. Disponível em:http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/270294/1/Paulini_MarceloMottPeccioli_D.pdf. Acesso em: 10 abr. 2021.

PESSOA, P. “A morte da beleza (em Veneza): A dialética do esclarecimento segundo Pasolini e Visconti”. In: Viso: Cadernos de estética aplicada, v. II, n. 5 (jul-dez/2008), pp. 16-32.

RIBEIRO, Carolina. O cinema e a história na na obra de Luchino Visconti: Uma análise de Senso, O Leopardo e O Inocente. Orientador: José Francisco Serafim. 2009.
95 p. Trabalho de conclusão de curso (Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009. Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/31219/1/TCC%20-%20Versão%20Final.pdf. Acesso em: 9 abr. 2021.

ROCCO e seus irmãos. Direção de Luchino Visconti. Itália: Titanius; França: Les FilmsMarceau, 1960. (180 min).

SENSO. Direção de Luchino Visconti. Itália: LUX, 1954. (123 min).

Deixe uma resposta