Crítica | Cidadão Kane (1941), de Orson Welles

Este texto é uma adaptação de uma dissertação escrita em conjunto por Antônio Mendes, Eduardo Rocha, João Victor Falciroli, Luís Gongra, Paloma Merched e Vitória Rocha para um trabalho da matéria “História do Audiovisual I”, ministrada pelo Prof. Dr. Arthur Autran.

Eleito diversas vezes como o melhor filme da história do cinema, Cidadão Kane (1941) traçou uma trajetória de grande notoriedade na Era de Ouro de Hollywood, sobretudo ao revelar a maestria de Orson Welles na concepção de uma obra que subverte as construções cinematográficas precedentes. Embora o longa-metragem não tenha inventado a profundidade de campo e o plano-sequência, ele conseguiu criar uma nova impressão poderosa para a técnica cinematográfica, na medida em que utilizava esse estilo de maneira expressiva e em harmonia com o conteúdo da obra. É através da revolução realizada por Welles na tela, portanto, que a alcunha de “inventor do cinema moderno” se circunscreve em Cidadão Kane.

O filme, dirigido por Orson Welles, conta sobre a trajetória do magnata fictício Charles Foster Kane. A narrativa apresenta uma estrutura não linear, a qual intercala entre o jornalista Jerry Thompson, no presente, buscando descobrir o significado por trás de “Rosebud” – a última palavra dita por Kane -, e relatos  de pessoas que eram próximas ao protagonista. Assim, presenciamos toda a reconstrução de sua vida, da infância à velhice, através das memórias que os personagens compartilham. É curioso, porém, como Thompson não possui características próprias: além de estar fora de quadro em vários momentos, sua face está sempre nas sombras, o que distancia o público do personagem, tornando-o apenas uma janela pela qual veremos a história. A partir disso, Welles desenvolve uma lógica formal que vai dialogar com o mistério da trama. De certa maneira, o frequente uso de planos-sequência, com alta profundidade de campo, revela uma tentativa de tornar o espectador um agente ativo, especialmente por esse estilo não tentar impor ou orientar o olhar de quem assiste. Diferentemente dos cinemas alemão e soviético dos anos 1920, Cidadão Kane não manipula a linguagem cinematográfica de forma excessiva, com cenários extravagantes e caricatos ou com uma montagem de atrações – os quais conduzem o público a certas sensações e impressões. Ao contrário, o diretor prefere desenvolver sua narrativa por meio de planos longos e movimentos de câmera constantes, que demonstram uma verossimilhança maior para com a realidade e que emancipam quem assiste. Dessa forma, os olhos do espectador podem passear livremente pela tela, sem serem barrados por cortes brutos, que impõem significações (BAZIN, 1991).

A princípio, é interessante notar como o filme inicia revelando todos os acontecimentos do enredo. Um cinejornal, inserido na diegese do longa-metragem, apresenta toda a trajetória do magnata Charles Kane, desde de seu repentino enriquecimento, passando por seus dois casamentos e chegando até sua morte solitária e decadente. Cidadão Kane, no entanto, guarda um segredo: o que é “Rosebud”?. A palavra que o protagonista diz em seu leito de morte gera interesse por parte dos jornalistas que realizam a reportagem, consequentemente instigando o público. Entretanto, tal segredo é apenas uma fachada. O que interessa a Welles não é impactar o espectador com os acontecimentos da história e suas possíveis incógnitas, na verdade o cineasta prefere realizar um estudo de personagem, que analisa a vida e a psique do protagonista. Nesse sentido, é possível afirmar que o longa-metragem não é uma investigação a respeito de Rosebud, e sim a respeito do próprio Charles Foster Kane. Mesmo sabendo a resolução de seu arco dramático, a audiência se mantém fascinada pelos mistérios que rondam o personagem e em como os acontecimentos, apresentados no cinejornal, impactam suas relações pessoais.

