A Voz do Silêncio (Koe no Katachi): um ponto de luz

por Isabella Bretas

A voz do silêncio: Koe no Katachi (2016), baseado na obra de Yoshitoki Ōima, retrata o reencontro de Nishimiya Shouko, uma estudante com deficiência auditiva, e Ishida Shouya, o principal valentão que a intimidava no passado. A narrativa concentra-se principalmente em Ishida e seu ponto de vista. Logo no início, o filme mostra o personagem adolescente e, de maneira leve e melancólica, seu plano de suícidio. Em seguida, inicia-se a narrativa de sua infância, que em contraste com o momento mostrado anteriormente, parece feliz e cheia de amigos. A introdução de Nishimiya na escola, o preconceito direcionado à  ela e a sua deficiência é construído aos poucos por meio de olhares, comentários e agressões, que posteriormente tornam-se parte do bullying opressivo realizado por seus colegas – principalmente Ishida e Ueno, colega de classe de ambos os personagens.

A situação mantém-se com constantes tentativas da Shouko de conciliar-se com os dois. A personagem chega a buscar o caderno que usava para tentar se comunicar após o valentão jogá-lo na água, até que, ao puxar seus aparelhos auditivos, ele machuca gravemente os ouvidos de Nishimiya e, consequentemente, chama a atenção dos responsáveis. Após ser acusado por todos os envolvidos, Ishida é jogado na fonte de água da escola e passa a sofrer bullying constantemente. As consequências perduram até o ensino médio, quando  o personagem, emocionalmente isolado de todos, tenta reconciliar-se com Nishimiya, embora não acredite que mereça perdão. Assim, a história de redenção de Ishida Shouya aborda cuidadosamente as consequências do bullying nos envolvidos, como depressão, autodepreciação, ansiedade e pensamentos suicidas, como também a busca por mudança, perdão, compreensão e por aprender a se comunicar.

A personalidade do Ishida mais velho é visivelmente mais tímida, retraída, autodepreciativa e ansiosa. O isolamento emocional dele é demonstrado tanto pelos pensamentos do personagem, como também visual e sonoramente: todos aqueles de quem se isola possuem um X na frente do rosto; não são mostrados abertamente e seus sons são abafados, e há diversos planos de pés que demonstram o olhar com a cabeça baixa de Ishida. Esses recursos audiovisuais intensificam e demonstram eficientemente a experiência que é viver com ansiedade social e a sensação de se distanciar da realidade, e como isso influencia na saúde mental do principal.

Porém, durante o arco narrativo, são introduzidos e reintroduzidos diversos personagens que, aos poucos, retiram a visão do X de suas faces e formam o grupo de amizade de Ishida. A cada X que cai, o telespectador é envolvido cada vez mais na batalha mental do principal de se abrir para o mundo. 

É interessante perceber como cada personagem tem uma função específica em representar uma parte das consequências do bullying ou para contribuir com a superação de Ishida. Essas funções ficam claras principalmente no conflito principal entre o grupo de amigos, em que a tensão do passado dos personagens chega ao clímax e eles confrontam-se: Ueno permanece uma opressora e culpa Shouko pelo que aconteceu em vez de analisar seus próprios erros; Kawaii recusa-se a admitir sua conivência no episódio do bullying e insiste em se vitimizar; Sahara teve medo demais para intervir; Nagatsuki e Mashiba não participaram e portanto, na opinião de Ishida, não deviam intrometer-se. Apesar de alguns deles não possuírem uma profundidade maior que seu envolvimento nessa questão, como Mashiba, uma vez que  são muitos personagens, o filme tem sucesso em mostrar que todos possuem problemas e como o bullying impacta a vida dos envolvidos de diferentes maneiras. 

Outro ponto relevante é como a produção trata com muito cuidado a temática do  suicidio, desde suas representações, as quais não são inteiramente mostradas, até a reação das pessoas em volta: cada um dos personagens cria mecanismos de defesa próprios, e mesmo que de certa forma contraproducentes, são representações humanas e emotivas que demonstram a importância da pessoa amada para elas. Por exemplo, a ameaça da mãe de Ishida em queimar o dinheiro do filho no início do filme ao saber do seu desejo suicida; as fotos de animais mortos da irmã de Shouko, Yuzuru; ou a negatividade e amargura da Sra. Nishimiya.

