CRÍTICA | Grande Sertão (2023), Guel Arraes

Por Vitor Hugo Pereira

Redação RUA

Conhecido por suas adaptações literárias como O Auto da Compadecida (1999) e O Bem-amado (2010), Guel Arraes estreia com mais um longa adaptado da literatura brasileira, embora, em certos momentos, parece estar mais preocupado em estabelecer uma homenagem à obra referencial do que pensar em resoluções audiovisuais para a narrativa.

Grande Sertão (2023) é a adaptação do livro Grande Sertão: Veredas (1956), considerada pela crítica como obra-prima de João Guimarães Rosa. O filme conta a história de amor entre duas pessoas ‘fora-da-lei’, Riobaldo e Diadorim, mas com um fator diferente da versão literária: o cenário do sertão brasileiro é deslocado para um futuro distópico, sem local definido no país. A mudança da ambientação e época revela ousadia na escolha de Guel Arraes, mas que são importantes para os debates que o país passa: o cenário e o tempo do filme, embora colocados como futuristas, se pautam mais nas questões do presente do que necessariamente no futuro a partir dos temas que eles incorporam, já que temos cenários que simulam favelas e comunidades em uma distopia marcada pela desigualdade social e luta pelo poder.

Os temas abordados no longa – a situação das favelas, guerras do tráfico e confrontos de poder entre povo, governo e desigualdade – são tão atuais que o enredo poderia se passar hoje. Mas é justamente essa equivalência entre tempos que dá ao filme sua maior conquista, pois capta a atenção do espectador: são histórias universais, de mocinho e bandido, romance proibido, luta entre povo e sistema; porém, contadas por elementos comuns ao filme de ação brasileiro, seja na esquematização das ambiguidades intrínsecas das personagens ou nos temas trabalhados durante a trama. É um outro gênero que ainda não tinha sido explorado pelo diretor em sua filmografia, mas que, a partir de referências de obras já consolidadas como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, e Verônica (2009), de Maurício Farias, vai sendo construído de forma concisa ao reaproveitar temas das referências anteriores e inserir novas propostas, como a distopia.

Entretanto, a forma escolhida para que a história do filme fosse desenvolvida perde a potência da ousadia. O livro de Guimarães Rosa era narrado pela personagem de Riobaldo, numa espécie de relato/monólogo que se manifestava a partir da oralização da narrativa: ao invés de ser narrado como uma prosa escrita, a história se assemelhava à um causo, uma prosa falada. O filme de Arraes segue esse mesmo raciocínio e narra os eventos pela perspectiva da personagem, porém de uma forma “vazia”. A prosa feita pelo livro se estendia para questões da forma literária na época e com o projeto estético do autor pautada na discussão de como trazer para a escrita toda a fala e psiqué do homem sertanejo. É então que a narrativa é construída a partir de sua fala; isto é, o escrito passa a ser atravessado pelo falado. No filme, há apenas cenas e cenas com o personagem de Riobaldo (apenas ele) contando algo que será posteriormente dramatizado; quando não, é o movimento inverso, e a personagem comenta o que foi visto pelo espectador.

O aspecto formal da narrativa no filme não parece demonstrar preocupação imagética: a inserção de cenas que simulam o relato da personagem sobre a história não modificam ou acrescentam às discussões do filme; ainda assim, são elas que conduzem o longa, pois introduzem os momentos-chave do filme, ainda que pareça muito mais como uma homenagem à obra literária, o que acaba perdendo seu aspecto cinematográfico em detrimento da transposição de um processo literário sem considerar os aspectos audiovisuais; afinal, não são as histórias dos filmes narrativas por imagens?

Ainda assim, há muitos fatores em Grande Sertão que se destacam. As cenas de ação são construídas com cortes rápidos, permeados pela trilha sonora que abarca o funk e música eletrônica, dando ao filme o tom de ação na medida certa, ao ser ágil o bastante para não perder o ritmo da ação, mas cuidadoso o suficiente para aproveitar os cenários em que a ação acontece; pelos enquadramentos propostos, o espectador consegue se localizar dentro dos espaços por mais frenéticas que sejam as cenas de ação e, quando há confusão quanto ao espaço, é proposital, geralmente para demonstrar as ruelas, becos dos barracos em que as fugas e os confrontos acontecem. As atuações, entre o tom teatral de algumas personagens e mais realista de outras, acrescentam maior poeticidade na obra ao não optar pelo puro naturalismo presente na maioria dos filmes de ação; pelo contrário, o drama da personagens é elevado, em certas ocasiões até referenciando o melodrama, mas ainda de acordo com a proposta temática e estética do longa.

Grande Sertão é o longa mais ousado de Guel Arraes, seja pela exploração – praticamente inédita em sua carreira de diretor – do gênero ação ou pela releitura feita de uma obra clássica da literatura, mas perde sua potência justamente quando deixa a ousadia de lado e se subordina às homenagens à obra, pensando o filme mais como adaptação do que uma obra audiovisual em si. Um filme de ação, crime e drama, tão comuns no cinema – e realidade – do Brasil; realidade essa também do filme, que, ao aderir elementos futuristas em sua composição, mostra que o presente é tão distópico quanto o futuro.

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