Por: Claudio Roberto
A introdução de uma das personagens mais icônicas da cultura pop inicia-se na década de 60 com o longa de animação 101 dálmatas (1960). A personagem Cruella De Vil metaforiza uma das problemáticas da alta-costura que perpetua em debate até os dias atuais, o uso da pele de animais para a confecção de vestuários.
Cruella, ao longo dos anos, será retratada na indústria cinematográfica como uma personagem reflexo dos dilemas de seu tempo, e também de problemáticas que posteriormente serão discutidas na indústria da moda.
Esta análise não tem o objetivo de fazer uma crítica cinematográfica rigorosa em relação aos filmes, mas sim analisar a forma como a personagem é retratada em tais obras, suas inspirações e críticas à indústria da moda. Separei em três partes visando a divisão filmográfica da personagem em 101 dálmatas (1996), 102 dálmatas (2000) e Cruella (2021).
Cruella (2021): Vivienne Westwood
Pela primeira vez, em 60 anos de criação da personagem, conhecemos Estella. O fato do filme revelar o verdadeiro nome de Cruella refletirá no desenvolvimento do enredo, aqui não sendo uma vilã que sacrifica animais, mas sim uma personalidade brilhante que luta contra uma ordem estabelecida.
Estella é uma criança brilhante e excêntrica. Após um acidente envolvendo sua mãe, a personagem vaga pelas ruas de Londres sem perspectiva até encontrar os personagens Jasper e Horace. Posteriormente, descobrem o dom da jovem e, assim, veem uma boa oportunidade de o utilizarem para a aplicação de golpes para sua sobrevivência. Ao longo dos anos, Estella sonha em se tornar uma estilista renomada junto ao seu desejo de trabalhar com a Baronesa, uma grande estilista de alta-costura. Após conseguir tal feito e perceber que a antagonista é uma figura com um ego inflado e autoritário, a protagonista cria então seu alter ego “Cruella”, uma estilista independente que balança a crítica de moda londrina.
O filme se passa no auge das efervescências do movimento punk na Londres de 70, e é exatamente na figura mais marcante do punk da alta costura que a direção de arte e figurinos irão se inspirar, a icônica Vivienne Westwood.
Com um estilo de rebeldia e autenticidade, a marca da estilista Vivienne Westwood promoveu nas ruas de Londres uma onda de vestimentas anticapitalistas. Pegando vestuários já feitos e descartados, a estilista os transformou ao longo dos anos em uma marca única voltada aos jovens desacreditados e revoltados com o sistema capitalista.
Aqui, o longa não aborda a problemática do uso de animais na moda, como já feito nos filmes anteriores a qual a personagem aparece, mas retrata uma personagem que utiliza qualquer recurso já produzido para confeccionar peças lendárias. Percebemos a construção de uma Cruella mais humanizada, desde a revelação do seu nome verdadeiro, Estella, às suas intenções, uma proposta que já vem sendo desenvolvida em filmes de vilãs da Disney.
Já a antagonista da obra, a Baronesa, é inspirada pela marca de alta costura francesa Dior. Com silhuetas justas e suas curvas ao estilo “new look”, a baronesa representa aquilo que a Dior dos anos 70 se propunha a produzir, peças de alta costura voltadas ao destaque do poder e à “beleza” exclusiva das mulheres da elite.
Este embate entre Cruella e Baronesa metaforiza a moda deste período: inovação, rebeldia e liberdade frente ao conservadorismo das elites. O universo punk foi crucial para sacudir a ideia da elite como a única detentora da produção de moda.
101 dálmatas (1996): John Galliano
Outrossim, com um roteiro fraco e uma avaliação da crítica pior ainda, uma das poucas coisas que salva o primeiro live-action da história dos dálmatas é não somente a direção de arte, mas principalmente a atuação de Glenn Close. A atriz faz do filme o seu espetáculo que, a meu ver, se consagra como a melhor performance da Cruella já vista no audiovisual.
No auge da “golden age” da moda, na década de 90, Cruella metaforiza e escancara o maior traço dos grandes estilistas e das majors da moda, a contradição.
Neste filme, Cruella é uma consagrada estilista de Londres, sem filhos, sem marido e sem família, sua vida é exclusivamente dedicada à moda. Ao saber que uma de suas funcionárias, a personagem Anita, irá ganhar filhotes de dálmatas, a vilã então começa sua saga obsessiva para a confecção de um casaco com pele de dálmatas.
A contradição constrói-se no momento em que a Cruella possui uma personalidade forte, independente e de uma grande genialidade artística na confecção de sua marca, mas ao mesmo tempo carrega uma ideia autoritária e abusiva da utilização de animais para a criação de seu acervo.
As referências e inspirações ao figurino de Cruella são claras ao estilista londrino John Galliano. Marcado por polêmicas e preconceitos, o fashionista é para moda o equivalente a Lars Von Trier para o cinema: Galliano divide uma linha entre a arte e a ética em que ora extrapola uma e ora abusa de outra.
A contradição de ícones fashion se dá à medida em que contribuem para o pensamento de uma moda progressiva, artística e ativa (retratando muitas vezes a guerra e o caos dos Homens) com o poder de impactar o que é imposto pelo sistema, porém contribuindo pessoalmente com preconceitos e abusos de apropriação cultural.
