Alegoria e Arte em Terra em Transe e A Idade da Terra

Introdução

A década de 1960 foi marcada por intensa atividade cultural e crítica do panorama social a político no qual a sociedade global estava se estruturando. Intensas movimentações de intelectuais de esquerda, que defendiam a implantação de um regime político, social e econômico baseado nas diretrizes do socialismo soviético, marcaram todas as esferas da comunicação e entre elas o Cinema.

É no contexto de movimentos como a nouvelle vague francesa e o cinema independente norte-americano que surge no Brasil, o Cinema Novo. Tendo como base os trabalhos realizados por todo o mundo no que diz respeito à utilização do aparelho cinematográfico com fins de difusão de idéias e estilos que rompessem com a hegemonia do cinema hollywoodiano, os cinema novistas iniciaram a produção de filmes que priorizassem a participação do espectador a fim de que esse assumisse uma postura crítica em relação ao conteúdo abordado nos filmes, rejeitando a idéia de massificação do produto audiovisual.

Dentre os cineastas do movimento, destaca-se a figura de Glauber Rocha, teórico e realizador que em suas obras priorizou a discussão política do país e a crítica à fomentação da sociedade de consumo nos moldes capitalistas. Duas de suas obras de destaque Terra em Transe (1967) e A Idade da Terra (1980) se baseiam na construção do discurso alegórico para debater tais questões. Tendo em vista os estudos de Ismail Xavier sobre alegoria e cinema, nota-se uma diferenciação na estruturação dessas alegorias nos dois filmes, principalmente no que diz respeito à escolha do realizador em se apropriar ou não da utilização de cores para a composição imagética das narrativas.

Terra em Transe (1967)

Tendo como contexto histórico a frustração da esquerda revolucionária após a implantação da ditadura militar no Brasil, em 1964, a obra Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, relata, a partir de uma representação alegórica, a tomada do poder político pelo totalitário Porfírio Diaz e o conseqüente sentimento de impotência da esquerda intelectual resultante desse processo refletida no poeta Paulo Martins e na jornalista Sara, além de revelar as estruturas nas quais as relações políticas estão fundadas, baseadas em acordos com instituições privadas e promessas de campanhas dificilmente cumpridas.

Em “A alegoria histórica”, Ismail Xavier delineia a noção de alegoria como “a concepção de que um enunciado ou uma imagem aponta para um significado oculto e disfarçado, além do conteúdo aparente” (p 345). Dessa forma, nota-se a necessidade de inserção do espectador na obra para que haja a identificação dos processos alegóricos. Em Terra em Transe o convite à interpretação alegórica constrói-se a partir de estratégias de montagem e principalmente da caracterização dos personagens a partir de sua posição política e social (no que diz respeito a diegése do filme).

O enredo da obra se constrói a partir de um flashback de Paulo, poeta que representa a classe dos intelectuais engajados politicamente, no momento da subida ao poder por Porfírio Diaz, informação que o espectador terá apenas ao final do filme. O flashback do personagem compõe-se até certa medida de forma cronológica. Porém apesar de apresentar os fatos de acordo com uma lógica causal, a alternação de dois movimentos – o interno, relacionado ao “fluxo de consciência” do poeta e o externo, relacionado com o espaço odológico (espaço da ação da narrativa) do filme, os acontecimentos – se constitui em um “monólogo interior” de Paulo, que atua não só como personagem, mas também como comentarista dos fatos narrados. A aparente organização dos fatos não comum ao “fluxo de consciência” do movimento interno é operada por uma instância externa que revela e desmascara o poeta em sua luta política, característica da “subjetiva indireta livre” discutida por Pasolini em “Cinema de Poesia”, e retomada por Ismail Xavier em “Terra em Transe: alegoria e agonia”. Esse processo caracteriza-se pela “contaminação” do relato do personagem pela visão do autor do filme, ocasionando a identificação de pontos de vista e até mesmo de estilo entre eles.

Terra em Transe (1967)
"Terra em Transe" (1967)

Outra questão importante na análise da construção narrativa da história está relacionada com a recusa de uma estrutura teleológica, fundada da concepção da história como um desenrolar contínuo de acontecimentos ligados por uma relação de causalidade. Apesar de possuir uma disposição que se assemelhe a esse tipo de estrutura, a narrativa de Rocha aproxima-se da concepção de Walter Benjamin, segundo a qual a história não é uma cadeia lógica de eventos construtivos que visam à autoconsciência e a totalização, mas sim “um campo de sofrimentos e conflitos permanentes”[1], que tem no tempo um agente de destruição e corrosão. A obra de Rocha, por ter como um dos seus elementos fundamentais a construção alegórica, e, portanto a existência de lacunas, de estruturas narrativas que tendem a se romper, estaria próxima dessa noção de narrativa histórica, pois a destruição torna-se motivadora dessas aberturas do texto fílmico.

