Crítica | Matrix Resurrections (2021), de Lana Wachowski

Por Luís Gongra

Contém spoilers.

Nesses últimos dias, enquanto navegava pela timeline do Twitter, me deparei com um texto, escrito por Natália Reis para a revista Multiplot!, cujo título me chamou muita atenção: “Toda história de amor pelo cinema é também uma história de fantasma (ou sobre minha experiência com Contos da lua vaga)”. No ensaio, a autora comenta acerca do aspecto assombroso que ronda a experiência cinematográfica (especialmente na obra de Kenji Mizoguchi). Ela disserta sobre a capacidade da sétima arte de criar espectros do mundo real que aterrorizam e perseguem, ao mesmo tempo em que maravilham. Os fantasmas do cinema estão intrinsecamente conectados ao amor e ao fascínio que as imagens em movimento revelam.

Nos dias seguintes, após meu contato com o texto, assisti ao novo longa-metragem de Lana Wachowski, Matrix Resurrections (2021), e desde então não consigo evitar de associar o amor e os fantasmas com a obra. Penso que a cineasta, ao trazer de volta sua saga, há muito tempo morta na indústria do cinema, é capaz de desenvolver uma narrativa autoconsciente que não está preocupada apenas com fanservices e referências, fatores que permeiam os remakes e sequências contemporâneos. Ao contrário, Lana se apropria do padrão que vigora em Hollywood com o intuito de alcançar uma purgação, tanto em si quanto em seus personagens. O quarto capítulo da franquia é um filme metalinguístico e debochado, sim, mas acima de tudo é um filme sobre reencontrar seus fantasmas e, por meio da ficção, se libertar e amar.

Desde o início, a premissa do longa já demonstra esse caminho. Acompanhamos Neo inserido em uma nova versão da Matrix, enquanto pessoas do mundo real tentam libertá-lo. Durante a sessão, me peguei pensando por quais razões era necessário tirar o protagonista do ambiente virtual e quais inimigos e conflitos estavam assolando aquele universo. Afinal, se os humanos precisam de Neo no mundo real novamente, algo certamente está dando errado. Entretanto, o filme não parece interessado em responder essas perguntas – o que me angustiou, de alguma forma.

Assim que Neo sai da Matrix, o único propósito dele (e consequentemente de toda a narrativa) é libertar Trinity, que também foi inserida na rede. O filme inteiro se baseia na jornada de um homem buscando reencontrar a mulher da sua vida. Não há mais uma grande guerra, um grande vilão maléfico como o Agente Smith (até tem um antagonista, mas que de forma alguma é levado tão a sério) ou mesmo aspectos filosóficos rondando a temática do longa. Apenas interessa à Lana os reencontros com os fantasmas que o cinema pode proporcionar.

A diretora, extremamente consciente das problemáticas que envolvem remakes e sequências no cenário atual de Hollywood, sequestra para si Resurrections (que só existe por conta dos desejos lucrativos da Warner) e transforma o longa-metragem em um dos blockbusters mais pessoais dos últimos anos. Nostalgia é o que dá dinheiro? Ok, porém Lana usará o saudosismo a seu favor.

O filme é praticamente uma terapia fantasmagórica – ou melhor, uma terapia com as imagens fantasmas que percorrem o cinema da cineasta. Não só Lana refaz a estrutura do original de 1999, como também insere cenas do mesmo (e dos outros dois) em meio às cenas do novo. Claro, narrativamente esses momentos funcionam enquanto meras memórias de Neo, contudo soa inevitável para mim não enxergá-los enquanto assombrações. Assombrações de uma obra intocada, que nunca poderia ser retomada – mas que mesmo assim é.

E veja, não falo assombrações somente no sentido aterrorizante da palavra, mas também em um sentido mais espiritual. Como comentei acima, me senti muito angustiado com a falta de um propósito narrativo mais clássico, semelhante aos outros filmes da trilogia. Com o tempo, porém, percebi que o único conflito que importa é reencontrar o passado, representado na jornada de Neo buscando por Trinity. 

Inclusive, acredito que haja uma conexão entre a dinâmica Neo-Trinity com toda uma tradição do cinema fantasmagórico. Voltemos para 1958, quando Alfred Hitchcock lança Um corpo que cai. Uma mulher entra em um restaurante e hipnotiza completamente o olhar de James Stewart, que a partir deste momento se tornaria obcecado em conquistá-la. Olhemos para obras recentes, como Em Trânsito (2019), de Christian Petzold. Uma das imagens recorrentes do filme alemão é a de uma mulher entrando num restaurante, fascinando o olhar do protagonista interpretado por Franz Rogowski. 

O mesmo tipo de dinâmica acontece com o casal principal de Matrix Resurrections, e também é uma imagem recorrente. No início do longa, Neo observa ela entrando na cafeteria, completamente maravilhado. No final do longa, ele vê Trinity saindo da cafeteria, escolhendo permanecer no mundo virtual. No entanto, assim como no Mito de Orfeu (talvez a verdadeira origem das histórias de amor e fantasmas), ela volta atrás e vira seu rosto – volta para o passado, para os fantasmas e para o amor.

A iconografia de Matrix vive nas memórias de Lana, assim como as imagens de Trinity percorrem o imaginário de Neo, e vice-versa. Encontrar fantasmas não precisa ser perigoso e temeroso, e sim pode ser uma experiência calorosa e libertadora. Não à toa estamos falando de um blockbuster de 200 milhões que existe somente para que o casal protagonista possa reaver sua paixão e voar pela cidade de mãos dadas, libertos das amarras do mundo virtual e das estruturas hollywoodianas contemporâneas.

Claro que nem sempre me senti confortável durante a projeção de Resurrections. É uma obra repleta dos mais diversos exageros, que vão desde personagens icônicos com personalidades completamente modificadas, até o excesso de exposição e enrolações dramáticas. Mas honestamente, seria possível existir esse filme sem excessos? É possível encontrar seus fantasmas e não surtar em paixões e megalomanias? Não acredito nesta possibilidade.

As paixões de Lana Wachowski são como todas as paixões: complicadas, imperfeitas, inconclusivas; mas acima de tudo, paixões. O agente Smith de Jonathan Groff não é mais um vilão cínico e rabugento, como o de Hugo Weaving, mas sim praticamente um homem apaixonado por Neo e pela rivalidade natural entre ambos (impossível não sentir uma tensão sexual latente em cada um de seus encontros). O Morpheus de Yahya-Abdul Mateen II não é mais um sábio e sereno líder, e sim uma I.A. debochada e irônica, que enxerga a iconografia da saga com escracho. 

Os fantasmas retornam, sim, porém lembre-se: são fantasmas, ou seja, resquícios do que aquelas figuras já foram. As mudanças incomodam? Óbvio, mas é inevitável não se apaixonar pelas possibilidades desse mundo fantasmagórico que a cineasta desenvolve. Se a indústria do cinema atual vive nesse eterno ciclo, reciclando símbolos que compõem o imaginário coletivo, Lana decide entrar no sistema, contudo subvertendo sua essência completamente. Reencontrar com o passado não é mais um espaço nostálgico vazio e confortável, e sim um espaço assombroso e debochado, ainda que cheio de amor.

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