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Por: João Lucas Casanova
Redação RUA
Nos últimos meses, tenho tentado preencher algumas lacunas da filmografia de Frank Capra que me faltam. O cineasta, imigrante como tantos outros personagens centrais da história de Hollywood, pode ser considerado o mais representativo expoente do “espírito americano” da primeira metade do século XX. Ao menos em intenção. Temo soar monotemático ao escrever novamente sobre cinema e identidade americana (meu último texto discute a questão do saudosismo), mas algo no presente momento, seja pelo contexto eleitoral ou pela evidência do esgotamento, aponta para a relevância da discussão. Quando penso em Capra, algumas das questões levantadas na atual conjuntura, especialmente no que tange à concretude do “sonho americano”, elucidam-se pela capacidade do cinema do diretor de comportar em si várias das ambivalências desse império — e por extensão o que ele exporta ao mundo. Entender sua obra como parte de um contexto histórico é essencial, mas creio que restringi-la a isso (“o cineasta do New Deal”) é redutor. Afinal, mesmo dentre um cinema de equilíbrio como o de Capra existe espaço para meandros.
Antes de iniciar sua leva de filmes que põem em destaque o heroísmo do homem comum americano, o diretor realizou no início da década de 30 três filmes protagonizados pela brilhante Barbara Stanwyck: A Mulher Miraculosa (1931), Mulher Proibida (1932) e O Último Chá do General Yen (1932). As obras discutem problemas sociais como o uso hipócrita da religião, o adultério e a intolerância cultural com sensibilidade, deslocando o olhar para a vivência feminina. Desse mesmo período datam Dama por um Dia (1933), refilmado em 1961, e Loura e Sedutora (1931), uma proto-screwball comedy (gênero em que Capra seria a pedra basilar com Aconteceu Naquela Noite, de 34) que sintetiza vários dos tópicos caros ao diretor: a influência da imprensa (para o bem e para o mal), a crença nos valores de coletividade em detrimento do individual e um amor solidificado em meio a adversidade, prenunciando a faceta pela qual Capra seria mais conhecido.
Dessa fase, talvez o filme mais exemplar da associação do cineasta com os esforços para pensar a reconstrução de seu país, durante a Grande Depressão, seja Loucura Americana, de 1932. A história de um banco preocupado com seus clientes (o elemento mais fabular do cinema do diretor!) e em risco de falência, gerenciado por um self-made man altruísta que representa tudo o que a América possuía de mais elevado, exemplifica a visão de Capra sobre a sociedade de seu tempo: é preciso ter mais fé um nos outros. Na obra, o ritmo se torna cada vez mais frenético conforme o tempo passa — os curtos e expressivos planos da multidão avançando enfurecida ao banco mantêm seu impacto inalterado ainda hoje. No fim, o mundo é salvo pela cadência: em tempos de dificuldade, o cineasta faz um aceno ao senso de coletividade e patriotismo. Aqui, nada se inverte. Os patrões continuam patrões e os funcionários, funcionários. A coletivização que Capra propõe é a da oportunidade. Sendo um imigrante cuja vida deslanchou na “nação de imigrantes” (como escreveria JFK), o diretor ítalo-americano era um verdadeiro adepto dos valores defendidos pelo americanismo. Quanto disso é propaganda ideológica e quanto é otimismo, creio não ser possível responder. Defendo, no entanto, o autêntico como força motriz de seu cinema — mesmo quando o cinismo caberia mais.
É argumentável que os traumas da recessão tenham se tornado o grande tema da obra de Capra. Mais interessante é pensar nas formas encontradas pelo diretor para destrinchá-los. Na segunda metade da década de 30, pelo menos três filmes se iniciam sob as mãos detestáveis dos burocratas; estes sim os verdadeiros vilões da filmografia do diretor. Em O Galante Mr. Deeds (1936), um distante parente milionário falece e toda grana sobra para o inocente e interiorano Mr. Deeds. O filme começa com os advogados do falecido tramando formas de tirar vantagem da situação. A burocracia se interpõe, como tantas outras vezes voltaria a fazer, nas epopeias de joões-ninguém do cineasta. No enredo, típico do contexto da crise, a noção de valor é posta em cheque ao brincar com o problema que dinheiro pode se transformar num período em que não o ter parecia ser o grande problema. Ao posicionar no centro de seu plano o homem comum e, por extensão, no coração da América, Frank demonstrava desacreditar no “bem-sucedido” desassociado de um bom coração. E isso é algo que os protagonistas do cineasta, especialmente dessa fase, tem para si e para os outros.
