O melodrama em Aurora (1927)


Dirigido por F.W.Murnau, diretor mais conhecido por filmes do expressionismo alemão, importante movimento cinematográfico de meados dos anos 1920, o filme Aurora (1927) marcava a estreia do diretor em Hollywood. Através de uma história com emoções exageradas, uma vilã evidente, uma narrativa fora da estrutura clássica e um ideal claro de virtude, o filme consagrou-se como um melodrama. Um gênero que começou a se populariza-se em meados do século XVIII e que valorizava a ação, tinha como tema o embate entre vício e virtude, tudo tendo em mira o impacto sobre a plateia. Com a chegada do cinema no final do século XIX, o melodrama aderiu a essa nova forma de linguagem e conseguiu espaço logo no primeiro cinema, como no filme Suspense (1913) de Lois Weber e nos primeiros curtas de D.W.Griffith. Dessa forma, o cinema utilizou do melodrama justamente para conseguir se tornar uma arte industrial, uma vez que o gênero tem historicamente um apelo popular desde a época do teatro de rua. Com base nisso, através de poucos intertítulos e contando o máximo possível do enredo por meio da encenação, F.W.Murnau usou o melodrama em alguns de seus filmes justamente para poder contar histórias visualmente, como em A Última Gargalhada (1924) em que o uso de intertítulo é resumido a apenas uma aparição. Então, em Aurora, apesar dos raros intertítulos, também ocorre uma prevalência da linguagem visual em relação ao texto, o que potencializa o melodrama e, consequentemente, as dimensões morais que estão atreladas ao gênero.

Essa moralidade pode ser vista primeiramente em seu enredo. Sem nomear os personagens, o longa conta a história de um homem (George O’Brien) que tentado por mulher sensual (Margaret Livingston), resolve matar a esposa (Janet Gaynor) para sair do campo e viver com essa amante na cidade, mas desistindo de última hora, inicia um processo de reconquista de sua esposa. De forma evidente, o filme personaliza a maldade na figura da amante, de forma que não se transpõe culpa por cima do protagonista, portanto, apresenta uma visão misógina da mulher, mas representa muito bem a dualidade moral presente no melodrama, afinal temos uma representação clara de uma vilã, de uma mocinha e de um mocinho. Dessa forma, vemos um embate moral que pode se configurar como longe da visão de moralidade presente na religião, uma vez que a escolha de não matar a esposa não está derivado de algum sistema metafísico, faz-se presente em uma escolha pessoal entre a vício e virtude. Visto que o melodrama é uma forma para uma era pós-sagrada, na qual a polarização moral representa uma necessidade de localizar e tornar evidentes as escolhas que acreditamos ser importantes sem derivar de nenhuma crença transcendental (BROOKS, 1995). Isso é feito através de questões formais que permeiam o filme, onde através da estética visual demonstra de forma clara quem está representando o mal, de forma com que na IMAGEM 1 e na IMAGEM 2 vê-se que essa mulher é uma vilã que está levando a tentação a mente do “indefeso” homem.

Essa dualidade moral é acentuada pelas escolhas estéticas que contrastam a esposa do protagonista e a outra mulher. Seja em momentos tristes ou felizes, as roupas, a postura, e principalmente as escolhas da cinematografia, que regem a forma como a esposa é registrada, demonstram um contraste entre a mulher tentadora da cidade, como demonstrado da IMAGEM 3 até a IMAGEM 6. Através disso, a dualidade moral é tão evidente nesse filme que serviu de inspiração para que Éric Rohmer criasse a série dos Contos Morais, seis filmes lançados entre 1962 e 1972, em que todas as obras contam a história de um homem comprometido amorosamente com uma mulher, tentado por uma segunda mulher, mas retorna à primeira (GARCIA, 2014, p.52). Além, é claro, da sombria figura da femme fatale que, através de diretores que migraram da Alemanha durante a República de Weimar, como F.W.Murnau, começava a se popularizar em Hollywood, o que claramente iria resultar, junto a estética repleta de sombras do expressionismo alemão, nos filmes noir dos anos 40 e 50 (HALES, 2007). Dessa forma, ao unir essa figura da femme fatale ao melodrama criou-se, em Aurora, uma representação de uma vilã que através dos exageros estéticos desse arquétipo, gerou a dualidade moral essencial ao gênero.

