A origem (Christopher Nolan, 2010)

Inteligente, complexo e intrigante, A origem mistura sonhos e realidade para criar um ambicioso labirinto de idéias e sentimentos. Mais do que um ótimo thriller de ação e suspense o novo filme de Christopher Nolan é um drama de redenção que enfoca a aceitação da realidade e da morte.

Cena do filme "A Origem".

Assim, entramos no filme, levados pelas ondas do mar, como num sonho sem saber como chegamos lá. É preciso avisar desde logo que os detalhes da história são mais apreciados quando sabemos pouco sobre a trama, portanto, siga o texto apenas se já assistiu ao filme. De repente, somos apresentados a um universo com elementos de ficção científica, no qual a extração de informações sigilosas da mente das pessoas, através dos sonhos, é possível. Este é justamente o trabalho ilegal de Dom Cobb, interpretado intensamente por Leonardo DiCaprio, e de seu parceiro Arthur, o eficiente Joseph Gordon-Levitt, que têm agora o desafio de inserir, dai o título original – Inception -, uma idéia na mente de Robert Fisher (Cillian Murphy); ambos são contratados por seu inescrupuloso concorrente, Saito, o excelente Ken Watanabe, visando acabar com seu império. Cobb aceita o trabalho já que este lhe promete a chance de retornar aos Estados Unidos, país para o qual estava impedido de voltar, para viver com seus filhos. No intuito de viabilizar esta difícil empreitada, ele vai atrás de um forjador de aparências, Eames (Tom Hardy); de um especialista em sedativos, Yusulf (Dileep Rao) e de uma arquiteta de sonhos, Ariadne (Ellen Page). No caminho irá encontrar ainda sua esposa, Mal (Marion Cotilard), que não medirá esforços para trazê-lo de volta ao que ela acredita ser a realidade. Afinal, aceitar a realidade e sua própria natureza são propostas centrais do filme, para além das várias interpretações possíveis, tornando-o dramaticamente complexo e interessante por lidar com as maravilhas e as armadilhas dos sonhos e do inconsciente.

Cena do filme "A Origem".

Orquestrada engenhosamente por Nolan, a aparente trama, de assalto, é apenas a primeira camada da história que se desenvolverá por vários níveis de sonho, já que o protagonista tem que plantar a mais simples idéia, profundamente no inconsciente do sonhador, para que ela se desenvolva sozinha através da catarse da própria na pessoa. Conhecido por sua filmografia admirável, com destaque para Amnésia (2001), O Grande Truque (2006) e Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008), filmes que também possuem seus próprios jogos narrativos, o diretor britânico nos fornece as pistas para o seu enigma durante toda a projeção, tornando o processo de descoberta extremamente saboroso, mas também espalha os indícios para outras interpretações. Importante notar é que são justamente estes indícios que se tornam a essência das dúvidas de Cobb  e que ainda compõem, com maestria, uma simetria entre as indagações do personagem e as nossas quanto à realidade. Surpreendendo os mais desconfiados e atentos espectadores, dessa forma, Nolan consegue criar uma trama labirinto que nos deixa desorientados somente até o momento que entendemos o funcionamento daquele mundo. O diretor evita ser didático, embora exagere nos diálogos explicativos que esclarecem as regras que imperam nos sonhos e deixe de explorar um universo onírico mais fantasioso e imagético. Ainda assim, descobrimos através dos olhos da arquiteta, pela fotografia inspirada de Wally Pfister, as possibilidades excepcionais que os sonhos podem criar: alterações de gravidade, a cidade de Paris dobrando sobre si, a construção e reconstrução de todo um universo próprio, criando lindas imagens das edificações arquitetadas nos sonhos; e também os perigos que as lembranças e os traumas podem causar, como, por exemplo, as interferências constantes e perturbadoras de sua esposa. A descoberta de um invasor nos sonhos pelo inconsciente ainda permite as mais belas cenas do filme quando a realidade começa a desmoronar ou a se despedaçar diante dos personagens.

Cena do filme "A Origem".

