Resumo
O presente trabalho busca pensar o papel da cenografia no teatro-dança de Pina Bausch, renomada coreógrafa do Tanztheater Wuppertal (Alemanha), e comparar o seu emprego e interpretação no teatro e no cinema, através dos registros das peças de Bausch e do documentário “Pina” (2011), dirigido por Wim Wenders.
Introdução
Cenografia, do grego grapho – escrever, descrever – corresponde, nesta análise, à grafia da cena e envolve as transformações de material humano e de predicados técnicos através e a favor de história, técnica e estética. A cenografia abrange toda a área visual de um espetáculo (figurinos, luz, adereços e o próprio edifício teatral), configurando-se como arte e técnica de projetar, criar e dirigir espetáculos.
Para os espetáculos de teatro-dança de Pina Bausch, diretora do Tanztheater Wuppertal, a cenografia desempenha um papel fundamental. Os figurinos e cenários criados por Rolf Borzik até 1980 e, a partir de então, destinado aos cuidados de Marion Cito e Peter Pabst, são como respostas gráficas a conceitos propostos por uma dramaturgia desenvolvida pela bailarina e coreógrafa alemã através de movimentos corporais.
Através desse artigo, busco compreender a ideia de cenografia desejada por Pina Bausch e como seu tratamento é percebido no teatro e no cinema, a partir do documentário Pina, lançado em 2011 e dirigido por Wim Wenders.
A cenografia no teatro-dança de Pina Bausch
“Eu não estou interessada em como as pessoas se movem, mas no que as movem.”
Pina Bausch (1940-2009)
A ação sempre foi central para a experiência teatral (1), e, para a dança-teatro de Pina Bausch, não é diferente. As peças coreografadas pela artista alemã eram danças, uma vez que enquadravam-se como uma arte resultante de movimentos sequenciais do corpo, mas o interesse de Bausch não estava no movimento dançante em si, mas “no impulso, na vontade ou necessidade interna que dá origem à ação, que se revela através de imagens em movimento. Bausch estava interessada no drama. Antes que qualquer linguagem interviesse no seu jogo coreográfico, ela dramatizava, de muitas formas, as cicatrizes psíquicas do homem contemporâneo” (2).
“Eu tento achar o que eu não posso dizer em palavras”, dizia a coreógrafa. Pina Bausch transformou uma temática universal em temática para seu trabalho: falava sobre a necessidade de amor, de intimidade e de segurança emocional explorando o estado preciso das emoções humanas sem desistir da esperança de que o amor pode um dia ser encontrado. Junto à esperança, um engajamento próximo da realidade é outra chave do seu trabalho – as peças com frequência se referem a coisas que todos os membros da plateia conhecem, já experimentaram pessoalmente e fisicamente.
Esse direcionamento temático se refletia sobre a cenografia adotada nas peças de Pina Bausch, elaborada por Rolf Borzik (marido de Pina) e, após 1980 – ano da morte de Borzik -, passou aos cuidados de Marion Cito (traje de cena) e Peter Pabst (cenário): através da economia de meios, dando espaço apenas para aquilo que era realmente necessário, os cenários desses artistas conseguem direcionar os olhares para a intensidade das ações (3) presentes nos gestos dos bailarinos de Tanztheater Wuppertal, jogando, por um lado, com elementos da natureza, e por outro com referências da vida cotidiana.
Nesse sentido, a cenografia era fundamental para o teatro-dança de Bausch, pois transformava o drama em um sistema de signos visuais e criava o espaço para a geração de experiências: estimulantes ou tristes, gentis ou confrontantes – por vezes cômicos e absurdos também, os espaços criados por Borzik são sempre físicos, nunca decorativos.
Pina também dava grande importância ao guarda-roupa, que serve para marcar e fazer sobressair certas mensagens de aspecto sexual. As mulheres surgem muitas vezes com roupas provocantes ou em trajes de meninas; os sapatos de salto finíssimo e alto, os vestidos de seda ondulante, o cigarro na ponta dos dedos à maneira de uma Laureen Bacal são outras tantas imagens de marca.
