A ILUMINAÇÃO NO CINEMA SILENCIOSO

 

Amanda Rosasco Mazzini*

Resumo

O presente artigo visa traçar um histórico sobre o desenvolvimento das técnicas de iluminação cinematográfica no período silencioso e investigar a estética resultante das diferentes composições de luz. Serão abordados, em especial, filmes dinamarqueses da década de 1910 que apresentaram domínio no uso da técnica a favor da narrativa e da construção de significado pela imagem.

 

Introdução

No início do cinema, ainda no período silencioso, a iluminação cinematográfica era apenas funcional, tinha o propósito de iluminar suficientemente o set para permitir a filmagem. Apenas durante a década de 1910 que a iluminação começou a ser mais uma das ferramentas a favor do desenvolvimento narrativo e estético dos filmes, alçando o diretor de fotografia ao status de artista (MARTINS, 2004: 18).

Uma das cinematografias que se destacaram nesse sentido foi a dinamarquesa. Foi constatado um domínio do uso do contra luz, do contraste claro/escuro e das sombras, já no início da década de 1910, como nos filmes The black dream (Urban Gad, 1911) e The evangelist (Forest Holger-Madsen, 1914).

Dito isso, o presente artigo visa realizar um breve histórico sobre a evolução da iluminação cinematográfica durante o período silencioso e destacar inovações estéticas originadas na Dinamarca.

Histórico da iluminação no cinema silencioso

No início do cinema, a baixa velocidade dos filmes e lentes exigiu que se derramasse o máximo possível de luz sobre as filmagens, e como resultado, as filmagens utilizaram exclusivamente a luz natural, mesmo as realizadas em estúdio. Para tanto, os estúdios possuíam as suas coberturas móveis, de maneira que elas pudessem ser retiradas no momento da filmagem e aproveitar o máximo de luz solar possível (BROWN, 2002: 159).

O estúdio “Black Maria” de K. L. Dickson e Thomas Edison, por exemplo, foi construído sobre uma plataforma giratória para que pudesse ser rodado para seguir o sol durante o dia (BROWN, 2002: 159).

Estúdio “Black Maria”.[2]

Entretanto, não era ideal financeiramente depender das filmagens apenas nos momentos de intensa luminosidade, precisava-se desenvolver um sistema de produção de filmes em massa para suprir a crescente demanda de público e, portanto, não se poderia estar sujeito a condições meteorológicas.

O primeiro passo nesse sentido foi o desenvolvimento de uma estrutura metálica envidraçada, como uma estufa. Isso já permitiu que os cenários não fossem desmontados e remontados dependendo de chuvas e outros acasos.

Controlava-se a luz através de cortinas de musselina, que eram esticadas nos tetos para suavizar e modular a luz (BROWN, 2002: 159). Nesse momento, já se utilizava rebatedores, a fim de preencher áreas sombreadas do set.

Estúdio de George Méliès.[3]

Era preciso, entretanto, avançar ainda mais na eficiência da produção e melhorar a qualidade técnica dos filmes, uma vez que a concorrência entre as produtoras era cada vez maior. Foi então que, gradativamente, percebeu-se que a iluminação natural poderia ser incorporada com o uso de luz artificial.

Uma das produtoras pioneiras a se utilizar dessa técnica foi a produtora nova-iorquina Biograph em 1905, que instalou um sistema de iluminação com lâmpadas de vapor de mercúrio, produzidas pela companhia americana Cooper-Hewitt (BROWN, 1996: 3)

Estúdio da Biograph com lâmpadas de mercúrio, que costumavam ficar muito próximas dos atores.[4]

Pouco depois, surgiu um sistema de iluminação de arco de carbono, usado principalmente para simular a luz solar, para balancear a luz solar e para simular efeitos de sol através das janelas. O arco foi a primeira luz elétrica de alta intensidade e antes de ser usado no cinema, foi usado no teatro (BROWN, 2002: 146). A luz era produzida através da criação de um arco entre dois eletrodos de carbono e à medida que o arco queima, os eletrodos são consumidos e devem ser continuamente ajustados para serem mantidos na posição correta. Isso exigia um operador específico para controlá-lo e evitar incêndios (BROWN, 2002: 147).

Essa fonte, entretanto, exigia muita energia, era ruidosa (o que virou um problema com o advento do cinema sonoro) e podia causar irritação nos olhos dos atores. Com o tempo, esses refletores foram protegidos por vidros especiais, para não prejudicar os atores, e mesmo a equipe técnica.

As lâmpadas de arco de carbono produziam iluminação azul-esverdeada, tinham alta temperatura de cor, e por isso eram apropriadas para o filme ortocromático[5], que captava luzes nos espectros azul e verde, mas não no vermelho (o que deixava o filme bem contrastado).