A influência desse filme é o observada também em outros melodramas como em Amar Foi Minha Ruína (1945) de John M. Stahl, um filme que mistura o noir com o melodrama familiar. Uma vez que em Aurora a femme fatale convence o protagonista matar a esposa de uma forma específica: afogada. O homem então resolve chamar a esposa para um passeio de barco, de onde ele planeja empurrá-la em um lago. A cena é carregada de tensão, pois o espectador não tem nenhuma espécie de certeza de como a cena irá suceder-se, o que é feito através do prolongamento da sequência que, desde o momento em que o homem entra no barco pela primeira vez até desistir do ato, dura em torno de 7 minutos (IMAGEM 7). Já em Amar Foi Minha Ruína, uma mulher, Ellen Berent (Gene Tierney) acreditando que o irmão do marido é um empecilho para a vida do casal, uma vez que o garoto necessita de cuidados especiais em decorrência a uma poliomielite, resolve matá-lo afogado a partir de um bote (IMAGEM 8). Com a diferença que, no caso do filme do Stahl, a femme fatale é responsável diretamente pela morte do garoto, incentivando-o a nadar no lago e não prestando a ajuda que ela havia prometido. Entretanto, a semelhança não está só na forma de matar, o filme de Stahl também utiliza do prolongamento da sequência para criar o suspense necessário, cerca de 6 minutos partindo do momento em que o protagonista, o marido de Ellen, Richard Harland (Cornel Wilde), sai da cena, deixando o garoto vulnerável nas mãos da mulher. Além, é claro, da intenção da vilã em eliminar aquilo que tem a atenção do protagonista.

O fato dessa dualidade moral ser claramente notória na estética dos personagens marca outro elemento melodramático: o exagero. Dessa maneira, as performances dos atores evocam seu estado emocional de maneira evidente para o público, mesmo que os outros personagens não compreendam. De forma com que a encenação e os gestos feito pelos personagens evoquem aquilo que eles não são capazes de expressar verbalmente, algo que Peter Brooks associou ao melodrama (BROOKS, 1995, p.11). Por exemplo, na cena do bote já falada anteriormente, o protagonista pelos seus gestos e postura, demonstra a sua intenção e sua dúvida moral, entretanto, a sua esposa não tem consciência disso. O que lembra os apartes, monólogos e confidências que eram característicos no melodrama teatral (HUPPES, 2000). Esses momentos em que o personagem revela suas intenções ao público por meio da fala, privilegiando a platéia em relação aos personagens. No entanto, isso não é, geralmente, muito proveitoso no cinema, especialmente no cinema mudo, de forma que não aproveitaria muito da linguagem audiovisual e ficaria entediante. Então, o filme de Murnau usa da cinematografia, da atuação, da mise-en-scène e da montagem para indicar as intenções dos personagens. Mas, não é só através da forma com que a cena do bote acontece que indica a vontade do protagonista, há sim algo que pode ser comparado diretamente aos apartes, monólogos e confidências, há uma demonstração visual da intenção do personagem, a representação da imaginação que ele tem de si mesmo realizando o ato. (IMAGEM 9-10)

Nesse sentido, é importante ressaltar que há um outro aspecto que se relaciona com o melodrama, o uso da trilha sonora para concepção desse filme. A palavra melodrama, por exemplo, é derivada da palavra melos (música) e drama. Mas, esse filme tem algo peculiar para o cinema mudo, lançado em 1927 – momento em que o cinema como um todo atingiria comercialmente a possibilidade de sincronização do áudio com a imagem, de forma que fosse possível filmes falados como O Cantor de Jazz (1927) – o longa aproveitou da possibilidade de sincronização, de forma que ele tem uma trilha sonora original. Claro que isso possibilitou algumas inserções de alguns ruídos como buzina em momentos específicos, mas, principalmente, aumentou o controle que a produção teria sobre a música que o público ouviria e, consequentemente, potencializou as emoções de cada cena específica. Vale ressaltar que o filme foi lançado antes do O Cantor de Jazz e foi o primeiro filme comercialmente distribuído com sincronização de áudio e imagem, embora ele seja um filme mudo.