Um traje recorrente no figurino das peças de Bausch é o vestido vermelho – geralmente, aparece como uma peça única, entre trajes de outra cor. O vermelho, que remete à sedução, atração, amor e o poder, é a cor que se associa com a vitalidade e a ambição; contribui também para a confiança em si mesmo, a coragem e uma atitude otimista ante a vida. A peça aparece em performances como “Orfeu e Eurídice” (1975), “A Sagração da Primavera” (1975) e “Vem dançar comigo” (1977).
Os homens também usam vestidos, para salientar as restrições impostas pelos papeis de gênero, sem parecerem drag queens. As roupas são como peles jogadas por cima deles, falhando ao esconder seus medos essenciais.
Philippine “Pina” Bausch nasceu em 1940 em Solingen, tornou-se diretora de dança dos teatros de Wuppertal em 1973. Ao longo de sua carreira, Bausch foi responsável por mais de 40 coreografias e, em 2008, ganhou o Prêmio Kyoto, prêmio japonês, equivalente ao Nobel, que reconhece trabalhos inovadores nos campos da filosofia, arte, ciência e tecnologia. Em 30 de junho de 2009, Pina morreu abruptamente vítima de um câncer. Entretanto, desde 2008 já estava em gravação o documentário Pina que, lançado em 2011, traria a artista de volta à vida. Dirigido pelo renomado cineasta Wim Wenders e feito em colaboração com Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, ZDF theaterkanal und ARTE, Pina homenageia a coreógrafa com pouquíssimas falas, o que revela uma aposta em transmitir a dança pela dança.
A Pina de Wim Wenders
No início do filme, o espectador é trazido para dentro de uma sala de teatro virtual e acomodado em uma plateia vazia. No palco, os bailarinos da companhia de Pina fazem sua performance – dançam “A Segunda Juventude” (performance originalmente realizada em 1975), peça bem-humorada. O cenário é uma reconstituição da criação de Rolf Borzik para essa apresentação: cortinas transparente de gaze dividem espaços de memória.
Segundos depois, por um efeito de montagem, os bailarinos não estão mais no palco. Quem o ocupa agora são trabalhadores que derrubam grandes caçambas cheias de turfa, preparando-o para a apresentação de “A Sagração da Primavera” (performance originalmente realizada em 1975) – acompanhamos seu trabalho até o início da peça. Aqui também a cenografia é uma reprodução da criação de Borzik: o palco está livre, com as portas corta-fogo expostas, e com uma camada de turfa cobrindo o chão, dificultando a movimentação dos bailarinos. Os homens vestem calça preta simples, seus torsos nus. As mulheres vestem túnicas diáfanas curtas.
O libreto é baseado em uma lenda da Rússia pagã: seu transporte para o presente é brutal, com uma presença física direta. Os bailarinos não indicam: eles dançam desesperadamente como se suas vidas dependessem disso. Apesar da fidelidade adotada pelo filme em relação ao retrato dos espetáculos de Pina, a diferença entre as linguagens teatral e cinematográfica fica evidente: o uso da câmera como mediadora da visão faz com que, de repente, o espectador não mais esteja na plateia, mas esteja em cima do palco, dançando com os bailarinos através da identificação com a câmera, dividindo seu olhar, acompanhando seu movimento, quebrando a tradicional distinção entre plateia e cena existente no teatro. Ao assistirmos à “Sagração da Primavera” na tela do cinema, podemos sentir a textura da turfa, o peso que ela traz para a movimentação dos bailarinos, o desconforto da sujeira.
Assim, o diretor, ao invés de levar elementos do teatro para o cinema, leva elementos do cinema para o palco. Na apresentação de “Kontakthof” (performance realizada em 1978), originalmente, a coreografia mostra aulas de dança em um salão de bailes – as cadeiras são alinhadas na volta das paredes brancas, junto com um velho piano. Na parede do outro lado, uma tela foi instalada, como um palco dentro do palco. Ainda assim, mais uma vez esse é um espaço de memória, no qual as marcas deixadas pela infância e os desejos sentidos no presente podem ser explorados. As roupas são extremamente elegantes; os jogadores estão muito bem vestidos.
