Crítica | Capitu e o Capítulo (2021), de Júlio Bressane

Texto realizado como cobertura para o 10° Olhar de Cinema

Júlio Bressane evoca um estilo clássico para depois desconstruí-lo em Capitu e o Capítulo (2021), seu novo longa-metragem. Aqui, há um remonte à obra de Machado de Assis, Dom Casmurro, adaptada pelo diretor brasileiro sob a forma de uma dicotomia que se dá entre o clássico e moderno, atraindo por vezes o anárquico, característica tão presente em obras de Bressane. A trama literária pertencente ao realismo é trazida por Bressane ao cinema e se encontra nessa linha tênue entre o século XIX e a contemporaneidade, dubiedade essa representada pelo diretor a partir de sua mise-en-scène carregada que contrasta com tomadas não diegéticas no meio de sua montagem. O filme utiliza a seu favor a trama original do escritor brasileiro e dá a ela um toque moderno, a partir de elementos de encenação, montagem e também trilha sonora surge o horror, representado aqui sob a forma da decadência humana.

O filme de Júlio Bressane é, desde o princípio, muito ligado ao livro de Machado, tendo em uma de suas primeiras cenas uma alusão visual àquela famosa passagem do livro que diz respeito aos olhos de ressaca de Maria Capitolina, a Capitu, interpretada no filme por Mariana Ximenes. Vemos então os olhos da atriz em um close, para em seguida vermos os movimentos marítimos, que aparecerão, inclusive, diversas vezes no decorrer do longa. Parte-se então para Bentinho (Vladimir Brichta) e Capitu, onde logo ficará evidenciado a assertividade feminina e a declamação teatral, que estará, por sua vez, presente em todo o filme. Temos, portanto, um apreço ao teatro não só representado pela forma com que se declama as falas, mas também pela presença de cenários pintados, onde a ação se desenvolverá sob essa forma planificada. Nesse ponto, observa-se uma forte influência do cinema português, que muito se utiliza, a partir de grandes autores como Manoel de Oliveira e Rita Azevedo Gomes, desses cenários pintados para compor suas encenações.

Ao tratar da dualidade presente na obra, nota-se a utilização desse contraste entre a atualidade e os tempos de outrora principalmente pela captura digital, que dá ares essencialmente límpidos. O diretor parece utilizar-se do digital para denotar o não pertencimento da adaptação cinematográfica ao século XIX, e sim atribuí-la à uma noção de atemporalidade. E nisso temos também a utilização de elementos modernos que se contrapõem à mise-en-scène fílmica, como os figurinos, principalmente os figurinos femininos. Tais elementos colaboram para a quebra da diegese, visto que retiram a obra de uma aproximação direta com uma antiguidade. Não somente tais elementos cênicos favorecem essa noção de atemporalidade, mas a própria montagem do filme contribui muito para isso, já que o diretor acrescenta, por entre as cenas, tomadas que não fazem parte do enredo propriamente dito, um exemplo disso seria a cena em que Bentinho, agora Dom Casmurro (Enrique Diaz) profere uma passagem sobre vermes, logo após essa cena, uma montagem com vermes e um esqueleto é posta em tela, de forma a contrastar também com todo um aspecto de limpeza que se faz predominante no longa. Para Bressane, existe a todo tempo um embate entre a tradição e a modernidade. 

O enredo tradicional é, então, seguido, Bentinho começa a suspeitar de Capitu e as relações se tornam cada vez mais sórdidas. Sordidez essa que é acompanhada pela trilha sonora, que é composta pelo forte uso de violinos, e também por cenas de movimentos marítimos, as famosas ressacas. Todos esses elementos irão se apresentar de forma síncrona de acordo com as cenas, isto é, quando há violência e confusão aparente, a trilha sonora se intensifica, assim como as ondas marítimas. Tais componentes atribuem ao longa uma dimensão que o aproxima do terror, há sempre uma apreensão pelo o que está por vir. E o terror, nesses casos, torna-se mais intenso justamente por conta da encenação abundante em detalhes sofisticados. A não confiabilidade nos eventos narrados por Dom Casmurro acrescem essa percepção da apreensão, sua loucura é mostrada a partir de superfícies espelhadas que causam aos reflexos das figuras femininas uma deformação aparente, o filme se dá, então, a partir do íntimo do próprio personagem e isso faz com ele se atenha à essa concepção de temor. 

Ao fim, há o êxito de Júlio Bressane em conseguir realizar uma obra que se firme no ideal de atemporalidade e que se encontre muito bem entre o clássico e o moderno. O diretor se utiliza da encenação, da musicalidade e da montagem para representar, a partir da perspectiva de um personagem que sucumbe, um terror aparente que não finda e que não dá resultados, pelo menos não enquanto a trama se encontra em tela. Os aspectos teatrais são brilhantemente utilizados e remontam a grandes autores do cinema português, mas com o claro diferencial de que há aqui uma nítida quebra na diegese que adultera o tempo fílmico. Sem dúvidas, é a partir de suas particularidades que Bressane concebe sua obra, tão singular em meio a outras produções contemporâneas. 

Deixe uma resposta