Do Mundo Nada Se Leva, de 1938, dilata as questões de altruísmo caras ao diretor. Vencedor do Oscar de Melhor Filme e primeira colaboração entre Capra e James Stewart (figura central da feição que seu cinema toma entre o fim dos anos 30 e os anos 40), o filme inicia com um banco em nada parecido com o de Loucura Americana; ali, magnatas discutem como proceder com seu lucro já exacerbado. Uma excêntrica família, em que todos fazem o que bem entendem sem se prender às amarras do capital, entrepõe-se ao projeto de expansão dos endinheirados. O enredo gira em torno dos esforços do banco em fazer essa família vender a propriedade, que recusa independente do valor (novamente a instituição do dinheiro é questionada). A coisa toda se desenrola numa comédia amalucada que mistura os dilemas familiares e da nação como só Capra sabe fazer.
A princípio, a filosofia de vida do patriarca da família causa certo estranhamento. Afinal, é o caso de um herói cujos ideais são pautados na desassociação total de um estilo de vida capitalista, central ao espírito americano. Não é de surpreender, portanto, a existência de uma cena em que o pai fala quase que diretamente com o público. Numa poltrona, enquadrado de modo que sua face sábia preencha todo o quadro, o patriarca é indagado pela filha sobre como ele enxerga os problemas do mundo. O senhor culpa os “ismos”, como o comunismo, o fascismo e o nazismo (não podemos nos esquecer de ser esse um filme lançado muito próximo ao início da guerra), que separam o indivíduo do equilíbrio. Nessa cena, Capra despista qualquer sinalização a uma abordagem mais progressista ou relacionada, no menor grau que seja, à ideias que não as americanas por excelência. No fim de Do Mundo Nada Se Leva, assim como é de praxe em seu cinema, qualquer combatividade é combatida e a corda tende à conciliação. Sua forma de pensar a América são as pessoas, e enquanto partes de um mesmo grupo, de uma mesma nação, suas diferenças são facilmente diluídas em torno de uma noção exterior a elas. Como resposta a problemática que já existia em seu tempo e que creio só ter ampliado, Capra fornece o idealismo. Será que basta?
Outro “queridinho” de sua filmografia é A Mulher Faz o Homem, de 39, cujo título original é tão elucidativo quanto a versão brasileira: Mr. Smith Goes to Washington. Aqui também o começo pertence aos magnatas individualistas — a Capra o importante é que não se encerre como começou. Nesse filme, talvez o cineasta apresente seu lado mais crítico ao americanismo, e por isso creio ser também uma das mais autênticas de suas fábulas idealistas. Um outro zé-ninguém (James Stewart) é empossado senador de seu estado, em razão da morte repentina do antecessor. A escolha por Smith segue dois propósitos: a de ter um homem simples, logo manipulável, nas mãos dos corruptos; e o outro é o fascinante sucesso que o rapaz interiorano (e escoteiro) faz com as crianças. Capra põe à prova uma visão que ele próprio ajudou a construir em seus filmes: a de que com esforço tudo se alcança. Smith, um homem repleto de boas intenções e vontade de mudar o país, encontra-se encurralado pela ineficiência da burocracia e pela corrupção de seus colegas senadores. Acredito realmente que aqui o idealismo do cineasta encontra quase um limite. Os minutos finais, que parecem se fechar cada vez mais na irresolução, causaram-me uma inquietação rara, mesmo que o fim não pudesse ser outro. Acaba que o bom coração vale por mil corações de pedra, e ao menos na ficção os mocinhos vencem. A fórmula do cineasta não apresentava sinais de cansaço e, com uma guerra batendo à porta, suas defesas implacáveis de um ideal americano se mostravam mais urgentes do que nunca ao governo Roosevelt.