Em Pina, a tela no palco foi substituída pelo efeito da edição: a volta à infância e a reconstituição da memória são percebidas através da justaposição de planos da mesma coreografia encenada por pessoas de diferentes idades, com roupas semelhantes, repetindo os mesmos gestos .
A adoção de novos pontos de vista do espetáculo proporcionados pelo cinema também influenciam na forma como percebemos a cenografia e como esta dialoga com a peça. No teatro, a cenografia funciona, nas palavras do polonês Pawel Dobrycki, como um espaço pictórico de um mundo metafórico da peça (5) – suas aparências estão voltadas para o interior, em frente ao público e do proscênio; ele existe graças ao seu avesso e à sua ausência de além, como a pintura graças à moldura. Do mesmo modo que o quadro não se confunde com a paisagem que representa, nem é uma janela numa parede, o palco e o cenário onde a ação se desenrola são um microcosmo estético inserido à força no universo, mas essencialmente heterogêneo à natureza que o rodeia (6).
No cinema, o espaço não precisa ser uma metáfora do mundo, mas pode ser o próprio mundo – o princípio do cinema é negar qualquer fronteira para a ação. O conceito de lugar dramático não é apenas alheio, mas essencialmente contraditório à noção de tela. A tela não é uma moldura, como a do quadro, mas uma máscara que só deixa uma parte do evento ser percebida. Quando um personagem sai do campo da câmera, nós admitimos que ele escapa ao campo visual, mas ele continua a existir, idêntico a si mesmo, num outro ponto do cenário, que foi mascarado. A tela não tem bastidores, não poderia ter sem destruir sua ilusão específica, que é fazer de um revolver ou um rosto o próprio centro do universo. Ao contrário do espaço do palco, o da tela é centrífugo.
Quando Wim Wenders decidiu documentar as peças de Pina, ele não simplesmente refilmou suas coreografias, mas aproveitou das possibilidades estéticas advindas com a técnica cinematográfica para levar a arte de Pina Bausch além. Para ser fiel às temáticas cotidianas e de natureza que eram fundamentais na obra de Pina, Wenders escolheu não ser necessariamente fiel ao espaço de encenação tradicional do teatro – no documentário, os bailarinos saem da construção arquitetônica que é o teatro e se apropriam de parques, metrô e ruas como espaço cênico.
“Se por cinema entende-se a liberdade de ação em relação ao espaço, e a liberdade do ponto de vista em relação à ação, levar para o cinema uma peça de teatro será dar a seu cenário o tamanho e a realidade que o palco materialmente não podia lhe oferecer” (7), diz André Bazin.
Exemplo disso, é a reiterada encenação de “A segunda juventude” durante o filme: exibida primeiramente no palco como número inicial do filme, no cenário originalmente criado por Borzik, é retomada em outros momentos fora do teatro – os bailarinos passam por diversos lugares, espaços abertos, naturalmente construídos. A mesma coreografia que iniciou o filme o encerra, com os bailarinos repetindo os mesmos gestos através de montanhas.
Bazin ainda diz que, na tela, o homem deixa de ser o foco do drama para tornar-se eventualmente, o centro do universo. O choque de sua ação pode desenvolver nele suas ondas ao infinito; o cenário que o rodeia participa da espessura do mundo.
É claro que, se o cinema utiliza a natureza, é porque ele pode: a câmera oferece ao diretor todos os recursos do microscópio e do telescópio. As causas e o efeitos dramáticos não tem mais, para o olho da câmera, limites materiais. O drama é, por ela, liberado de qualquer contingência de tempo e espaço (8).
Ainda em outro momento, Wim Wenders não se limita a levar apenas os bailarinos para fora do teatro: leva também seu figurino e iluminação. Em certa passagem de “Pina”, um de seus bailarinos e amigos aparece em uma roupa tradicional de balé (o traje, que é feminino – um corpete e tutu brancos -, condiz com aqueles usados nos palcos pelos homens do Tanztheater) iluminado por um canhão. Poder-se-ia dizer que se está em um teatro, não fosse o restante do cenário: o bailarino dança sobre um carrinho, dentro de um túnel grafitado e deteriorado.
