Por: Helena Zoneti Rodrigues
Angariando 5 indicações ao Oscar de 2024 como melhor filme, melhor filme internacional, direção, roteiro adaptado e melhor som, o longa dirigido por Jonathan Glazer, embasado no livro de mesmo nome, é, sem dúvidas, uma imersão ao ponto frágil do humano dilacerado pela hegemonia ideológica instrumentalizante, no caso, a ideologia nazista. O longa mostra a construção e permanência do espaço vital (Lebensraum) nazi-fascista sustentado através da morte e servidão desumana de judeus. Partindo do roteiro, a direção de Jonathan Glazer utiliza este ponto frágil comentado acima engenhosamente, ao ressaltar o espaço estético da casa e jardim de uma família nazista que vive ao lado do campo de concentração de Auschwitz.
O cotidiano familiar acaba sendo o âmago do filme, no qual observamos a filmagem de maneira estática pelo ângulo dos vários membros desta família hitlerista, sobretudo pela ótica da matriarca e “Rainha de Auschwitz”, Hedwig Höss, atuação esmerada de Sandra Hüller (Anatomia de uma queda, 2023) e de seu marido e comandante do campo de concentração de Auschwitz, Rudolf Höss, interpretado pelo ator Christian Friedel. A atuação destes papéis foge da estereotipação e consegue alcançar um trabalho realista, “cru” do comportamento nazista, a ponto de que não é preciso que o espectador veja os símbolos da ideologia nazi-alemã para saber do que se trata a crueldade velada, inserida no “cotidiano banal” da família alemã, absurdo ao nossos olhos e ouvidos.
Agregando a todo este espaço, em que da janela da casa é possível ver e principalmente ouvir o extermínio em proporções colossais, cuja digestão se prolonga ao espectador para além do desfecho do filme, Glazer faz questão de construir o local marcando esta dualidade do desumano inserido trivialmente no dia-a-dia dos personagens. O jardim e decorações bem cuidadas, aposentos ordenados, organizados em tons neutros e brancos ignora o cinza muro sanguinolento de Auschwitz-Birkenau, naturalização de crueldades cometidas. A construção consciente por parte da direção dessa tensão dos ambientes em inúmeras cenas que compõem o longa cumpre sua intenção: é impossível ao espectador desdenhar do genocídio enquanto os protagonistas nazistas simulam dessaber das atrocidades, pois, para eles, são “apenas” critérios, metas e logísticas sendo cumpridas dentro do prazo infinito de 24h seguidas de mortes, métodos de colonização, cujo comandante recebe gratificações e medalhas.
A sensação de terror, suspense e ansiedade criada pela barbaridade zelada cria uma sensação fantasmagórica na tela: a presença do “estranho” na rotina, da morte no dia-a-dia em meio à recusa por parte da família hitlerista é insuportável ao audiente, chega aos ouvidos com a forte marcação temporal dos sons de gritos e do crematório de judeus -que se tornam ao longo de 1h45min presença ontológica, um “ente”-, naturalizados pelos personagens da casa, que não vêem sua responsabilidade nos abates. Provocação sinestésica em que captamos pelos sons e imagens a construção, ora sutil, ora óbvia, dos “Eichmanns” obedientes que transformam mortes em normas.