Mesmo com o surgimento de outras fontes de luz ao longo do tempo, como o HMI (Hydrargyrum Medium-arc Iodide), até a década de 1980 o arco de carbono ainda era comumente usado. O diretor de fotografia Harry Wolf (ASC), responsável por diversas séries televisivas, entre elas, Os pioneiros (Little House on the Prairie, 1974-1983), e ex-presidente da American Society of Cinematographers (ASC), afirma:

I like an arc better for an exterior than an HMI, because it has a bigger spread and it has a farther throw. I can depend on an arc. I know what it can do. I find arcs indispensable for lighting street scenes. I can rake a complete row of buildings with one arc.[6] (MALKIEWICZ, 1986: 35)

Lâmpadas de arco de carbono no estúdio de Edison, em 1911.[7]

Era comum, também, que se utilizasse uma combinação de lâmpadas de arco de carbono e de lâmpadas de vapor de mercúrio, a fim de proporcionar uma distribuição uniforme da luz.

Como o objetivo da iluminação era iluminar o set por completo, muitas vezes as sombras eram consideradas erros técnicos. Um curioso caso exemplar foi o de Cecil B. de Mille, que comenta:

Já tinha muita prática de trabalho no palco, quando, certa vez, quis usar num filme um determinado efeito de luz que tinha sido já aplicado no teatro. Na cena em questão, um espião passava às escondidas por baixo de uma cortina e, para tornar o efeito mais misterioso, decidi iluminar apenas metade da cara do espião e deixar a outra metade na escuridão. Observei o resultado na tela e achei-o extraordinariamente bom. Fiquei tão satisfeito com esse artifício de iluminação que o apliquei mais vezes, isto é, empreguei focos de luz de um lado ou do outro – um método que hoje se utiliza à vontade. Depois de ter enviado o filme para a distribuição recebi um telegrama do gerente que muito me surpreendeu: ‘Enlouqueceu? Julga que posso vender o filme pelo preço inteiro quando mostra apenas a metade de um homem? (ARNHEIM, p.81 apud MARTINS, 2004, p.14)

A resposta de De Mille foi de que o filme utilizava-se do chiaroscuro de Rembrandt e que o distribuidor era ignorante por não reconhecer o estilo do pintor no filme. Como resultado, o filme foi distribuído sob o slogan “O primeiro filme iluminado no estilo de Rembrandt” e com o dobro do preço (MARTINS, 2004: 15).

Gradativamente as técnicas de iluminação foram aperfeiçoadas a fim de serem aplicadas de modo funcional à narrativa. Primeiramente, a luz começa a ser apropriada a fim de garantir maior verossimilhança para os planos, moldando os contornos dos objetos, criando profundidade espacial, aplicando fontes de luz em lareiras, velas, entre outros usos. Posteriormente, a luz começa a ser incorporada dramaticamente, como em A marca de fogo (The cheat, Cecil B. de Mille, 1915), no qual “luzes violentas, modelando as sombras, intervêm como fator de dramatização” (MARTIN, 2005: 72).

 

The cheat (Cecil B. de Mille, 1915)[8]

Com isso, cresceu a importância da presença de eletricistas no set para lidar com tantas fontes luminosas, evitar o mau uso dos equipamentos de luz e, consequentemente, evitar acidentes. Dessa forma, o fotógrafo ganha uma nova função, a de dirigir a equipe de eletricistas, e uma nova nomenclatura: diretor de fotografia (MARTINS, 2004: 18).

Como consequência desses avanços, em 1915 já eram construídos estúdios sem vidraças e sem claraboias (MARTINS, 2004: 18), pois a luz artificial poderia suprir as necessidades da direção de fotografia.

A década de 1910 mostrou-se extremamente produtiva pelas experimentações estéticas e narrativas, e o campo da iluminação foi um dos mais beneficiados. O advento do cinema sonoro, entretanto, exigiu que a iluminação tivesse novas preocupações: os tipos de fonte de luz que faziam muito ruído necessitavam ficar mais afastados do set, precisava-se também ter cuidado com as sombras dos microfones dentro dos planos (MARTINS, 2004: 20), entre outras questões.

A luz no cinema silencioso dinamarquês

O cinema silencioso dinamarquês foi um dos pioneiros no uso expressivo da luz. Desde o início da década de 1910 as filmagens possuíam uma iluminação trabalhada a fim de conferir um diferencial aos filmes dinamarqueses, que precisavam concorrer com as fortes produções francesas e estadunidenses. Essa iluminação diferencial era, também, peculiar a um gênero de filmes que surgiu na Dinamarca, o dos filmes sensacionais (IVERSEN; SOILA; WIDDING, 1998).

