Crítica | Os Fabelmans (2022), de Steven Spielberg

Por: Luís Gongra

Se tornou rotineiro, nos últimos anos, filmes que homenageiam o cinema e que são autobiografias de seus diretores. Armageddon Time (2022), Belfast (2021) e Roma (2018) são apenas alguns dos exemplos mais recentes. Em Os Fabelmans (2022), porém, Steven Spielberg não me parece apenas homenagear a sétima arte e fazer uma ode superficial aos filmes. Junto ao seu retrato autobiográfico, o diretor constrói um melodrama familiar típico dos Estados Unidos e explora o fardo que é carregar um olhar cinematográfico – o fardo de ser amaldiçoado pelo cinema.

A trama acompanha Sammy Fabelman (Gabriel LaBelle), um garoto que é obcecado pelo cinema. Desde cedo, o menino convence suas irmãs e seus pais a ajudá-lo em pequenos filmes caseiros que realiza, mas sua obsessão não vem de um mero deslumbramento, e sim de um temor. Quando vai pela primeira vez ao cinema, Sammy assiste O maior espetáculo da Terra (1952), de Cecil B. DeMille, e fica assombrado pela cena do trem descarrilando. Ele sonha com o filme e tem pesadelos com as imagens grandiosas que DeMille arquitetou.

Seu temor é tanto que o garoto precisa reproduzir a cena com seu trem de brinquedo para conseguir se livrar. Ele precisa recriar um acontecimento cinematográfico para curar sua aflição. Neste filme, Spielberg não está interessado em fazer uma homenagem pueril da sétima arte – reverenciar a magia do cinema -, e sim mostrar como, para ele, o cinema é uma assombração. E a única maneira de escapar dela é observar o mundo com uma visão de cinema. A sua vida precisa se transformar num drama cinematográfico.

Seguindo esse caminho, acredito que o drama familiar entre Burt (Paul Dano) e Mitzi (Michelle Williams) com Sammy (pais e filhos) explora muito bem essas possibilidades. Me parece que cada acontecimento carrega um peso dramático, como se o olhar do protagonista manipulasse a realidade dos acontecimentos e nos fizesse enxergar tudo como se fosse parte de um grande filme hollywoodiano. Penso na cena em que os pais anunciam o divórcio. Enquanto os dois explicam sua decisão e as filhas não aceitam a separação, Sammy se imagina no espelho filmando aquele momento. Pro protagonista, é impossível não enxergar aquele momento de ruptura em sua vida com um olhar cinematográfico.

Mas veja, não me refiro somente a momentos grandiosos da vida de Sammy, como também situações cotidianas e mundanas. Aliás, acredito que Spielberg propositalmente enfatiza os gestos simples e sutis de seus personagens, quase como num melodrama dirigido por John Ford. Sammy estende a mão para Mitzi ver seu filme, primeiro como criança e depois como adulto; A mãe toca piano com uma graciosidade sublime; O filho projeta suas imagens nas próprias mãos. Até gestos violentos, como o tapa que Mitzi dá em Sammy, ganha uma valorização maior pela mise en scène. Cada movimento corporal dos personagens tem um escopo muito maior, pois estes fazem parte de um filme – o filme que está na cabeça de Sammy Fabelman.

Além disso, enxergo como fundamental para a construção melodramática a maneira como o diretor dispõe seus personagens nos espaços, sobretudo no lar familiar. A câmera é colocada atrás de paredes e portas; espelhos percorrem toda a casa (sejam espelhos de verdade, seja o reflexo do piano); diversos rostos e corpos são enquadrados num mesmo plano, ainda que distantes um dos outros; silhuetas dos familiares se forma na parede, como assombrações. Essa disposição espacial revela uma dinâmica cinematográfica antinatural. Os personagens não se comportam como figuras realistas, e sim arquétipos de um melodrama americano (a mãe isolada no lar, o pai focado no trabalho, o amante divertido), portanto os movimentos e espaços que eles realizam e ocupam revelam essa artificialidade, esse exagero melodramático.

Seguindo essa lógica, acho interessante como Spielberg usa o próprio cinema como um elemento diegético, que revela e que manipula a realidade da família Fabelman. Duas cenas demonstram essa dinâmica: a descoberta da traição e a exibição do curta colegial. Na primeira, vemos Sammy montando as filmagens que fez de sua família acampando, enquanto Mitzi toca piano.

Enquanto vasculha e organiza as imagens, o garoto percebe alguns detalhes que não pôde ver enquanto estava lá, sua mãe trocando carícias com outro homem. Por meio das imagens cinematográficas, ele descobre uma verdade implícita e escondida. O cinema revela o maior segredo de sua mãe: ela está apaixonada por outra pessoa. E Spielberg conduz a cena com uma tensão crescente, a câmera passeia em volta de Sammy, enquanto observa o rosto de Mitzi refletido no piano – afinal, estamos vendo um outro lado de sua vida, um reflexo de quem ela é.

Na segunda cena, vemos o protagonista apresentando o curta colegial que filmou, com os colegas de escola se divertindo na praia. Nesse momento, percebemos que Sammy manipulou as imagens que registrou para fazer com que o bully do colégio, que vivia perseguindo o personagem, parecesse com um monumento, um atleta perfeito e idealizado. A montagem e a câmera exageram os gestos do atleta, revelam uma graciosidade que não existia no mundo real – ou pelo menos que Sammy não enxergava. O cinema, que antes revelava a verdade de sua mãe, agora é manipulado pelo protagonista para criar uma mentira, uma ilusão.

No fim, a vida de Sammy será sempre impactada pelo seu olhar cinematográfico, seja descobrindo coisas que ele não quer saber, seja inventando realidades exageradas. Não à toa o melodrama aparece como o gênero dessa semi-autobiografia. Spielberg sabe que, para trabalhar com essas construções assombrosas e mentirosas do cinema, é necessário partir para o gênero primordial do cinema americano, que perpassa Griffith, Ford, Sirk e tantos outros.

John Ford, interpretado por David Lynch, também não aparece por acaso. A cena funciona como uma união de gerações e ajuda a juntar os dois lados de Os Fabelmans: o melodrama familiar e a homenagem ao cinema. O encontro deles não só representa o melodrama que Ford trouxe a Spielberg, como também a própria história do cinema se unindo através dos maiores ícones de suas gerações. O cinema estadunidense é personificado na figura dos diretores como na passagem de um legado, que se mantém vivo até hoje.