GÊNERO E SEXUALIDADE NO CINEMA DE HORROR

FONTE: A NOIVA DE FRANKSTEIN

Por: Ives Natan de Castro Maia Menezes (UNI7/PROUNI)

RESUMO

O presente ensaio examina a interseção entre gênero, sexualidade e cinema de horror, propondo uma análise das representações ao longo do tempo. Destaca-se a influência das mídias na manutenção de convenções sociais, especialmente no papel submisso atribuído às mulheres no cinema, conforme argumentado por Kaplan (1995). Ao abordar as décadas de 1960 e 1970, marcadas por movimentos sociais, o texto explora o surgimento do subgênero slasher, no qual corpos femininos são erotizados e punidos com a morte, simbolizando mudanças sociais. A estrutura é dividida em duas seções principais: “Cinema de Horror e Sociedade” e “Do Conservadorismo à Subversão”, buscando correlacionar as representações da sexualidade feminina desde o surgimento do subgênero até produções contemporâneas.

Palavras-chave: Cinema horror; sexualidade; gênero; slasher.

ABSTRACT

The present essay examines the intersection of gender, sexuality, and horror cinema, proposing an analysis of representations over time. It emphasizes the influence of media in maintaining social conventions, particularly the submissive role assigned to women in cinema, as argued by Kaplan (1995). Addressing the 1960s and 1970s, marked by social movements, the text explores the emergence of the slasher subgenre, where female bodies are eroticized and punished with death, symbolizing social changes. The structure is divided into two main sections: “Horror Cinema and Society” and “From Conservatism to Subversion,” aiming to correlate representations of female sexuality from the inception of the subgenre to contemporary productions.

Keywords: Horror cinema; sexuality; gender; slasher.

INTRODUÇÃO

Para além das representações de medo e de perigo, há algumas temáticas constantemente abordadas, mas nem sempre percebidas, no cinema de horror: gênero e sexualidade. A inquietação acerca desses temas está além do universo cinematográfico, perpassando os âmbitos social, político e econômico da sociedade moderna. Consequentemente, é possível utilizarmos os filmes de horror como objeto de estudo para a análise das ideologias predominantes em determinadas épocas. De acordo com Pelúcio (2012), as ramificações midiáticas exercem papel fundamental na “manutenção e reprodução das convenções sociais sobre masculinidades, feminilidades e orientação sexual” (Pelúcio, 2012, p.07).

É necessário apontarmos que durante muito tempo as mulheres estavam predestinadas a ocuparem o papel de submissas. À vista disso, Kaplan (1995) afirma que o olhar predominante no meio cinematográfico é o masculino, pois as mulheres são representadas sem o direito de voz ativa, caso contrário essas personagens são castigadas “por recusar-se a submeter-se aos códigos que definem seu espaço e limitam suas possibilidades ao que o patriarcado exige” (Kaplan, 1995, p.24).

Posteriormente, durante as décadas de 1960 e 1970, emerge os movimentos de luta por direitos dos negros, dos gays e das mulheres, questionando os valores sexuais vigentes na sociedade. Como reflexo do liberalismo efervescente entre a juventude norte-americana, a sexualidade feminina ganha maior destaque nas produções cinematográficas. Diante dessas mudanças, nasce o subgênero slasher ou stalker movie “nos quais corpos femininos são erotizados, mostrado nas telas e punidos com a morte” (Fortes, 2019, p.01). Nessas produções, o assassinato cometido contra jovens sexualmente ativas é um fator simbólico, pois, geralmente, essas mulheres não têm valor para a trama principal do longa-metragem.

Para o desenvolvimento dessas questões, o presente ensaio está organizado em duas seções principais: Cinema de Horror e Sociedade, na qual discutiremos o cinema de horror enquanto representante das questões sociais de uma determinada época; Do Conservadorismo à Subversão, na qual faremos uma correlação entre as representações da sexualidade feminina desde o surgimento do subgênero slasher até os filmes da contemporaneidade. 

CINEMA DE HORROR E SOCIEDADE

A primeira produção audiovisual de horror que se tem registro é o curta-metragem A Mão do Diabo (1896), dirigido pelo cineasta e ilusionista francês George Méliès. O horror sempre esteve presente no imaginário das pessoas e nas diferentes formas de comunicação humana. A título de exemplo, podemos citar a pintura Saturno Devorando um  Filho (1823), de Francisco de Goya, assim como a literatura de Edgar Allan Poe.