Os filmes sensacionais, ambientados no mundo do crime, vício ou circo, eram propícios ao uso trabalhado de iluminação e se utilizavam de muitas sombras, que remetiam a uma atmosfera do submundo, de mistérios e intrigas. The black dream (Urban Gad, 1911), por exemplo, é sobre uma artista circense, Stella, que é amada por dois homens. Nas cenas mais intensas dramaticamente ou de maior sensualidade, os refletores eram postos no chão e assim os atores formavam longas sombras nas paredes (IVERSEN; SOILA; WIDDING, 1998).

Os filmes sensacionais, ambientados no mundo do crime, vício ou circo, eram propícios ao uso trabalhado de iluminação e se utilizavam de muitas sombras, que remetiam a uma atmosfera do submundo, de mistérios e intrigas. The black dream (Urban Gad, 1911), por exemplo, é sobre uma artista circense, Stella, que é amada por dois homens. Nas cenas mais intensas dramaticamente ou de maior sensualidade, os refletores eram postos no chão e assim os atores formavam longas sombras nas paredes (IVERSEN; SOILA; WIDDING, 1998).

 

The black dream (Urban Gad, 1911)[1]

Um dos principais motivos de distinção da produtora dinamarquesa Nordisk, eram os efeitos de iluminação realizados em seus filmes. Um de seus filmes, The evangelist (Forest Holger-Madsen, 1914), por exemplo, envolve um pregador que conta a um jovem sobre seu tempo na prisão, quando foi condenado injustamente por assassinato. O quarto austero e escuro do pregador em que se relata a história é composto de maneira a criar uma atmosfera de fatalidade. Existe já o domínio do contra luz, como exemplificado no plano abaixo à esquerda, no qual um policial na porta é envolto por uma atmosfera branca, a qual significa a vida fora da prisão, a liberdade.

The evangelist (Forest Holger-Madsen, 1914)[2]

Um dos principais diretores dinamarqueses foi Benjamin Christensen. Sua impressionante estreia como diretor foi em The mysterious X (1914), no qual ele também atuou. Foi uma história melodramática de espiões e falsas acusações de traição. É um filme que apresenta uma técnica bem a frente de seu tempo em questão de iluminação: usos reiterativos do contra luz; uso consciente da escuridão em muitas cenas, mostrando a ação através de uma fresta na porta, por exemplo; e composições de claro/escuro que reforçam a dualidade das personalidades dos espiões.

 

The mysterious X (Benjamin Christensen, 1914)[3]

Conclusão

É possível observar influências marcantes da iluminação dinamarquesa nos filmes expressionistas alemães e, posteriormente, nos filmes noir. São iluminações contrastadas e expressivas que se tornaram características dessas estéticas e que tem origem ainda na década de 1910 do cinema silencioso.

As técnicas de iluminação apreendidas durante esse período, não só no cinema dinamarquês, se mostraram eficazes para construir significados imagéticos e tornaram a iluminação mais um elemento a ser pensado dentro da mise-en-scène, agregando-lhe valor artístico.

Bibliografia

ARNHEIN, Rodolf. A arte do cinema. Lisboa: Áster, sem data.

BROWN, Blain. Motion Picture and Video Lighting. Burlington: Elsevier, 1996.

________. Cinematography: theory and practice. Burlington: Elsevier, 2002.

IVERSEN, Gunnar; SOILA, Tytti; WIDDING, Astrid Söderbergh. Nordic National Cinemas. Londres: Routledge, 1998.

MALKIEWICZ, Kris. Film Lighting. New York: Prentice Hall Press, 1986.

 

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005.

MARTINS, André Reis. A luz no cinema. 2004. 209f. Dissertação (mestrado) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.

Sites

“The History of Cinematography”. Disponível em: http://motion.kodak.com/motion/Hub/history1.htm. Acesso em: 07 de set. de 2013.

“Changes in Film Style in the 1910s”. Disponível em: http://www.wcftr.commarts.wisc.edu/collections/featured/aitken/changes/. Acesso em: 07 de set. de 2013.



[1]Disponível em: http://www.dfi.dk/faktaomfilm/film/da/19842.aspx?id=19842. Acesso em 08 de set. de 2013.

[2]Disponível em: http://www.dfi.dk/faktaomfilm/film/en/20540.aspx?id=20540. Acesso em: 08 de set. de 2013.

[3] Disponível em: http://www.dfi.dk/faktaomfilm/film/en/15856.aspx?id=15856. Acesso em: 08 de set. de 2013.

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