A montagem de Terra em Transe, além de denunciar a existência do aparelho cinematográfico e consentir a formação de lacunas no texto que permitem a interpretação alegórica, também revelam a dimensão onírica dos fatos narrados por Paulo. Na seqüência final do filme, em que o poeta agoniza enquanto Diaz torna-se comandante político de Eldorado, ocorre a invasão de visões do poeta sobre a coroação do ditador, e a intervenção do povo que não permitiria sua subida ao poder, imagens claramente subjetivas, haja visto aparecerem como produto de uma “memória” do poeta no momento de sua morte. A celebração da primeira missa na costa de Eldorado, com a presença de personagens como o conquistador, o jesuíta e o índio inauguram a presença dessa característica na obra. A montagem vertical entre som e imagem, caracterizada por Ismail Xavier, também em “Terra em Transe: alegoria e agonia” reafirma o potencial onírico da obra, alternando sinfonias que atuam como comentários às cenas, discursos em voz off, sobreposição de discursos, etc.

A idéia de nação como uma entidade coletiva que se baseia na existência de grupos heterogêneos e criadora de um sentimento de totalização é produto da modernidade, da industrialização e da cultura de mercado. A concepção de Eldorado como uma alegoria do Brasil no contexto de implantação de um regime totalitário remete à noção de alegoria nacional, pois o “país tropical” representado por Rocha em sua obra remete não só a situação política, mas também a organização social e econômica brasileira (apesar de não ser fundada em um personagem, característica mais freqüente na construção de alegorias).

A Idade da Terra (1980)

A exploração comercial do Brasil pelo capital estrangeiro e a denúncia da opressão do povo desenvolvido pela sociedade de consumo são as questões motivadoras de A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha.

Através da subversão das convenções narrativas e imagéticas, o cineasta compõe um quadro de um país do Terceiro Mundo destinado a sucumbir ao poder da iniciativa privada estrangeira não apenas no que diz respeito à economia, mas também às características culturais e sociais. O empresário John Brahms é a personificação do domínio estrangeiro (e do diabo) em uma América Latina vista com exotismo e nenhuma seriedade. Em oposição, há a representação ritualística dos Cristos redentores dessa nação: o Cristo-Negro, o Cristo-Pescador, o Cristo Conquistador e o Cristo Guerreiro-Ogum de Lampião, “os quatro cavaleiros do Apocalipse que ressuscitam o Cristo no Terceiro Mundo”[2] e que através dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João recontam a história do mito religioso.

A Idade da Terra (1980)
"A Idade da Terra" (1980)

A presença do barroco nas composições imagéticas é clara, e muitos dos enquadramentos remetem a um pictorialismo já encontrado em um dos seus filmes anteriores, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968). A existência dessas imagens produz um afastamento do espectador em relação ao filme, uma ausência de identificação com os personagens apresentados, e apesar de Rocha priorizar a imersão do espectador na obra não há a criação de um enredo com apresentação das situações e dos personagens envolvidos, os quais não possuem nenhuma profundidade psicológica ou contextualização no espaço diegético. O fato da maior parte dos personagens não possuir um nome próprio, que o individualize, é uma característica da construção metafórica que os envolve, no sentido de representarem não um ser isolado, mas uma idéia (com exceção do empresário, porém sua nomeação reforça a personificação do estrangeiro, e não o individualiza).

A declamação dos textos bíblicos e até mesmo os comentários de Rocha durante o filme, seja na direção dos atores ou na exposição de pensamentos políticos a respeito da opressão dos povos terceiro-mundistas reforça a negação de uma narrativa teleológica (assim como em Terra em Transe, porém em uma medida mais extrema, já que se observa a existência de um conflito não no nível diegético, mas em relação ao exterior da obra, a sua contextualização histórica).

Em “A alegoria histórica”, Ismail Xavier enquadra a personificação em uma dimensão alegórica que, ao contrário da noção dada anteriormente referenciando Terra em Transe, não se caracteriza pela ausência de continuidade no discurso, mas apenas a idéia de que uma imagem ou um discurso figuram um conceito, uma concepção ou uma moral. Em A Idade da Terra a personificação do estrangeiro é reforçada não apenas pela linguagem e pelo nome de Bramhs, mas também por sua caracterização enquanto figura. Os cabelos louros, as roupas leves, com ares tropicais, enquadram o empresário na classe dos “gringos” que vem para a América Latina (no caso mais específico, para o Brasil) a procura não apenas de mão de obra barata e exploração dos recursos naturais, mas também de diversão, de vida fácil (a primeira vez que o personagem aparece, pede ao acompanhante que traga prostitutas, e tenta corromper um senador).