Fonte: Cinema da História, “A Mão do Diabo” (1896).

Na década de 1930, o horror volta aos holofotes com a série  de filmes “Monstros da Universal”. Durante esse primeiro grande ciclo do horror no cinema, já se pode verificar a exploração de temores e angústias sociais de suas épocas. No longa-metragem Frankenstein (1931), de maneira metafórica, é abordado questões éticas relacionadas à criação e controle da vida; em Drácula (1931), o estrangeiro que ameaça a ordem social, a imigração e a sexualidade reprimida são temas levantados. A série “Monstros da Universal” frequentemente usava criaturas sobrenaturais como metáforas para questões sociais e psicológicas profundas. Ao fazer isso, contribuiu para a evolução do cinema de terror e estabeleceu muitos dos signos que ainda vemos nos filmes do gênero hoje.

O avanço do movimento negro nos Estados Unidos, durante a década de 1950, se deu através da luta pelos Direitos Civis. Segundo Silva (2021), a segregação racial ainda era presente nas legislações estaduais, ao mesmo tempo que as diferenças salariais e os índices de “desemprego entre a população negra e branca era duas vezes maior, enquanto o salário duas vezes menor” (Silva, 2021, p.03). Durante este período de forte ebulição social, é lançado o longa-metragem O Monstro da Lagoa Negra (1954). O filme apresenta uma equipe de pesquisadores e arqueólogos que estão navegando pela Amazônia em busca de uma criatura aquática com características humanoides. De acordo com Coleman (2019), o longa pode ser interpretado como “metaforicamente racializado e contra a mistura de raças”, pois a criatura é retratada de forma caricata e racista, com lábios grandes, pele pigmentada, violento e obstinado em capturar a mulher branca. 

O monstro serve como uma imagem inversa da evolução branca, que é mostrada como moderna, intelectual e civilizada. Isto é, o filme nos diz que os brancos — homens brancos no topo da hierarquia — evoluíram, enquanto, note, outras raças permanecem estáticas e imóveis em seu progresso. Logo, o filme fala sobre onde, ou em quais lugares (a Amazônia exótica e perigosa), e em quais populações (os brasileiros negros ou não brancos) é possível encontrar a inferioridade. Quando o monstro encara o seu esperado fim em seu próprio território, pelas mãos da elite científica branca, não apenas sua subordinação é assegurada, mas também fica evidente que “outro” não tem lugar nem pode contribuir para o mundo branco, e que sua mera presença, ainda que em seu mundo não branco, é um incômodo — algum tipo de fardo do homem branco. (Coleman, 2019, p.108)

Na década seguinte, as mudanças no estilo de vida da juventude ficaram perceptíveis conforme crescia o movimento hippie. A bandeira da liberdade sexual e do pacifismo contrariava o status quo de um país que mandava seus filhos à guerra do Vietnã (1955–1975). Nessa conjuntura, o filme A Noite dos Mortos Vivos (1968), marco do gênero, conta história de um grupo de pessoas que se isolam em uma casa para fugir de uma ameaça zumbi. Dentre essas pessoas está Ben, um protagonista negro. Os conflitos que acontecem entre Ben e os demais personagens estão além da ameça zumbi, são também reflexos de suas diferenças e estereótipos. 

Outro fator importante do longa é a descredibilização das instituições legais, visto que quando as autoridades chegam na casa onde os personagens estão, elas representam perigo, assim como os mortos-vivos. Para Russel (2010), esse aspecto do longa-metragem representa “a destruição da ordem vigente”, pois esse sentimento niilista de que uma transformação social é inalcançável “dizia muito sobre as  mudanças  cataclísmicas  que  aconteciam  no  subconsciente norte-americano desde o assassinato do presidente Kennedy, em 1963” (Russel, 2010, p.119).

DO CONSERVADORISMO À SUBVERSÃO 

Assim como abordagens às temáticas raciais, questões de gênero e sexualidade são constantemente referenciadas nas obras cinematográficas de horror. Esses temas ficam mais evidentes a partir da década de 1970 com o surgimento do subgênero slasher ou stalkie movie — filmes no qual um psicopata mascarado mata um grupo de jovens com algum objeto cortante — nos longas dessa categoria a sexualização de corpos femininos virou, por norma, um fator fundamental para construção da narrativa. 

