Por: João Lucas Casanova
Redação RUA
A questão com os americanos é que eles estão sempre olhando para trás. Não um passado uniforme e estático, mas sim particular e inexato. Figura aí a grande desavença e charme desse costume típico e irrepreensível dos americanos; é preciso descobrir ao que se deseja retornar. Há, contudo, quem atribua essa atitude de nostalgismo à condição de um império em crise, que recorre ao passado por estar sucumbindo ante a impossibilidade de um futuro ainda glorioso. Bobagem, até porque a força aglutinadora de seguir em frente encontra mesmo seu vigor no olhar para trás, um olhar alavancado pela disparidade do que esse “atrás” significa. Mas afinal, quais foram os anos dourados da América? Penso que a incidência do questionamento é mais significativa do que qualquer resposta. É importante visualizar, no entanto, como essa disparidade no olhar do tempo se metamorfoseia na própria estrutura viva da América.
Para o “MAGA” (acrônimo de Make America Great Again, slogan da campanha de Reagan em 1980 e revivido por Trump), a boa América é aquela em que o poder permanece nas velhas mãos brancas, protestantes e capitalistas que deram forma ao país. Não que em algum momento o poder tenha se esvaído de tais mãos, mas, você sabe, a América cresceu para além do puritanismo de seus primeiros dias e, em algum ponto de sua história, pareceu disposta a se abrir para uma contracultura — que, se não mudava realmente as coisas, ao menos se contrapunha às instituições estabelecidas de poder. Na década de 80, entretanto, muitos anos depois do sangue fervente daqueles dias contestadores e em plena era Reagan, a geração que protagonizou os sixties já havia perdido a maior parte de sua animosidade. Tinham se tornado conformistas, em sua maioria. A boa vontade de mudar o mundo datou-se e se confundiu no ideário do país com as drogas e os estereótipos hippies. Ainda assim, para algumas dessas pessoas, o retorno a grande fase do país não ocorreria pelos mesmos meios batidos de sustentação do american way of life defendidos por Reagan. O retorno à boa América se daria pelo retorno do “faça amor, não guerra” com o qual cresceram e construíram sua visão de país. É mesmo uma tarefa difícil descobrir ao que exatamente os americanos desejam voltar.
Nesse cenário, Campo dos Sonhos (1989), filme de Phil Alden Robinson baseado no livro Shoeless Joe (1982) de W. P. Kinsella, encara o “se voltar para trás” com plenos tons de consciência. Um homem de meia-idade, Ray Kinsella (interpretado por um Kevin Costner no ápice de seu brilho), se muda para uma fazenda no Iowa com a esposa e a filha. A calmaria do núcleo familiar é interrompida, então, por uma voz que chega a Ray no milharal da propriedade e muda tudo: “If you build it, they will come”. Se ele construir o que, quem virá? Os personagens se perguntam a mesma coisa. A resposta? Um campo de beisebol, construído em meio ao milharal e capaz de trazer um lendário jogador, o Joe Descalço Jackson, de volta dos mortos para jogar o esporte que tanto amava. A velha nostalgia irrompendo de vez no peito da família americana! Mas isto tudo é absurdo demais: abrir mão de uma grande quantidade de terra fértil para construir um campo capaz de abrigar fantasmas de lendas do esporte? Poucas vezes o embate entre sonho americano e propriedade adquiriu efeitos tão ludicamente literais na ficção.
