Crítica | O Dia da posse (2021), de Allan Ribeiro

Texto realizado como cobertura para o 10° Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.

Por Vitoria Rocha

A reconstrução do que é habitual passa por entre a memória, o sonho, a ficção e a realidade. Para que você seja capaz de produzir um novo cotidiano, é preciso se lembrar de quem é através de suas memórias. Estas, por sua vez, te lembram de sonhos que você realizou, que não realizou e que quer realizar. Os sonhos que você ainda não foi capaz de concretizar, te transportam para uma ficção, onde você imagina de olhos abertos e pleno de suas capacidades intelectuais, como seria o momento em que você tomaria posse de seus desejos. É nesse momento, absorvendo situações que não existem de fato, que você se dá conta de que está vivendo no presente e por isso, no que de fato é real.

O Dia da posse (2021) explicita exatamente que o presente é a realidade, e isso não é tão óbvio quando parece. Enquanto Allan Ribeiro filma Brenddo Washington em meios aos seus anseios e reflexões, somos levados, pela transição contínua entre encenação e documentação, para passear entre a vida pré pandemia, a vida na pandemia e a pós pandemia. A sensação de confusão psicológica que temos ao assistirmos ocorre exatamente por não sermos capazes de distinguir o que é presente – e, portanto, real – e o que é passado e o futuro – a ficção.

A filmagem realizada majoritariamente por meio de planos subjetivos, reforça a ideia de que este “roteiro de relatos de vida” é um documentário. Entretanto, estes relatos são rememorações do passado e por isso, já não existem mais. Da mesma forma, a montagem do filme sempre está antecipando o contexto dos diálogos, provando a onisciência da linguagem ficcional, que sabe de tudo mesmo antes de uma palavra ser dita. Se nós, espectadores, estamos vendo pássaros na tela, a fala seguinte do personagem será sobre algo relacionado a isso, como a frase “quando eu era criança queria ser um pássaro”.

Quando Allan pede a Brenddo para refazer uma cena, somos capazes de ver algo que não aconteceu naturalmente, algo que poderia ter acontecido. Tudo o que pode vir a acontecer também é ficcional. O que o diretor faz no longa é demonstração de que a realidade está entre o que aconteceu e o que pode vir a acontecer. De fato, a apreensão do processo de construção dessa ideia não é uma tarefa fácil, porque não estamos acostumados a perceber o que está acontecendo bem aqui, no tempo presente. Ou se sofre pelo que já aconteceu ou pelo que não aconteceu.

Brenddo não queria que o víssemos bem de perto, mas de longe. Conhecemos mais sua infância, sua presidência e sua participação em um reality show do que sua vida como o estudante de direito que ele realmente é. A ideia de passado é confirmada a nós, espectadores, todas as vezes em que a mesma janela e as mesmas antenas são filmadas novamente, para que nos lembremos de que já as vimos anteriormente, não há nada inédito. A ideia de futuro, por outro lado é onírica, é um caminhar na praia e um discurso de posse que podem acontecer, mas ainda não aconteceram.

Por isso, quando algo nos força a perceber a realidade, somos obrigados a reconstruir o nosso sentido de viver e sofrer pelo que está acontecendo diante dos nossos olhos, pois ainda que nossa memória e nossos sonhos despertem sentimentos, eles não são palpáveis o suficiente para nos permitir lembrar ou fingir pra sempre. Uma hora ou outra deve se colocar a máscara, abrir a porta e sair. Ser alguém. Não alguém que já viveu, muito menos alguém que vai viver, mas sim alguém que está vivendo.

O Dia da posse (2021) é sobre lidar com a construção da realidade em meio a uma pandemia inédita. Após um desequilíbrio de costumes que obriga o confinamento, só se pode observar a vida presente passar. Não há nada que você possa se apossar a não ser sua própria vida

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