É interessante notar, também, como o filme lida com a montagem. A partir do roteiro não-linear escrito em conjunto com Herman J. Mankiewicz, Welles e o montador Robert Wise desenvolvem uma lógica que manipula o tempo. Os dois cortam de um momento a outro de uma maneira, ao mesmo tempo, bruta e fluida, afinal o corte é brusco, mas mantém a fluidez de um plano ao outro – especialmente devido aos diálogos que se complementam. Tal estética, além de tornar a narrativa mais dinâmica, conversa com os conflitos psicológicos de Kane. Talvez o momento mais representativo desse estilo seja a montagem dos cafés da manhã que o personagem passa com sua esposa Emily – um mais decadente que o outro. Além disso, a câmera inicialmente enquadra o casal no mesmo plano e depois apenas separadamente. Cada vez menos presente na casa do casal e mais dedicado à sua vida pública e política, com o ápice na candidatura a governador, Emily descobre a infidelidade de seu marido e decide encerrar a relação dos dois, indo embora com o filho. De certa forma, a estética da cena acaba revelando uma vida que passa muito rápido, como se o fato do protagonista se dedicar quase exclusivamente ao trabalho tornasse sua vivência efêmera e mal aproveitada – situação que, mais a frente, vai levar a amargura e a megalomania que ele desenvolve por realizar algo importante na vida e cuidar de pessoas próximas a si.

Ainda pensando na estrutura não-linear da narrativa, a estruturação do campo emocional das personagens se expressa e estabelece seu percurso nos domínios da memória. Durante a investigação de Thompson, cada um dos cinco testemunhos exprimem sentimentos diferentes, tanto no que se refere a afinidade entre eles e Kane, quanto sobre suas próprias personalidades e como elas intervêm na narrativa (CAETANO; SOUZA, 2017). O falecido guardião de Charles, Walter Thatcher – investigado por meio de um diário -, apresenta um comportamento rigoroso, que se reflete na forma como ele enxergava Kane. Sendo o agente inicial de mudança na vida dele, Thatcher revela lembranças enquadradas na esfera financeira e burocrática, em detrimento de uma conexão emocional, sobretudo se observarmos que, nas cenas envolvendo ambos, os diálogos são sempre voltados para os negócios. Talvez o melhor exemplo disso seja a cena em que Kane é “vendido” por sua mãe, tendo suas relações pessoais deixadas de lado, dando lugar ao dinheiro e ao lucro. Bernstein, por sua vez, manifesta certo saudosismo, em virtude de sua melancolia em relação à morte de Charles e de sua relação de fidelidade com o mesmo. Sua declaração, de modo a honrar a imagem do chefe, procura confirmar boas intenções, lembrando que o magnata tinha o intuito de levar as mais sinceras notícias para a imprensa. Jedediah, por outro lado, circunscreve em sua rememoração uma afirmação mais arrogante, de forma similar ao modo como o mordomo afirma sua desconsideração. Por último, Susan é a mais enigmática, na medida em que seu abatimento e desolação ocultam sua expressão. Talvez isso se deva ao relacionamento complicado que ela tinha com seu marido, principalmente pensando em como ele utilizava sua esposa como caminho para preencher seu vazio interno. Diante desse panorama, se torna evidente a incapacidade dos personagens desvincularem seus sentimentos em relação a Kane e, por isso, alegarem uma visão de Charles baseada no nível de afeição que sustentavam com ele. Assim, o público recorre a uma construção ativa do protagonista, baseada na apresentação de uma personalidade multifacetada, ou seja, a audiência precisa decodificar essas diferentes perspectivas para entender quem foi Charles Foster Kane (CAETANO; SOUZA, 2017). 

Além disso, mantendo-se na perspectiva da profundidade de campo, é curioso perceber como essa escolha formal se relaciona com o palácio de Xanadu e as questões que ele demonstra a respeito do personagem. Devido a seu fracasso no jornalismo, na vida política e no primeiro matrimônio, Kane decide se dedicar a sua segunda esposa, Susan, e financiar os estudos e a profissão dela, como cantora de ópera. Essa atitude, porém, não é altruísta; ao contrário, o protagonista busca fazer isso para satisfazer suas próprias necessidades, sobretudo no sentido de que ele precisa encontrar um sentido em sua vida, que aparenta estar sendo desperdiçada. Para concretizar isto, Kane constrói um palácio gigantesco e cheio de bens preciosos, com o intuito de agradar sua esposa e preencher seus vazios interiores. Nesse sentido, é interessante observar como o cenário de Xanadu, apesar de sua grandiosidade, é muito sóbrio e melancólico, principalmente por seus espaços vazios em que os personagens são inseridos. Assim, a mise-en-scène revela a solidão megalomaníaca do protagonista.