A série de documentários Why We Fight (1942-45), propaganda diretamente encomendada pelo governo estadunidense, foi considerada por André Bazin, crítico francês, “tão fascinante como um romance policial”. Essa fase documental de Capra é elucidativa da capacidade que seu cinema havia adquirido de usar a forma em virtude da maximização do discurso. Bazin chama atenção para o “comentador invisível” dos documentários, um narrador que seleciona o material de arquivo e imputa sua ideologia passando quase que despercebido ao espectador, ampliando a força da mensagem propagandística. A única vez em que assisti a um dos filmes da série, há uns quatro anos, lembro de achar interessante principalmente enquanto registro histórico de uma construção. A faceta de propaganda do american way of life, presente em maior ou menor grau durante parte significativa de sua filmografia, mostra-se nesses documentários de maneira cristalina e ativa. Mas é no seu cinema de ficção que essas ideias são plenamente difundidas e digeridas na América e, consequentemente, no exterior.
Após o fim da guerra, Capra retorna com o filme que talvez seja hoje seu sucesso mais estrondoso: A Felicidade Não Se Compra, de 46. Os temas são os mesmos, seu controle total da narrativa clássica também. Há, no entanto, algo que diferencia este dos demais. James Stewart faz um homem no fundo do poço, na véspera de natal, cuja vida pregressa de doação e altruísmo vamos acompanhando em flashbacks. Nesse caso, a mera ação humana não é suficiente: é necessário intervenção dos anjos e estrelas para salvar a boa alma antes que seja tarde demais. O método de convencimento é mostrar ao personagem o que sua cidade natal, seus amigos e familiares, teriam se tornado caso sua existência nunca tivesse ocorrido. Das mais mágicas obras do cinema sobre a fé nos milagres. É um filme que sintetiza o cinema do Capra enquanto segmentação do americanismo, mas que adquire uma outra instância justamente por atribuir a esses elementos uma ação exterior à simples lógica mundana. Na realidade, é essa magia de natal que dá base para que sua representação do espírito americano seja factível mesmo entre os que veem com olhos menos afetuosos seu cinema. Pontuo, ainda assim, não ser um consenso, como (ainda bem) nunca é. Hoje mesmo, ao conversar com uma professora sobre a obra de Capra, ela me comentou achar o clássico natalino com Stewart insuportável com todo o sentimentalismo piegas. Em um mundo tão cínico, adentrar o universo idealista do diretor requer mesmo um esforço e um certo desprendimento acerca de tudo de detestável que essa ideologia espalhou e espalha por aí. Ainda acho que aqui, nessa fonte, as coisas são tão afáveis quanto poderiam ser.
Tentei perpassar num relance por diferentes momentos da filmografia do diretor. Ao assistir seus filmes, é possível perceber mudanças entre o Capra do pós-guerra e o Capra do começo dos anos 30. Alguns comentam sobre um certo didatismo que seu cinema abraçou, tentando sempre ampliar essa conexão quase que pedagógica com o público americano. Penso ser verdade, embora admire a forma como esse didatismo é bem realizado enquanto artifício formal. Se as mensagens de esperança, coletividade e amor ao próximo são a “finalidade” do cinema do diretor, é pelo controle absoluto da linguagem clássica que ele chega lá. No começo do texto, comentei sobre como observo uma relação forte entre sua visão de América e as ambivalências desse império. Com isso, quis dizer que as contraposições que existem em sua obra, o idealismo ora exacerbado, ora autêntico como poucas coisas em Hollywood são, explicam a dualidade do dito “sonho americano”. Se por um lado ele representa a possibilidade de mudança de vida, do sonho de justiça e igualdade, representa também o quão restrito e aumentado esse discurso é.
Acredito, ainda assim, que seu cinema possui vitalidade para se sobrepor às inconsistências da ideologia que abraça tão ferozmente. É antes de tudo uma fábula, mais sobre como as coisas deveriam ser do que a forma como são. O cinismo do atual cenário sócio-político, os excessos da “equilibrada” América provados pela história, afasta-nos da crença de um mundo essencialmente bom como o sonhado por Capra. Questiono-me se a desilusão seria a resposta para isso ou para qualquer coisa que seja. Admito que, entre ambas, apego-me ao idealismo enquanto ainda me é palpável. No fim, é sempre melhor ter algo no qual se segurar.
REFERÊNCIAS:
BAZIN, A. Sobre Why We Fight. In: O que é o cinema? São Paulo: Ubu Editora, 2018. p. 45–46.