102 Dálmatas (2000): Mugler e Alexander Mcqueen
A sequência do longa 101 dálmatas (1996) repete o mesmo estilo já feito no filme anterior, porém, nesta obra, além de novamente trazer a crítica do uso de animais na moda, a passarela não escapa de retratar o que estava acontecendo e o que iria acontecer nos anos seguintes na indústria da moda.
Nesse longa, Cruella, logo de início, depois de ser presa e levada para a reabilitação no filme de 96, sai da prisão enfim livre da obsessão de usar pele de filhotes, começando uma onda de publicidade no estilo “Cruella ama os animais”. Ao ouvir as badaladas do Big Ben, a vilã logo sai de seu transe hipnótico e volta a assumir a sua verdadeira face. Após isso, convida o estilista Jean-Pierre Le Pelt a ajudá-la na saga da captura dos filhotes de dálmatas.
Aqui os figurinos apresentam ainda mais volume e poder a imagem de Cruella, visando inspirações nítidas ao acervo da marca francesa Mugler e de uma das personalidades mais marcantes da moda, o estilista Alexander McQueen.
A inovação e a liberdade artística fez da década de 90 um acervo experimental da alta-costura e da performance, e quem usou e abusou de transformar seus desfiles em shows artísticos com temas sobre a natureza, a humanidade e a tecnologia, foi o estilista londrino McQueen.
Há um momento no longa em que ativistas invadem o final de um desfile de Jean-Pierre Le Pelt com cartazes escritos “Le Pelt tem sangue nas mãos” e “Le Pelt veste sangue”, reforçando ainda mais a militância em torno da caça animal.
Um episódio marcante deste tipo de protesto aconteceu no desfile da Victoria’s Secret em 2002 com ativistas da entidade PETA (People for the Ethical Treatment of Animals) invadindo a passarela e levantando cartazes como “Gisele, coberta de lixo” e “Gisele: escória de pele” após a modelo ter assinado um contrato com a marca Blackgama, que fazia uso da pele animal em seus acervos.
Logo após o escândalo, a modelo quebrou o contrato com a marca e devolveu todo o dinheiro que havia recebido em face às suas bandeiras de sustentabilidade já levantadas na época.
A moda nos dias atuais
É crescente o número de marcas que estão abandonando o uso da pele animal, e isso evidencia que aquela crítica apresentada no longa de 1961 ainda continua motivo de debate na indústria.
Felizmente, cada vez mais as Fashions Weeks estão banindo o uso de pele animal em seus shows, à medida que avançamos, as marcas estão tomando consciência do uso e optando pelo uso de sintéticos que simulam a textura do pelo animal.
Uma das estilistas marcantes da atualidade que sempre levantou a bandeira da sustentabilidade na moda, é Stella McCartney.
Nas últimas semanas, de 23 a 26 de janeiro, a Fashion Week de Paris levantou uma discussão polêmica a partir de um desfile da Schiaparelli que utilizou cabeças de animais (feitas artificialmente com sintéticos). As peças fazem parte da inspiração do estilista Daniel Roseberry na divina comédia de Dante. Alguns críticos alegam uma apologia à caça, enquanto a própria marca deixa bem claro a sua inspiração nas metáforas dos animais no inferno da obra de Dante. O próprio grupo PETA, o mesmo do protesto de Gisele, saiu em defesa da marca.
REFERÊNCIAS
LONDRINA, F. DE. Gisele Bundchen é alvo de protesto em Nova York | Folha de Londrina. Disponível em: <https://www.folhadelondrina.com.br/geral/gisele-bundchen-e-alvo-de-protesto-em-nova-york-424643.html>. Acesso em: 26 jan. 2023.
Casacos de pele estão com os dias contados na moda internacional? BBC News Brasil, [s.d.].
Climão na alta-costura! A polêmica da Schiaparelli passada a limpo – ELLE Brasil. Disponível em: <https://elle.com.br/moda/climao-na-alta-costura-a-polemica-da-schiaparelli-passada-a-limpo>. Acesso em: 26 jan. 2023.
101 Dalmatas. Direção: Clyde Geronimi, Hamilton Luske, Wolfgang Reitherman. Roteiro: Dodie Smith, Bill Peet. [S. l.]: Disney, 1961. Disponível em: https://www.disneyplus.com/pt-br/series/disney-101-dalmatas/1ry2z2HF6ad9. Acesso em: 26 jan. 2023.
101 Dalmatas. Direção: Stephen Herek. Roteiro: John Hughes. [S. l.]: Disney, 1996. Disponível em: https://www.disneyplus.com/pt-br/movies/101-dalmatas/qu6taOyKF29l. Acesso em: 26 jan. 2023.
102 dálmatas. Direção: Kevin Lima. Roteiro: Kristen Buckley, Brian Regan. [S. l.]: Disney, 2000. Disponível em: https://www.disneyplus.com/pt-br/movies/102-dalmatas/6Ljtg0iqG58i. Acesso em: 26 jan. 2023.
CRUELLA. Direção: Craig Gillespie. Produção: Roteiro: Jez Butterworth, Dodie Smith. [S. l.]: Disney, 2021. Disponível em: https://www.disneyplus.com/pt-br/movies/cruella/2GJTZuO8I01c. Acesso em: 26 jan. 2023.
Looks de “Cruella”: filme tem vestido com 5 mil pétalas e “provas” em cozinha de Emma Stone. Disponível em: <https://www.purepeople.com.br/noticia/moda-de-cruella-5-mil-petalas-em-look-e-curiosidades-do-filme_a322467/1>. Acesso em: 27 jan. 2023.