Dentro do contexto da obra, é possível notar, ainda, que há uma relação entre a trajetória de Kane e o livro “A morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tolstói. O paralelo se encontra pelo fato de que ambos os protagonistas, Ivan e Kane, morrem no começo do enredo, e se estabelece uma narrativa que conta a ambição implacável dos dois em busca de seus objetivos definidos. Dessa maneira, enquanto Ivan Ilitch busca uma ascensão profissional na corte de justiça, Charles Foster Kane procura deixar sua marca no mundo – motivação que, na realidade, é um pretexto para suprir um vazio interno. Quaisquer que sejam seus desejos, os personagens acabam sacrificando suas vidas e relações pessoais durante o percurso, o que os impacta ao ponto em que ambos só consigam buscar consolo nas respectivas infâncias. Entretanto, ainda que as duas jornadas sejam decadentes, elas divergem em sua moral: enquanto a obra de Tolstoi pretende comentar sobre a importância da noção de morte e sobre como não desperdiçar a vida, o filme de Welles se envolve diretamente com uma ideia de decadência do ideal de sonho americano, que se conecta, também, a uma ideia de masculinidade e paternidade.

Para demonstrar a jornada decadente do filme e como a forma cinematográfica se relaciona com a mesma, duas cenas podem ser analisadas: a passagem em que o protagonista conhece sua segunda esposa, Susan, na qual o uso de campo e contracampo reflete a relação dos personagens; e o momento em que Charles Kane e seu melhor amigo Jedediah discutem, após a eleição – podendo dar destaque para o uso do contra-plongèe e da panorâmica, que priorizam o diretor do Inquirer. 

Após contar sobre o decadente primeiro casamento de Kane ao jornalista, Jedediah detalha como o personagem de Welles conheceu Susan Alexander, interpretada por Dorothy Comingore. Ao cruzar com Charles na rua, a menina de 20 anos conversa com o homem, que então estava com seu terno sujo de lama, e o convida para entrar na sua casa, logo ao lado. Depois de limpar-se, Kane segue dialogando com a mulher e distraindo-a da dor de dente que sentia. Nessa sequência de planos, o espectador observa o desenvolvimento da conversa através de campo e contracampo, no qual Susan – sentada na cama – é enquadrada em um reflexo do espelho, em plongèe e singelamente deslocada à direita, destacando seu olhar submisso, e Kane – que está em pé – em contra-plongèe, centralizado na tela, colocando-o em posição de destaque e superioridade, maneira como ele se via em relação a todos em sua vida. No entanto, com o prosseguir da cena, e inferindo-se a passagem do tempo e continuação do diálogo, os personagens encontram-se sentados lado a lado. Enquadrando-os juntos, o filme indica que o protagonista baixou sua guarda e desceu do palanque, no qual se colocava, e permitiu aproximar-se da garota enquanto igual. A partir deste ponto, a conversa é registrada com campo e contracampo, no estilo clássico.

Ainda nesta cena, é possível notar uma diferença da decupagem em relação ao resto do longa-metragem. Se durante a maior parte do tempo, Welles nos coloca na posição do jornalista Thompson, enquanto investigadores que buscam entender a essência por trás de Charles Foster Kane, em seu primeiro encontro com Susan o cineasta prefere mudar seu estilo e conduzir a câmera por meio de primeiros planos e uma dinâmica de campo e contracampo. Dessa maneira, infere-se que a lente passa a compreender Kane enquanto uma pessoa, que existe além do mistério de Rosebud e da figura pública por trás de seu nome. Ou seja, não possuímos mais uma atitude ativa perante a imagem, pelo contrário: somos guiados por uma decupagem que ressalta as facetas humanas dos personagens.

Após perder as eleições para governador graças a chantagem de seu rival político Jim Gettys, Kane parece claramente abalado. A câmera segue o personagem caminhando pela editora bagunçada e cheia de cartazes com seu nome, até enquadrar uma porção maior do ambiente. Nota-se, aqui, a busca do filme de instigar o espectador a explorar todo o quadro, principalmente quando Jedediah entra por uma porta no fundo do cenário e se dirige por toda a sala, até o protagonista. Durante a continuidade da cena – que é dividida em apenas três planos, desde antes da chegada de seu amigo até o final da discussão –  a câmera se posiciona em contra-plongèe e faz panorâmicas leves que acompanham Kane pelo espaço, mantendo na maior parte do tempo sua imagem mais próxima do que a de Jedediah. Apenas no último plano – quando o crítico teatral se aproxima mais para declarar sua vontade de ser transferido à filial do Inquirer de Chicago – o quadro se fecha neles, agregando à tentativa de imposição de Jedediah ao colocá-lo na mesma posição do chefe. Essa lógica de encenação demonstra como Kane precisa, sempre, estar acima dos outros para se satisfazer. Neste momento, porém, a aproximação de Jedediah parece incomodar Kane, como se fosse uma invasão ao espaço que até agora era apenas dele. Esse incômodo fica ainda mais claro quando ele percebe que não consegue apaziguar a situação, afinal seu amigo não se importa ou ri de suas piadas irônicas, evidenciando sua perda de controle. Nesse sentido, percebe-se que a forma cinematográfica desenvolve relações de poder entre os personagens, hierarquizando-os. Dessa maneira, Welles é capaz de complexificar o roteiro através de seu estilo de decupagem, potencializando os dramas internos de Charles Kane.

