Não é de se espantar que Alexander Sokurov nos traga, mais uma vez, o melhor que o cinema russo contemporâneo tem a oferecer. Conhecido por seu semi-documentário Arca Russa (2002), filmado em uma única tomada de 96 minutos, e por sua adaptação da tragédia goethiana Fausto (2011), Sokurov agora engaja em uma animação fantástica do mais alto nível experimental: Conto de Fadas (2022). A trama gira em torno de um encontro um tanto inusitado: Hitler, Mussolini, Stalin e Churchill se reúnem no Purgatório e dão início a uma conversa repleta de implicâncias, brigas, reflexões e até gracejos.
O quarteto volta à vida
Por mais que estejamos habituados a ver fotografias de personalidades tirânicas nos livros de história ou em documentários na televisão, parece inevitável que sintamos um leve desconforto ao vermos tais genocidas em movimento. Superada a estaticidade da imagem fixa, nossos personagens agora adotam volatilidade – podem perambular livremente pelo Purgatório, interagir entre si, contar piadas e dizer qualquer coisa que venha à mente. Projetados na tela, vemo-los voltando à vida – há como não se incomodar com isso? Não estamos de frente com a representação chapliniana de Hitler, em O Grande Ditador (1940), muito menos como Hitler brincalhão de Jojo Rabbit (2019), de Taika Waititi: estamos cara a cara com o próprio Führer, com seu feitio autoritário, anti-semita, belicoso. E não só ele – Mussolini, Stalin e Churchill o acompanham!
Entristecer-se-á aquele que perceber que os personagens na tela nos incomodam não por estarmos distantes do espírito fascista que reinou na primeira metade do século XX, mas por estarmos mais próximos a ele do que nunca. Basta avaliar, por exemplo, o cenário político europeu e notar como a extrema-direita vem dominando os holofotes: na França, o Reunião Nacional, partido de Marine Le Pen, vence o primeiro turno da eleição legislativa; na Itália, Giorgia Meloni comanda com seu ultraconservadorismo. Será que estamos tão distantes assim da essência que dominou o século passado?
Imagens de arquivo e tecnologia deepfake
É imprescindível pontuar como Sokurov, graduado em história antes de se tornar cineasta, soube manusear com precisão o material que tinha em mãos. Em entrevista dada a Jordan Cronk, no Festival Internacional de Cinema de Locarno, o diretor declara ter levado dois anos para assistir às inúmeras imagens de arquivo e passar por fonogramas e materiais impressos, nos quais baseou o seu roteiro. Sua experiência com materiais de arquivo o inspirou a fazer uso da tecnologia deepfake para manipular as expressões e as falas dos nossos personagens – técnica que ainda não foi totalmente dominada pela indústria cinematográfica, mas que sacia as exigências de uma animação.
Contando com uma equipe de apenas cinco animadores russos, o longa, majoritariamente em preto e branco, desperta um ar bastante familiar. Os traçados do Purgatório, dos portões para o Céu, da floresta lúgubre e no geral, de toda a arquitetura do local, nos leva diretamente à estética soviética da segunda metade do século XX: lembramo-nos de artistas como Yuri Norstein¹ (Hedgehog in the Fog, 1975) e Ivan Maximov (Bolero, 1992). Sokurov, assim, não só faz bom uso da tecnologia hodierna como também resgata a cultura de animação soviética, colocando-nos em meio a um verdadeiro êxtase estético.
Além do mais, uma animação pautada em grande parte no uso da tecnologia deepfake nos traz questionamentos acerca dos rumos que a produção fílmica pode tomar: Seria apropriado usá-la na manipulação de figuras históricas? E quanto aos atores falecidos, poderíamos ressuscitá-los em tela? Quais seriam os limites éticos do uso dessa tecnologia pela indústria cultural? Seria necessário reformular a legislação vigente de modo a adaptá-la às novas exigências do mercado? Conto de
Fadas serve como um pontapé explícito para as reflexões acerca do uso das novas tecnologias no cinema, principalmente no que cerne ao deepfake, uma ferramenta ainda pouco explorada esteticamente.
Jesus Cristo e Napoleão
Além do quarteto infame, nos deparamos também com dois personagens um tanto inesperados, mas repletos de simbolismo: Jesus e Bonaparte. Alhures, Sokurov já demonstrou grande apreço pelo caráter dos franceses, principalmente o de Napoleão, empregando-o também no seu longa Francofonia (2015). Estranha-se ver, porém, Jesus Cristo nos corredores do Purgatório: o que faz ali?
Ainda nos primeiros minutos da animação, Sokurov traça um diálogo entre Hitler e Jesus, colocando, posteriormente, o mesmo frente a frente com Stalin (ousado, não?). Previsivelmente, nenhum dos dois ditadores demonstram qualquer respeito frente a tão santa personalidade, mas o espectador certamente não está preparado para os ver ultrajando o filho de Deus. É uma cena que incomoda.
Um filme polifônico
A polifonia de Conto de Fadas é algo que encanta os mais variados espectadores – Sokurov foi cuidadoso o suficiente para preservar o idioma de cada um dos seus personagens: o russo áspero de Stalin; o alemão com seu tom austero; o inglês crispado de Churchill; e o italiano, que tanto se aproxima do nosso português. E o diretor não para por aí: ele toma o cuidado de preservar o aramaico de Jesus Cristo, que o geme em seu leito, e o francês do estratégico Napoleão. Em 78 minutos, mergulhamos nesse mar polifônico que nos arrebata e nos arrebenta, transmitindo choques elétricos aos mais afiados ouvidos.