Dessa forma, Wenders realiza um movimento contrário ao que fazia Pina: através da cenografia, Pina queria trazer a realidade para o palco; Wenders, através de sua câmera, desejou trazer o palco para a realidade.
Conclusão
Pina Bausch uma vez declarou: “Tem coisas que nos deixam sem palavras. E tem coisas que as palavras não dão conta de dizer. É aí que entra a dança”. Essa dança de Pina, que vale mais do que mil palavras, foi imortalizada no cinema através da câmera de Wim Wenders.
Em termos cenográfico, de uma maneira geral, teatro e cinema se aproximam nos espetáculos de Pina Bausch: tanto a criação de Rolf Borzik como a interpretação de Wenders sobre o seu trabalho articulam o espaço e a informação visual através de uma arte temporal, alternando a percepção do espectador entre corpo, espaço, tempo e significado. (9)
Entretanto, se pensarmos em cenografia como grafia da cena, pode-se dizer que, além de cenário e figurino, que são comuns ao teatro, o cinema apresenta mais um elemento cenográfico: a câmera – é ela que determina a nossa leitura da cena, através de seu enquadramento, valorizando ou omitindo elementos, revelando detalhes que não poderiam ser percebidos em um palco.
Wenders chama o Tanztheater como parceiro e persiste em criar novas situações cênicas e coreográficas por meio de diálogos com os bailarinos. Dessa forma, o filme deixa de ser apenas um registro de espetáculos e reivindica para si momentos de forte atração visual e apelo sinestésico, que não distorcem, mas sim interpretam de uma nova maneira os objetivos de Pina Bausch de construir curtas cenas de ação através de gestos espontaneamente emocionais, através do diálogo entre as linguagens teatral e cinematográfica, como uma homenagem póstuma à coreógrafa que alterou as normas tradicionais do Ballet e criou as bases da dança contemporânea.
Notas:
(1) PAYNE, Darwin Reid. Scenographic Imagination. Terceira edição – Southern Illinoius University.
(2) CALDEIRA, Solange. A construção poética de Pina Bausch. Em: http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis16/Poiesis_16_ART_PinaBausch.pdf.
(3) Página do Tanztheather Wuppertal Pina Bausch. Em: http://www.pina-bausch.de/start.php
(4) HOWARD, Pamela. What’s Scenography?. Segunda edição – Routledge, 2009.
(5) Idem.
(6) BAZIN, André. Teatro e Cinema. In: O Cinema – Ensaios. Tradução: Eloisa de Araujo Ribeiro.
(7) Idem
(8) idem
(9) HOWARD, Pamela. What’s Scenography?. Segunda edição – Routledge, 2009.
Referências bibliográficas:
PAYNE, Darwin Reid. Scenographic Imagination. Terceira edição – Southern Illinoius University.
CALDEIRA, Solange. A construção poética de Pina Bausch. Em: http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis16/Poiesis_16_ART_PinaBausch.pdf.
Página do Tanztheather Wuppertal Pina Bausch. Em: http://www.pina-bausch.de/start.php
HOWARD, Pamela. What’s Scenography?. Segunda edição – Routledge, 2009.
BAZIN, André. Teatro e Cinema. In: O Cinema – Ensaios. Tradução: Eloisa de Araujo Ribeiro.,
BULCÃO, Heloisa Lyra. Espaço teatral, espaço fílmico e a cenografia de Luiz Carlos Ripper para Xica da Silva. Em: http://www.cenacine.com.br/wp-content/uploads/espaco-teatral-e-filmico-publicacao.pdf
VASCONCELOS, Helena. Pina Bausch. Em: http://www.storm-magazine.com/novodb/arqmais.php?id=600&sec=&secn
* Gabriela Lopes Akashi é estudante da ECA – USP