Em contrapartida às conquistas do movimento feminista, como a pílula do dia seguinte e a equiparação salarial, os filmes slashers dessa década refletiam “uma carga semântica moral consolidada por uma sociedade conservadora” (Fortes, 2019, p.03). Nessas produções, as personagens femininas que exibem sua sexualidade ou agem fora da conduta moral conservadora são punidas pelo assassino. Embora retratadas com estereótipos de vulnerabilidade, essa “fórmula” do subgênero permite “que elementos antifeministas, como a crueldade perpetrada às mulheres, e os elementos feministas, como a heróica sobrevivente feminina, possam coexistir” (sic) (Garcia, 2010, p.02).

O slasher trouxe consigo o conceito de Final Girl, a última garota, a sobrevivente final. Essa concepção é executada pela primeira vez, nos moldes que ficaram conhecidos, no filme Halloween: A Noite do Terror (1978). Após o sucesso de bilheteria da película — aproximadamente 70 milhões de dólares — diversos longas replicaram a sua fórmula da Final Girl, que era basicamente “a moça que não tinha uma vida sexual ativa, não usasse drogas, sobreviveria no final dos filmes, ao contrário do grupo promíscuo no qual ela estava inserida” (Fortes, 2019, p.01). 

Bem como os códigos morais impostos à última garota, o falocentrismo também é explorado por meio de signos —  facas, motosserras, furadeiras e objetos cortantes no geral. De acordo com Clover (1992), essa simbologia representa uma sexualidade compartilhada entre a Final Girl e o assassino, que ao ser derrotado pela sobrevivente sofre uma castração metafórica. 

A Final Girl não apenas se fortalece; ela especificamente retira a masculinidade de um opressor cuja masculinidade já estava em questão desde o início. Quando o drama se desenrola, a escuridão dá lugar à luz e os espaços apertados cedem lugar à ampla extensão (Clover, 1992, p.49, tradução livre)

Durante a primeira onda dos filmes slashers (1980 – 1990) é possível verificarmos as normas morais em torno das personagens femininas serem replicadas repetidamente. Segundo Clover (1992), durante o filme, a Final Girl tende a masculinizar-se para se tornar a heroína no final da trama, pois dessa forma o longa atende indiretamente a expectativa ocidental de que o herói seja do sexo masculino. Essa percepção fica clara ao observarmos os pontos de vista adotados pela câmera. Nos primeiros momentos, acompanhamos o ponto de vista do assassino observando as vítimas, com foco nos corpos femininos. Porém, no último ato a perspectiva é invertida. A última sobrevivente adota uma postura investigativa, apodera-se dos símbolos fálicos e enfrenta o seu algoz.

Fonte: O Massacre (1982)

Apesar da reprodução de valores morais — de forma direta ou indireta — o advento dos filmes slashers simboliza uma transformação significativa nas representações femininas em obras cinematográficas, visto que após o estabelecimento das Final Girls, as personagens femininas deixaram de se limitar aos papéis de vítimas, tornando-se “protagonistas em sentido pleno”, pois combinavam “as funções de vítima sofredora e herói vingador” (Clover, 1992, p.17, tradução livre).

Durante o final da década de 1980 a “fórmula” dos filmes slashers já havia se esgotado e o subgênero não tinha repercussão como nas décadas anteriores, uma vez que “as pessoas ficaram cansadas do mesmo tipo de história se repetindo” (Chiconelli, 2022, p.10). A partir de 1990, as representações femininas no cinema de horror iniciam seu rompimento com os estereótipos estabelecidos anteriormente. No decurso desse período, a “vitimização, fetichização, assassinato em nome da virtude que nas décadas passadas funcionavam para ocultar os medos patriarcais não funcionam mais” (Kaplan, 1995, p.23). 

Um marco desse período foi o lançamento do filme Pânico (1996). O longa-metragem apresenta um desenvolvimento diferente da tradição dos slashers. Na película, a representação da Final Girl, Sidney Prescot, é “uma menina popular, com vários amigos, e um namorado também popular” (Chiconelli, 2022, p.11). Além disso, Sidney perde a virgindade durante o filme e mesmo assim sobrevive — diferente do que acontecia com as personagens femininas que exploravam sua sexualidade nas obras cinematográficas das décadas anteriores. Essas mudanças na representação feminina que Pânico (1996) apresenta, refletem uma sociedade em que “os movimentos de liberação feminina encorajaram as mulheres a tomar posse de sua sexualidade, homo ou hétero” (Kaplan, 1995, p.23). Em síntese, a mulher sexual

não pode mais ser taxada de “má”, uma vez que adquiriu o direito de ser “boa” e sexual. A necessidade de se usar o falo como principal arma para dominar a mulher, não importando quem ela seja ou se fez ou não algo errado, não pode mais ser escamoteada (Kaplan, 1995, p.23).

