A monotonia e autonomia do som em Baxter, Vera Baxter

Por Laura Penalva.

O cinema é reconhecido como a arte da imagem em movimento; quando surgiu, era silencioso — poderia ter um acompanhamento musical, é claro, mas este se dava por intermédio de apresentações durante as sessões e não fazia parte essencialmente do filme. Com o passar dos anos e o aprimoramento da tecnologia, essa ideia foi se modificando, e, atualmente, o som tem seu lugar garantido na indústria cinematográfica. Filmes como Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, Billy Wilder, 1950) e Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, Gene Kelly; Stanley Donen, 1952) retratam o impacto da chegada do som às telas a partir, respectivamente, das perspectiva pessoal e industrial; ambos os casos partem do cinema em si para abordar o assunto.

Nesse contexto (ou fora dele), estreia em 1977 Baxter, Vera Baxter, longa francês dirigido por Marguerite Duras, o qual constrói seu sentido majoritariamente pelo som, utilizando a imagem como plano de fundo para os acontecimentos em sua maioria relatados, e não mostrados. Diferentemente das obras mencionadas, o som não é a base de conflitos, nem sequer possui importância dentro da diegese, mas atua quase como um personagem em suas principais formas: música e diálogo.

A partir do uso de planos que enaltecem a ausência humana, seja no próprio quadro ou na vida da protagonista, o desconsolo é um elemento prevalecente ao longo de seus 91 minutos de duração, dessa forma, a constância e a lentidão características da obra se revelam em diversos aspectos. Há a prevalência de planos estáticos, os quais enfocam as pessoas, enquanto as panorâmicas, tanto verticais, quanto horizontais, exploram espaços sem a presença humana. Em alguns momentos, como nas cenas no restaurante, as conversas se estabelecem entre duas personagens, porém apenas uma é enquadrada enquanto a outra permanece fora de quadro. Elas não usam expressões faciais ou movimentos corporais em suas atuações: o diálogo, assim como sua ausência, é a essência do filme. Não somos convidados a ver, mas sim a imaginar tudo o que é dito. Assim, o sentido primordialmente requerido não é a visão, mas a audição.

Dessa forma, as imagens são responsáveis pela ambientação do enredo; entre os créditos, intercalam-se planos do corpo nu de Vera, os quais curiosamente não remetem ao erotismo, mas à indiferença, ao desgaste; a partir desse ponto, não há mais nada para ver, apenas ouvir — a protagonista se desvencilha de tudo, inclusive seu casamento, como será apresentado adiante.

Ainda falando sobre sons, um aspecto peculiar se impõe por meio da trilha musical. Ouve-se uma única melodia sufocante e repetitiva ao longo de todo o filme, a qual apresenta uma relação simultânea de contraste e semelhança com os acontecimentos em cena. A partir da união entre um instrumento de corda e uma flauta, a música representa a obra devido a sua imutabilidade, mas se distancia dela pelo seu ritmo alegre e agitado. Assim como o enredo não passa por surpresas, reviravoltas ou mudanças de tom, a música permanece a mesma do início ao fim.

A natureza se faz presente no aspecto visual e sonoro, e, apesar de não estar diretamente ligada aos conflitos da trama, cria uma ambientação pacífica e até melancólica. No começo, uma panorâmica suave acompanha o caminhar de Vera à porta de casa, observando, pela parede de vidro, o mundo exterior repleto de árvores, que enfatizam a lentidão da obra. Seja no plano de fundo, em reflexos ou em panorâmicas dedicadas à exploração do ambiente natural, esses seres que se desenvolvem tão lenta e silenciosamente, enraizados na terra, refletem com primor o comportamento das personagens, visto que vigora a ausência de expressividade emocional — não há lágrimas, sorrisos ou exaltações — e verbal — os diálogos seguem um tom monótono e neutro. Em um dos pouquíssimos momentos de instabilidade, Vera grita com seu marido ao telefone, mas essa imagem não nos é mostrada: apenas ouvimos seus gritos e somos convidados a imaginar sua reação — mais um exemplo do destaque dado ao som na trama.

Jean Baxter é uma figura que incita constante curiosidade, pois seu nome é pronunciado diversas vezes, mas sua face jamais é mostrada. Sabemos pelos diálogos que sua relação com a esposa é infeliz; após o conflito, acompanhado visualmente por planos de Vera, do mar, e de uma grande construção antiga em ruínas, o ambiente em que se encontra Jean é apresentado com a música em volume baixo — aparentemente, ele a ouve pelo telefone. Quando a ligação é encerrada, a música também cessa, por alguns segundos, como representação da quebra total desse relacionamento.

Assim, Baxter, Vera Baxter, como a maioria dos outros filmes de Duras, salienta a palavra, o diálogo (e até mesmo as imagens) do filme de modo literário. É como se assistíssemos a um livro a partir de moldes cinematográficos, no qual a imagem assume um papel complementar e contemplativo, enquanto somos convidados a construir parte da história com base nas informações apresentadas verbalmente. Seu tom lento corrobora a noção de que a leitura e a escrita requerem tempo para devida apreciação, assim como a paisagem, a música e, enfim, um relacionamento.

Bibliografia

GARCIA, Lawrence. Difference and Repetition: The Filmmaking of Marguerite Duras. MUBI, [S.l.], 8 set. 2020. Disponível em: https://mubi.com/pt/notebook/posts/difference-and-repetition-the-filmmaking-of-marguerite-duras. Acesso em: 8 jan. 2022.

PORTO, Walter. Por que Marguerite Duras, autora que escrevia para não morrer, ressurge no Brasil. Folha de S. Paulo, Brasil, 29 out. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/10/por-que-marguerite-duras-autora-que-escrevia-para-nao-morrer-ressurge-no-brasil.shtml. Acesso em: 8 jan. 2022.