É perceptível, durante a progressão da obra, uma crítica clara ao ideal de sonho americano. A partir do momento em que é separado de sua família, o jovem Charles Kane passa a ter seu futuro planejado e, de certa forma, limitado. Afinal, não lhe resta outra escolha além de se tornar o magnata que administrará a sexta maior fortuna particular do mundo. Pela perspectiva da época, Kane seria a representação do homem que alcançou o topo aspirado por todos, que estaria vivendo o próprio sonho americano materializado; mas ele, no entanto, não se sente realizado dentro dessa conquista. Pelo contrário, o protagonista sente que precisa constantemente suprir um vazio, causado pela conquista de sua posse financeira – o personagem não fez nada para enriquecer, apenas foi privilegiado com o patrimônio.

O estilo da mise-en-scène – reafirmado por planos conjuntos e uso extensivo da profundidade de campo – revela uma perspectiva de ausência: tudo é muito grande e parece muito distante. Isso se evidencia fortemente na reta final da vida de Kane, na qual as cenas na mansão de Xanadu revelam um espaço imponente, sofisticado, extravagante, mas vazio – assim como sua vida. Involuntariamente, o personagem de Welles tenta afirmar seu lugar na sociedade através de suas posses e posicionamentos, como a compra de diversas estátuas, que são mantidas em suas mansões, e discursos em palanques políticos ou para o Inquirer. Aliado a esse estilo, também é possível notar a claustrofobia marcante dos espaços em que o poder dele é confrontado. Entre os exemplos estão seu quarto – local onde se encontra em seus últimos momentos de vida -, a casa de Susan, onde Jim Gettys gera um confronto entre ela, Emily e Kane, e na demissão de Jedediah.

Nesse sentido, o protagonista busca sempre realizar grandes conquistas, elevar seu nome e se colocar enquanto uma figura provedora para suas esposas. Há, para ele, a necessidade de marcar seu nome na sociedade como além de um herdeiro – além de sua riqueza -, seja como diretor de um jornal bem sucedido, governador de um dos estados mais importantes dos EUA, esposo da sobrinha do presidente ou, simplesmente, aquele que seus familiares e amigos dependem – caso de Susan e Jedediah. No fim, ele é um homem que quer se sentir útil e necessário – tanto na sociedade como um todo, quanto nas suas relações pessoais -, entretanto é consumido pela sua megalomania, inerente aos ideais americanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FILMOGRÁFICAS

AUGUSTO, Sérgio. ‘Cidadão Kane’ inventou o cinema moderno ao ignorar convenções. Folha de São Paulo, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2020/02/cidadao-kane-inventou-o-cinema-moderno-ao-ignorar-convencoes.shtml. Acesso em: 19 de maio de 2021.

BAZIN, André. O cinema: A Evolução da Linguagem Cinematográfica. Primeira edição. Brasil: Editora Brasiliense, 1991.

CAETANO, Rafaela; SOUZA, Gustavo. Os percursos da memória em Cidadão Kane. RuMoRes, v. 11, n. 21, p. 78-95, 2017. DOI: 0.11606/issn.1982-677X.rum.2017.120990. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/120990 . Acesso em: 20 maio de 2021.

CIDADÃO Kane. Direção: Orson Welles. Estados Unidos: RKO Pictures, 1941. 119 minutos.

SDG. CIDADÃO KANE, André Bazin e o “Momento Santo”. Decent Films, 2011. Disponível em: http://decentfilms.com/articles/citizen-kane-andre-bazin. Acesso em: 19 de maio de 2021.

TOLSTOI, Liev. A morte de Ivan Ilitch. Edição 1. Brasil: Editora Antofágica, 15 de julho de 2020.

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