Após o sucesso do filme Pânico (1996), os tropos em torno da Final Girl foram alterados e subvertidos. As produções cinematográficas de horror, a partir dos anos 2000, passaram a apresentar personagens femininas com construções de identidade mais distintas, tornando-se “algo mais próximo de uma representação do gênero feminino com tanta personalidade quanto os personagens masculinos” (Chiconelli, 2022, p.13), não seguindo necessariamente algum estereótipo. 

Fonte: Casamento Sangrento (2019)

A subversão dos valores morais nos filmes de horror estão associadas aos avanços nas questões sociais e culturais. Logo, os longas-metragens produzidos na contemporaneidade buscam retratar personagens femininas de uma forma empoderada e independente. Essa modificação nos tropos em torno das garotas finais representa “um avanço feminista porque, antes dos anos 90, a Final Girl era caracterizada por ser solitária, isolada, ser a única entre as mulheres que ‘merece’ não ser assassinada” (Chiconelli, 2022, p.15). 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo de uma correlação entre sociedade e o cinema de horror, é indiscutível que os filmes do gênero representem valores de uma determinada época. De acordo com Clover (1992), a proeminência de papéis femininos nas produções cinematográficas de horror é um efeito estrutural de maior interesse nas vítimas da narrativa. Porém, ao verificarmos as modificações nas representações de personagens femininas ao longo do tempo, podemos determinar que as Final Girls são complexas e distintas, podendo, portanto, exibir valores conservadores ou subversivos. 

No início das décadas de 1970 e 1980, os personagens femininos limitavam-se a serem observados, objetificados e punidos de acordo com normas morais. Porém, com avanço das lutas femininas, a partir do final da década de 1980 e início de 1990, os personagens do sexo feminino passaram a ter características mais distintas e menos estereotipadas, subvertendo o conceito de que só um tipo de mulher merece sobreviver ao final dos longas.

O lançamento de Pânico (1996) marca o período “divisor de águas” para os personagens do sexo feminino. O filme rompe com a disputa entre personagens femininas que existe indiretamente nos longas do gênero, ou seja, não existe apenas uma única sobrevivente, pelo contrário, para poder se salvar dos assassinos, as personagens Sidney e Gayle precisam trabalhar juntas. 

Concluímos, portanto, que nos filmes da contemporaneidade, as personagens do gênero feminino não precisam mais seguir normas morais ou serem salvas. Em suma, as narrativas de horror passaram a refletir as mudanças na sociedade, incorporando personagens femininas que não apenas resistiram às ameaças, mas também desafiavam as expectativas tradicionais. Essa evolução na representação feminina no cinema de horror reflete as transformações mais amplas na percepção e papel das mulheres na sociedade contemporânea. O cinema de horror, assim, torna-se um espelho que reflete não apenas os medos da sociedade, mas também suas aspirações e evoluções em termos de igualdade de gênero.

REFERÊNCIAS

CHICONELLI, Giovana. Vítimas ou heroínas? Representação feminista de personagens do gênero feminino em filmes de terror slasher na trilogia Rua do Medo. Revista Miguel. 2022

CLOVER, Carol. Men, Women, and Chain Saws. Princeton: Princeton University Press, 1992.

COLEMAN, Robin. Horror Noir. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2019.

FORTES, Rafael. Slashers, horrores demoníacos e conservadorismo: o feminino como erotização, mercadoria e consumo. CONEDU – VI Congresso Nacional da Educação, 2019.

GARCIA, Gabriel. Corpo, violência e transgressão: os afetos degenerados no cinema de terror contemporâneo. Fazendo Gênero 9 – Diásporas, diversidades, deslocamentos, 2010.

KAPLAN, Ana. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

PELÚCIO, Larissa. Olhares plurais para o cotidiano: gênero, sexualidade e mídia. São Paulo: ABEU, 2012.

RUSSEL, Jamie. Zumbis: o livro dos mortos. São Paulo: Leya Cult, 2010.

SILVA, Wilton. A Luta pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação – REASE. 2021.

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