Dessa forma, a música pensada em sincronia com a imagem foi um fator essencial para satisfazer uma outra característica do melodrama, as emoções excessivas e agitadas (SINGER, 2011). Por exemplo, em uma determinada cena conhecida pelo uso do traveling matte, técnica que possibilitava a sobreposição de certas partes da imagem sobre outra, a mudança no cenário foi acentuada por uma mudança na trilha sonora, uma música a base de um órgão passa para um tema mais leve, a base de harpa e violas. E a interrupção desse momento onírico, também ocorreu na trilha de forma abrupta, adicionando ruido de buzinas e vozes (IMAGEM 11-14). Nesse sentido, o uso de sincronia de imagem e som possibilitou que as emoções dessa sequência fossem trabalhadas em redundância entre a mise-en-scène e som, o que deixou as emoções mais exageradas.

Pode-se notar que, dentre vários aspectos do filme, a forma é o elemento principal para constituição desse filme como melodrama. Como dito anteriormente, a própria questão moral é derivada da representação formal entre o bem e o mal, se não houvesse esses elementos o dilema moral do protagonista poderia ser tão denso que o filme se transformaria em uma tragédia. Essa questão formal, a valorização da mise-en-scène e questões técnicas é o que faz o filme ser um melodrama. No teatro melodramático, por exemplo, a arte repousava sobre as situações, sobre a encenação e sobre a performance dos atores de forma que se afastava do domínio do texto que, antes da prevalência do melodrama, era o mais comum (HUPPES, 2000, p.101). Dessa forma, quando F.W.Murnau entrega uma arte que se apoia nos sentidos e entrega algo como a cena do travelling matte, ele está apoiando-se na arte como um espetáculo, emocionando através de aspectos formais. Atrelado a isso, um outro aspecto essencial do melodrama que não é possível analisar sem considerar a forma é uso de páthos – palavra grega que evoca os sentimentos pena, sofrimento e piedade, seria em uma narrativa o apelo emocional relacionado a empatia provocada por um personagem – uma vez que, esse sentimento pelos personagens em Aurora é causado principalmente pela forma. Por exemplo, após uma tempestade que causa a virada de um bote e, consequentemente, separa o protagonista e sua esposa que estavam na embarcação, o filme muda radicalmente a sua estética visual, o filme se preenche de sombras, refletindo a sensação de desespero que o protagonista está sentindo, visto que ele não consegue encontrar a sua esposa. Portanto, se o publico sentiu empatia pelo personagem nessa cena, é decorrente as escolhas formais que permeiam essa sequência. (IMAGEM 15-16)

Portanto, o filme Aurora constata algo que é essencial na maioria dos melodramas, o apelo à forma, uma vez que as emoções exageradas exigem que a forma seja exagerada. Por exemplo, em um melodrama de Douglas Sirk o uso das cores saturadas revela na mise-en-scène as emoções que fazem parte da trama, de tal modo que a forma é um dos elementos principais para construção de um melodrama. Se ocorrer um remake de Aurora, por exemplo, de forma com que o filme ganhe uma estética realista e menos melodramática, ficaria mais evidente o aspecto sombrio da trama, sobre um homem que após uma tentativa de feminicídio consegue recuperar o “amor” de sua esposa, esta que pelo resto da vida iria morar com um homem que quase a matou. O suposto filme trataria não sobre amor, mas sobre a síndrome de Estocolmo, ou seja, sobre uma vítima que sente empatia pelo seu agressor. Nesse sentido, o melodrama em Aurora serve para romantizar, através da forma, uma relação abusiva, e para culpabilizar a figura feminina femme fatale e demonstrando a misoginia dos anos 1920.

REFERÊNCIAS

AMAR Foi Minha Ruína. Direção: John M. Stahl. 20th Century Studios, 1945.

AURORA. Direção: F.W. Murnau. Fox Film, 1927

BROOKS, Peter. The melodramatic imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and The Mode of Excess. New Heaven and London: Yale University Press, 1976.

GARCIA, Alexandre Rafael. Contos morais e o cinema de Éric Rohmer. 2014. 156p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP

HALES, B. Projecting Trauma: The Femme Fatale in Weimar and Hollywood Film Noir: Women in German Yearbook. University of Nebraska Press, USA, v. 23, p. 224-243, 2007.

HUPPES, Ivete. Melodrama: O Gênero e Sua Permanência. Cotia: Ateliê Editorial, 2000

O CANTOR De Jazz. Direção: Alan Crosland. Warner Bros. Pictures, 1927.

SINGER, Ben. Meanings of Melodrama. In: SINGER, Ben. Melodrama and Modernity. New York: Columbia University Press, 2011, p. 37-58.

SUSPENSE. Direção: Lois Weber. Universal Studios, 1913.