No entanto, o ponto mais importante do filme é a relação de Shouko e Ishida, entre si e consigo mesmos. Durante todo o desenvolvimento da narrativa, a comunicação entre os dois é um aspecto central. Através da linguagem de sinais, de textos e de ações, eles se compreendem cada vez mais, mas não conseguem mudar e superar os próprios problemas internos. Isso porque, mesmo quando ambos se aproximam, a culpa e a dor permanecem constantes, já que cada um se responsabiliza pelo sofrimento do outro. Os aspectos visuais relacionam esse desenvolvimento dos dois brilhantemente ao interligar elementos e  momentos que se repetem ao longo do filme, como ambos caindo na água, fazendo o sinal da amizade ou ao tentarem se segurar um ao outro sem sucesso. Todas essas ações culminam na tentativa de suícidio de Nishimiya durante a queima de fogos, na qual Ishida consegue finalmente alcançar sua mão, mas, para salvá-la, cai uma última vez na água, acidentando-se. 

É perceptível como a água é um adereço primordial dessa construção visual. Após o ponto de luz inicial,  a água é o primeiro elemento mostrado, e, não muito depois, representa o pensamento suicida de Ishida, que olha para ela de cima da ponte. Também remete ao bullying pelo que ambos passaram, por exemplo, por meio da fonte em que Ishida jogou o caderno de Nishimiya e na qual, mais tarde, foi jogado pelos colegas. Assim como à tentativa de amizade dos dois, que se encontram na ponte acima do rio para alimentar os peixes. Não é apenas relevante a água em si, mas também a recorrência do movimento circular nela: a partir de um ponto de abalo, todo o redor é afetado, formando ondas à sua volta; esse movimento carrega um simbolismo de extrema ligação à melancólica circunstância de todos, ainda tão impactados pelo bullying que ocorreu tanto tempo atrás. A água permeia toda a narrativa, acompanhando os personagens em seus momentos de carinho, tristeza e tensão, e está presente no momento em que Nishimiya e Ishida, ao se encontrarem na ponte, encerram esse ciclo de culpa e decidem ajudar um ao outro a viver, assim representado por meio do sinal de amizade em libras.

Essa interligação entre os elementos complementam o estilo cíclico do longa, criando uma unidade orgânica e fenomenal para todo o desenvolvimento dos acontecimentos e das personagens: no início, há um ponto de luz, como já foi citado, o qual nos adentra na narrativa, com o que parece ser a silhueta dos dois personagens principais. Em seguida, têm-se que a montagem de abertura, que demonstra a situação atual de Shouya, é constituída dos componentes que remetem a momentos decisivos que aparecerão na história, como as ondas circulares e os fogos de artifícios. Na emocionante sequência final, Ishida, cercado de seus amigos e familiares no festival escolar, se abre para o mundo, impossibilitando que o espectador não se arrepie no momento em que todos os X à sua volta caem e o adolescente desaba em lágrimas, finalmente alcançando a luz, que inunda complementa a tela.

A voz do silêncio é um longa-metragem que trata de um tema complicado de maneira leve, com cores e planos suaves, transportando o telespectador, através de um genial trabalho visual e sonoro, para a vivência do Ishida Shouya, de modo a refletir em seu arco de redenção sobre a ansiedade, o suícidio, mas principalmente, a importância de se abrir para o mundo e a possibilidade de mudar. Em tantos assuntos sérios, o filme consegue trazer esperança através da amizade e da humanidade de seus personagens, sendo um significativo ponto de luz para aqueles que se identificam com a história.

FILMOGRAFIA:

A voz do silêncio (Koe no Katachi). Produção executiva: Kyoto Animation. Direção: Naoko Yamada. Roteiro: Reiko Yoshida. Japão, 2016, 2h 9min. 

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