Dessa forma, a arquiteta é responsável pelo design do sonho e pelos labirintos que protegem a equipe das perigosas projeções de defesa da mente, enquanto a limitação dos ambientes dos sonhos no filme encontra justificativa nas próprias intenções dos personagens que buscam um ambiente favorável para a extração. Yusulf, por sua vez, garante a estabilidade com a sedação apropriada, já que as oscilações do mundo real refletem diretamente nos sonhos. Neste ponto o filme se destaca por compor alterações de gravidade, chuvas, trovões e terremotos, como resultado das alterações reais do ambiente externo, sofridas pelos integrantes da equipe de maneira a enriquecer a narrativa visual do filme, fato este que mais o aproxima de uma estética fantástica. A Origem se destaca também como um excelente filme de ação, apresentando seqüências viscerais muito bem elaboradas, como a fuga em Mombaça ou então a luta no corredor sem gravidade que transborda inventividade, e, ainda, a tensa perseguição de carros é construída até seu belíssimo ápice na ponte com a queda em câmera lenta da van, compõem um clima alucinante que é ressaltado pela montagem excepcional de Lee Smith. Além disso, a composição da seqüência final e sua edição, por exemplo, com várias ações paralelas e perfeitamente compreensíveis, demonstram o trabalho primoroso, do roteiro e da direção de Nolan, para criar uma experiência narrativa interessante e diferente, que agregados às interpretações precisas e à trilha sonora extraordinária de Hans Zimmer dão ao filme a cadência e o equilíbrio ideal para a trama. Percebam que pontualmente a trilha e os efeitos sonoros marcam os momentos importantes, como a música de Edith Piaf e os “kicks” que trazem os personagens de volta a realidade.

Cena do filme "A Origem".

Nesta intricada trama, ao compartilharem o mesmo sonho com a vítima, os extratores enfrentam os obstáculos e as defesas do inconsciente. Assim, a cada camada, a percepção do sonhador fica mais apurada e, por isso,  aumentam as dificuldades e os conflitos, mas no sonho a mente apresenta uma resposta mais rápida enquanto o tempo é mais lento. Toda essa “carpintaria” da história permitiu a Nolan explorar com consciência o gênero de ação dentro do circuito de cinema mais comercial, sem deixar por isso de construir uma história inteligente e instigante. Na camada mais interna (limbo) a dificuldade de saber o que é real e o que não é se torna tão grande que a mente pode se perder por lá e nunca mais voltar. Cobb viveu nesse mundo com sua esposa por demasiado tempo até passar sua maior tragédia pessoal. Acreditando ser responsável  por ela e tentando reencontrar seus filhos acaba se envolvendo em uma busca por redenção, esta, exatamente, é a chave para a história.  Sem revelar mais, pode se dizer que, acima de tudo, a obra é um intrigante e ambicioso tratado sobre o poder inspirador, assim como cancerígeno, de uma idéia. Ainda que se aproveite do universo dos sonhos, aqui calcado fortemente na realidade extraída da mente de seus personagens, e dos clássicos roubos corporativos, o filme se estabelece, de fato, como o drama interno de Cobb relutante em aceitar uma grande perda, a de sua esposa Mal, e da separação de seus filhos. Na tentativa de vencer a culpa e revê-los, Cobb parte para uma jornada desesperada lutando contra seu próprio inconsciente, ao mesmo tempo em que tenta enclausurar as lembranças de sua família dentro de sua mente e aceitar a realidade.

Diante desta escolha, entre aceitar a realidade ou o sonho, depois tanto tempo no limbo, Cobb fica hesitante diante de sua esposa.  Brilhantemente, a conclusão de Fisher, ao reencontrar seu pai, é intrínseca a de Cobb, pois ambos chegam ao fim tendo a chance de aceitar ser quem eles realmente são, deixando para trás a culpa e aceitando a morte – saem enfim do próprio labirinto. Apesar disso, o final do filme nos coloca a dúvida sobre o que estamos vendo, quase como um aviso para que desconfiemos – sempre – tanto da realidade quanto do sonho. Não há uma única resposta, existem apenas idéias nas quais, o protagonista e nós, acreditamos.

Marcelo Félix Moraes é graduado em Ciências Sociais pela Unicamp e graduando em Imagem e Som pela Universidade de São Carlos (UFSCar).

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