Integrando tantos idiomas em uma só narrativa, Sokurov nos tira do ninho – somos posicionados no meio desse turbilhão de fonemas desconhecidos para boa parte dos espectadores; em contato direto com os idiomas do mundo que os brasileiros, em sua maioria, não ouvem com frequência. O Purgatório, repentinamente, nos parece uma verdadeira Torre de Babel². Dessa vez, porém, por mais variadas que sejam as línguas faladas, cada um entende ao outro perfeitamente – apenas nós, observadores, é que dependemos das legendas.
Além da riqueza idiomática da animação (algo que tem se tornado cada vez mais escasso na indústria cultural), é curioso perceber como nos tornamos capazes de identificar exatamente qual personagem interage com qual sem que estes estejam visíveis na tela, possibilitando, assim, uma maior autonomia do “áudio” e do “visual” em meio a tamanho amálgama linguístico.
Adotando um olhar histórico, percebe-se que, entre tantos manipuladores políticos empregados por Sokurov, há uma personalidade em especial que dialoga diretamente com a polifonia cinematográfica (ou melhor, com a ausência dela): Benito Mussolini³. Durante seu regime fascista, que se estendeu de 1922 a 1943, Mussolini não se conteve em atacar toda e qualquer forma de cultura, principalmente o cinema, que logo se tornou veículo de propaganda política⁴. Não sendo o bastante, o Duce obrigava a dublagem para o italiano de todo e qualquer filme importado, como meio de “proteger a indústria nacional” – evidentemente, o impacto ideológico foi muito maior do que o retorno econômico, como meticulosamente arquitetado. Curiosamente, ainda hoje é muito comum que o país prefira filmes estrangeiros dublados aos legendados.
Sokurov e La Boétie
É interessante ressaltar como o filme de Sokurov parece traçar um paralelo com a obra de um dos mais importantes humanistas do século XVI: Étienne de La Boétie (1530-1563), amigo íntimo de Michel de Montaigne, autor dos Ensaios (1580-1588). Em Discurso da Servidão Voluntária (circa 1548), La Boétie expõe como a submissão à servidão seria meramente voluntária, ou seja, poder-se-ia recusá-la a qualquer momento. Calcada no despotismo, assim, a tirania se destruiria sozinha a partir do momento em que os indivíduos se recusassem a consentir com sua própria escravidão. Essa relação nos faz lembrar uma das cenas mais agitadas em Conto de Fadas: um verdadeiro mar de gente – todos frenéticos e excitados com a possibilidade de servir seu líder – aos pés dos quatro grandes genocidas, que revivem toda a glória e adoração recebidos em vida. É com base nessa servidão e devoção (espantosamente semelhantes ao fanatismo hodierno) que ditadores – como Pinochet, Hussein, Gaddafi e Kim Jong-un, além dos já citados – alcançam e se mantêm no poder. Diante disso, La Boétie ainda ousa dizer aquilo que muitos de nós gostaríamos de acreditar:
“[…] que Ele reserva nos abismos um castigo especial para os tiranos e seus cúmplices, pois nada é mais contrário a um Deus bom e clemente que a tirania.” (LA BOÉTIE, op. cit., p.72)
Sokurov brinca maleficamente com essa possibilidade ao colocar o polêmico quarteto no Purgatório – nem no Inferno, como julgava La Boétie, nem no Céu, insinuando que tais almas sebosas ainda poderiam ser salvas!
Teriam eles salvação?
Sokurov desenvolve a narrativa em feito aporético, ou seja, nossos personagens não transpassam nem os portões do Céu nem os do Inferno – caberia então a nós, espectadores, julgar, assim como La Boétie, o destino de cada um?
Independente se cairão em desassossego ou se serão perdoados, é indiscutível a importância que Sokurov exerce na indústria cinematográfica com Conto de Fadas. O diretor realiza uma obra provocativa, que instiga reflexões sobre o passado sombrio do século XX e sobre a personalidade de tão infames figuras históricas, fazendo sobreviver na memória de cada um aquilo que jamais deve ser esquecido, reinterpretado, ou perdoado: o fascismo.
Torquato Tasso, poeta italiano do século XVI, ainda nos permite traçar uma última reflexão que dialoga com a mensagem transmitida por Sokurov:
“A fama, que com a doçura de sua voz vos encanta, arrogantes mortais, e vos parece tão bela, não passa de um eco, um sonho ou, antes, a sombra de um sonho que se dissipa e se esvai com o vento.” (TORQUATO TASSO, Jerusalém libertada, canto XIV, estância 63)
Nosso poeta não poderia ter mais razão, mas note como em Conto de Fadas, a fama – essa tirânica – talvez não seja a sombra de um sonho que se dissipa com o vento. Sokurov nos mostra que ela é capaz de ecoar até mesmo no Purgatório.
¹ Yuri Norstein vem trabalhando em uma adaptação de O Capote (1842), do escritor russo Nikolai Gogol, desde 1981, em parceria com sua esposa, desenhista e companheira de projeto, Francheska Yarbusova. Os mais de 40 anos de dedicação nos renderam até o momento 65 minutos de animação.
² Gênesis 11:1-9.
³ Mussolini inaugura, em 1937, a Cinecittà, uma versão italiana de Hollywood, com a declaração de ser “o cinema a arma mais forte do regime fascista”.
⁴ Sole (1929), de Alessandro Blasetti, tornar-se-ia o primeiro longa político vultoso do regime fascista.
Por Daniela Canhête Brandão Graduanda em Engenharia da Computação, UFG
REFERÊNCIAS (seguindo norma ABNT):
LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. Comentários: Claude Lefort. Pierre Clastres e Marilena Chauí. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982.
TASSO, Torquato. Jerusalém Libertada. Tradução:José Ramos Coelho. Editora Literatura Clássica. Rio Grande do Sul, 2021.