A representação do Brasil, em contraposição a de Eldorado (alegoria nacional do Brasil) não é emblemática de um discurso populista ou subdesenvolvido. Em A Idade da Terra as cores se sobressaem na construção de uma visão excêntrica e exótica da paisagem natural, na qual a miséria deixa de ser econômica e passa a ser moral, com um desfile kitsch de personagens corrompidos. Dentre as seqüências que exploram essa visão, destaca-se a que envolve o personagem de Brahms, sua mulher e seu filho, na qual a grande quantidade de cores de luz e a composição de um cenário que exacerba luxúria e a idealização de poder reforçam em grande medida a caracterização desses personagens como parte desse universo deturpado moralmente.

Além de personificar o domínio do capital estrangeiro no país, Brahms relaciona-se com a figura dos “Cavaleiros do Apocalipse”, na medida em que se revela ser a maior tentação dos Cristos. Após a seqüência na qual o Cristo-Pescador, depois de abençoado por Cristo Guerreiro-Ogum de Lampião, vai para o deserto e encontra a figura do conquistador (que ao contrário do conquistador de Terra em Transe tem na composição de cores sua grande força e não na postura altiva), Rocha ilustra o diabo não apenas no conquistador português, mas sim no estrangeiro neo-colonialista a tentação dos países subdesenvolvidos. Compondo um quadro bizarro, em que coexistem uma televisão (meio de comunicação de massa e principal difusor das ideologias da sociedade de consumo), um globo, uma árvore de natal, uma caveira que recita passagens bíblicas, o autor incide uma luz totalmente avermelhada e coloca em cena o personagem de Brahms, que ateia fogo no globo (mais particularmente na representação, as América Latina), sinal do poder do capital estrangeiro.

Apesar de auxiliarem na composição do exotismo decadente do país, a composição de cena com contraste forte de cores e da iluminação direta dos personagens por meio da utilização de rebatedores de luz (de forma que essa passa a atuar em certos momentos como se refletida por água, brilhante e móvel) também promove a reafirmação dos processos ritualísticos, de modo a acentuar sua importância no contexto geral da narrativa, além de reforçar a composição do pictorialismo citado anteriormente.

A relação de A Idade da Terra com o “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade é explicitada em uma das primeiras seqüências do filme, na qual a dança com as Amazonas é composta em um cenário lúdico, onírico, composto por folhas, expoente da representação do Brasil e de suas características culturais naturais.

Conclusão

O movimento do Cinema Novo permitiu a realização de filmes que de alguma forma tiveram como temática a contestação da política nacional e as conseqüências de sua estruturação para a nação. A partir da construção alegórica muitos desses filmes promoveram a tentativa de uma inserção do espectador e sua posterior conscientização dos problemas que envolviam a nação.

A produção de filmes em preto e branco, que priorizavam a formação das alegorias a partir da montagem, do monólogo interior, de estruturas narrativas que promovessem rupturas no texto, do discurso verborrágico, consolidou-se na “estética da fome” que não se limitou a temáticas rurais, mas também urbanas. Terra em Transe sintetiza os traços estilísticos dessa produção, que esteticiza uma fome de mobilização nacional frente ao golpe de Estado de 1964 com a conseqüente implantação da ditadura militar no país.

Em contrapartida, A Idade da Terra (já enquadrada no fim do movimento cinema novista) utiliza-se de uma construção imagética baseada na composição de cores e cenários para comentar a invasão do capital estrangeiro promovida ainda pelo governo totalitário, além do convite a imersão em um universo de degradação moral conseqüente dessa invasão.

Dessa forma, nota-se que a construção alegórica pode ser baseada em formas diferentes de discurso, utilizando-se ou não do recurso da construção dos cenários e composição de quadros a partir da relação que as cores podem exercer na caracterização da cena. Tanto em Terra em Transe como em A Idade da Terra, têm-se o convite ao preenchimento de significados preexistentes, porém ocultos pelo discurso de forma a incitar no espectador uma reflexão a respeito dos temas abordados que, no caso específico de Glauber Rocha e dessas duas obras, é o caos político e econômico no qual o país se insere no período do governo militar.

Bibliografia

XAVIER, Ismail. Terra em Transe: alegoria e agonia. In: Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.

XAVIER, Ismail. A alegoria histórica. In: Teoria Contemporânea do Cinema, vol 1. Fernão Pessoa Ramos, organizador. São Paulo: Editora Senac, 2005.

< http://www.tempoglauber.com.br/> acessado em 23/06/2009, ás 14h34.

Filmografia

Terra em Transe, 1967. Glauber Rocha

A Idade da Terra, 1980. Glauber Rocha.
———————————-

Maria Cristina Couto Melo é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


[1] Xavier, Ismail. A alegoria histórica. In: Teoria Contemporânea do cinema. p.357

[2] Rocha, Glauber. Extraído de www.tempoglauber.com.br

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem um comentário

  1. Author Image
    Emilia

    Parabéns jovens como você faz à diferença em nosso País.Beijos Emilia

Deixe uma resposta