CRÍTICA | Ferrari (2023), Michael Mann

Por Guilherme Otávio Barroso Reis

Graduando em Imagem e Som, UFSCar

O que destaca, de primeira, o trabalho de Michael Mann com essa história é a presença de uma atmosfera emocionalmente sombria e estimulante. São criadas diversas facetas do homem biografado, transitando entre uma crise doméstica e uma crise empresarial que constantemente projetam uma sombra da morte sobre ele. 

Do lado pessoal, existe a traição e o conflito matrimonial que se potencializa pela recente morte do filho Dino (situação que é demonstrada magistralmente nas cenas de visitas ao túmulo do filho). Entretanto, do lado profissional, as vendas não estão com bons resultados (em parte por causa de danos sofridos na Segunda Guerra que ainda dificultam o crescimento da empresa, reforçando um tom mundial pessimista característico do Pós-Guerra, principalmente na Itália) o que gera uma urgência de vitória da equipe em uma grande competição.

O mundo da corrida faz questão de encontrar sua porção de fatalidade na trama. Pelo fato de Enzo já ter sido um piloto, ele compartilha da sensação dos seus pilotos de enfrentarem um desafio tão perigoso (a corrida como trabalho em si) que pode lhes custar a vida. Um gosto pelo ofício colocado de forma quase obsessiva na história da marca.

 A cena da igreja no início do filme – em que os sermões do padre exaltam o mecanismo automobilístico, o metal e a gasolina – estabelece desde o começo o significado daquele mundo dos carros para os homens. 

 Na forma cinematográfica, os dois mundos (pessoal e profissional) são retratados de maneira diferente. Os momentos de corrida têm um aspecto visual mais estimulante, através de cortes secos para ações dentro do cockpit, panorâmicas rápidas, travellings com a câmera trêmula e até o uso de drones. Tudo isso fortifica a potência dos carros da Ferrari, assim como enfatiza o risco de estar pilotando um daqueles. Um risco que não é apenas sugerido, mas é explorado brutalmente através das cenas de acidente, nas quais não são utilizados somente efeitos práticos, a fim de alcançar situações mais absurdas e visualmente alucinantes. No caso da última, me parece até que a falta de realismo (não só da computação gráfica abaixo da média, mas o inesperado movimento do veículo voar e bater no poste) agrega ao aspecto agressivo daquele momento.

 Além disso, nessas sequências, o diretor opta por quebrar convenções de montagem e decupagem a partir de close-ups inesperados nos corredores ou no próprio Enzo Ferrari, que, por vezes, fica com o rosto no primeiro plano e a ação acontece em segundo. Uma espécie de desorientação estilizada, que também agrega a sensação de adrenalina do filme.

 O universo da família possui uma decupagem mais formal, mas não menos impactante nos momentos de tensão. A câmera prefere se manter em planos médios durante conversas (muito utilizado o Over the Shoulder), mas, quando a atuação ganha mais força, ela pode ir para um close-up ou então manter-se nessa distância (não necessariamente fixa com tripé) e enquadrar a figura no centro, dando espaço para os gestos.

 Um aspecto interessante de reparar é como a câmera se aproxima do protagonista em situações variadas, nos entregando um ponto de vista mais íntimo. A interpretação séria e muito sútil de Adam Driver, nessas ocasiões aliada a essa proximidade, me passam a sensação de uma figura imponente, mas também vulnerável.

 Em um dos momentos em que Enzo está na mesa com os corredores, ele faz uma piada, todos estão felizes e a câmera fica na mão, livre para filmar as pessoas no ambiente. Por outro lado, quando Enzo quer ter uma conversa séria com os competidores sobre o espírito vitorioso, a câmera, na mesma posição e altura, fica fixa e não faz nenhum movimento a não ser um sútil e contínuo zoom em direção ao rosto do protagonista, que adiciona tensão à fala. Esse exemplo demonstra a direção minuciosa de Mann em Ferrari (2024), uma que busca ser precisa no efeito das situações. 

 Num geral, esse é um filme muito expressivo, que sustenta um impacto emocional não só na ação genuína, mas também no desenvolvimento dos seus personagens. Propõe-se a abordar as intimidades do homem e a crise que a empresa percorreu de forma dinâmica e direta, construindo um drama eficiente, a fim de esculpir a figura trágica e fúnebre de Enzo Ferrari.

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