A direção de arte na estruturação da narrativa

O cinema como objeto audiovisual dispõe de diferentes tipos de elementos que somados comporão a narrativa fílmica. Porém, normalmente, a narrativa é estudada através do roteiro ou da direção, deixando de lado aspectos formais próprios do cinema, como a fotografia, o som e a direção de arte. Aqui, livremente, faz-se um breve apanhado de como a direção de arte atua na estruturação da narrativa fílmica.

A narrativa pode ser entendida como uma organização de elementos que compõe uma realidade – ficcional ou não. No cinema esses elementos são visuais ou sonoros, ou seja, a mensagem não é passada apenas através do texto, mas os sons e o conjunto de elementos postos em cena e a forma como são mostrados também transmitem mensagens, de forma que o apreendido pelo espectador é a resultante da soma dessas mensagens. Por isso, a direção de arte, que é responsável por organizar paisagens, cenários, objetos, roupas e o que mais for necessário para criar a visualidade do filme, envolve um esforço de elaboração temática responsável pelo conteúdo narrativo dos elementos que escolhe. Jacques Aumont em A estética do filme diz que apenas o fato de representar, de mostrar um objeto de forma que ele seja reconhecido, é um ato de ostentação que implica que se quer dizer algo a propósito deste objeto. Assim, cada escolha da direção de arte revela sua leitura do roteiro e do tema, ou seja, uma intencionalidade.

A direção de arte compreende duas fases distintas de trabalho. A primeira fase corresponde à pré-produção e pode ser considerada como elaboração temática, a segunda fase se trata da produção de arte e compreende a produção de objetos, a elaboração de cenários, enfim, a construção física.

A elaboração temática da direção de arte se dá em alguns níveis. Primeiramente, após a leitura do roteiro, é preciso ambientar-se, anotar a época, o local, o contexto e o que mais de dados sócio-econômicos forem disponibilizados para fazer a primeira pesquisa referencial, uma pesquisa que selecionará documentos (textos, fotos, imagens) que informarão sobre o real que entorna a história a ser contada. Na mesma etapa, mas em outro nível, investigam-se a intencionalidade do roteiro, o ponto de vista, os subterfúgios da narrativa de modo a formar a concepção artística da obra.

Essas pesquisas iniciais dão base para o trabalho de arte. Bastante informada sobre o contexto real e a intencionalidade, a direção de arte poderá escolher como irá trabalhar, se será mais ou menos realista, se será crítica ou contemplativa, que tipo de inserções ou concessões poderá fazer. A estruturação da narrativa pela direção de arte acontece neste momento. Várias especulações e conceitos abstratos que fazem parte da intenção do diretor ou que surgem nas conversas entre direção, direção de arte e direção de fotografia tomarão forma na proposta estética, nos elementos pinçados pela direção de arte. Assim, a narrativa visual começa a ser criada.

O próximo nível é buscar referências mais específicas. Após escolher o tipo de registro é importante pesquisar fontes, as mais diversas possíveis, que auxiliarão na elaboração final do projeto de arte. Este projeto será guia da equipe de arte e todas as escolhas serão pautadas nele. Cenógrafo, produtor de objetos, figurinista, maquiador se guiarão por ele e através dele fazem suas contribuições próprias relativas à área que dominam. Além disso, esse projeto será um argumento absoluto no momento de pedir para a atriz usar aquele batom ou brinco que ela não quer.

Após a conclusão do projeto, passa-se a outra fase, a produção propriamente dita em que as elaborações caminham para se tornarem físicas. A partir da decupagem, serão feitos desenhos de disposições de mobiliário e outros objetos. Esses esboços tem como principal função elaborar a plasticidade da imagem final. Com a posição dos objetos e a partir dos ângulos de câmeras são esboçados os quadros do filme. É nesta fase que se faz um storyboard. Além disso, esses desenhos organizam a preparação do set pela equipe. Ainda nessa mesma fase, são feitos os mapas de arte, as listas que organizam a produção de arte. Enumeram-se os objetos necessários para cada ambiente, descreve-se o figurino de cada personagem em cada cena e guardam-se importantes informações sobre continuidade. Estes mapas serão imprescindíveis durante a correria de set.

Nesta fase, as propostas se tornam elementos concretos e esses elementos são também partes estruturais da narrativa. A elaboração temática da arte fornece à narrativa uma forma visual, a segunda fase fornece o conteúdo visual. Assim, os cenários, objetos e figurinos com suas cores, texturas, tamanhos, proporções são dados que aumentam o rol de informações necessárias à narrativa cinematográfica.

Estes dados funcionam como indicadores sinestésicos, ou seja, transmitem sensações através de sua aparência visual. Essas sensações serão captadas e decodificadas pelo espectador e serão responsáveis por estimular seus sentidos e sua imaginação fazendo-o compreender a narrativa proposta. Quanto menos esses elementos forem explorados, mais verbal será a narrativa. No entanto, é importante ressaltar que explorar esses elementos não se relaciona com a quantidade dos mesmos. Explorá-los significa ter intencionalidade na posição deles no quadro, na relação entre eles e a iluminação, entre eles e a câmera e principalmente na relação entre eles e os atores. Um erro bastante comum é preencher todo o espaço com elementos vazios de significados ou de significações pleonásticas. Outro erro consiste em não considerar o enquadramento no posicionamento dos objetos.

O set, então, é a aplicação de todas as pesquisas, teorizações e trabalhos prévios em uma execução de um projeto bem elaborado. Trata-se de um momento em que a imagem final é efetivamente captada. O diretor de arte não pode preparar a cena e se ausentar do momento da captação, como é possível ao cenógrafo, pois ao acompanhar os enquadramentos através da câmera ou de um vídeo-assist, o diretor de arte poderá fazer pequenas correções importantes para a qualidade plástica final, colaborar na formação de quadro e lidar com possíveis imprevistos tendo em mente todo o seu projeto de concepção artística.

Verônica Ramalho é aluna do 4º ano de Imagem e Som, diretora de arte e cenógrafa.

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Este post tem 2 comentários

  1. Author Image
    Ana Muniz

    Verônica, acabo de conhecer o site do RUA e li sua matéria. Muito boa. Quem não observava detalhes em filmes, agora pode pensar um pouco na direção de arte e saber que “as coisas” no quadro não estão ali por acaso… Parabéns pelo texto e tema escolhido.

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    Beatriz Oioli

    Olá Veronica bom dia.
    Sou aluna do 4º ano de Rádio e TV na UNIMEP em Piracicaba.
    Meu grupo esta desenvolvendo a Monografia sobre Direção de Arte e o mercado. até que ponto o mercado interfere na criação da arte.
    Talvez se você, como cenógrafa pudesse nos conceder uma entrevista e uma introdução básica á direção de arte (dizendo os elementos que constituem, etc) seria de grande ajuda para nossa conclusão.
    Espero resposta pelo e-mail.
    Obrigada desde já.

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