Parte fundamental do longa, o beisebol é o esporte americano por excelência. Pode parecer curioso hoje — num cenário em que o futebol americano é líder absoluto de audiência e até o basquete, limitado durante muito tempo a um público mais restrito, tomou para si um espaço significativo —, porém, não se deixem enganar, o beisebol continua sendo a América. Ou ao menos um vislumbre do que esse país tem de maior (esse ponto é de intersecção até entre as visões dissidentes do que foram os tais anos deslumbrantes). Uma lembrança do espírito esportivo e de companheirismo sobre o qual aquela terra foi cunhada (em suas intenções!), a expressão mais significativa da cultura dos subúrbios. E o beisebol, tal qual o país, mudou de maneira drástica com o passar dos anos. Quando Shoeless Joe aparece pela primeira vez no campo construído por Kinsella, por exemplo, ele se surpreende com os imensos refletores iluminando o gramado. Ray afirma que todos os estádios possuem essa iluminação agora, já que os proprietários dos times descobriram que jogos à noite permitem mais público e, com isso, mais ingressos e dinheiro entrando. “É mais difícil de ver a bola”. Sim, o esporte também havia mudado. Como tudo na América, as coisas agora respondem acima de tudo a uma lógica mercadológica. Mas não era desde sempre assim? Não é o acúmulo de posse a base da existência americana? Tomemos como exemplo a história real do próprio Shoeless Joe, jogador lendário dos White Sox banido por aceitar dinheiro em troca da derrota na World Series de 1919. A paixão pelo jogo, nesse caso, pareceu encontrar seu limite quando conflitada pela força imensurável das cédulas…
E ele aceitou, é verdade. Embora nunca tivessem conseguido provar que ele atuou de maneira proposital para prejudicar o time naquela ocasião, o dinheiro foi recebido e assumido por ele. Como explicar, então, os recordes positivos batidos por Shoeless na série? Esse era o motivo do impasse na relação de Ray Kinsella com seu pai, John, já falecido. As visões antagônicas da América sobrepostas nos ecos geracionais. Ray, um cara cuja formação se deu na contestação dos valores estagnados do país, nunca entendeu seu pai, um homem formado em meio a consagração desse ideal conservador americano. Construir o campo para que o ídolo de seu pai retornasse era uma concessão, um aceno a um tempo que não era seu e que agora se mostrava disposto a conviver com, ou até mesmo entender. Isso, porém, não bastava, como de forma geral o saudosismo nunca basta. Não se pode retornar de verdade a um tempo que não o seu, e isso a duras penas a América está aprendendo a lidar com. A voz que então clamara pela loucura da construção do campo voltou para pedir mais.
A geração dos sixties teve muitos ídolos. Mas talvez nenhum tenha sido tão primordial e, ao mesmo tempo, apático ao próprio imbróglio cultural que se formava quanto J. D. Salinger, autor de O Apanhador no Campo de Centeio (1951). Seu livro deu forma e rosto a toda uma juventude inconformada com a sociedade “fajuta” da época, e viria depois a servir como bode expiatório pelos excessos dessa geração que cresceu o lendo. Talvez Salinger nunca tenha se perdoado pelo que ajudou a criar (como Campo dos Sonhos dá a entender) ou apenas se cansou de estar sob holofotes e, por isso, passou décadas numa vida recatada, sem publicar novos textos ou aparecer em entrevistas; fato que serviu para aumentar a mítica em torno de sua persona. No longa de Robinson, Salinger aparece sob o nome de Terence Mann, autor que é patrono da geração de Ray e seguiu o mesmo caminho offstage da figura real. E é a esse escritor tido como revolucionário que a voz saudosista escutada por Kinsella manda procurar. “Ease his pain”. O que um autor como Mann (Salinger) poderia ter a ver com o beisebol? Numa pesquisa em arquivos, Ray descobre que Terence era um fã assíduo do esporte (o que aparentemente possui um fundo de realidade), e que seu sonho era ter tido a chance de visitar o estádio dos Dodgers quando eles ainda estavam no Brooklyn, antes da franquia se mudar para Los Angeles. Aparentemente, todos (os transgressores incluso!) têm um retrato de país para o qual voltar, um momento em que, ao menos na lembrança, a América era grande como poucas vezes voltaria a ser.
Esmiuçada parte significativa da trama, posso dizer que entendo quem menospreze o caráter conciliador de Campo dos Sonhos, embora discorde. É essencialmente romântico, destoado da realidade (como a mágica sempre é), e pode até transparecer um reducionismo que não convém, como se as ambiguidades de uma nação fossem meramente pautadas no desentendimento. Acho, porém, que é mais do que isso. Há de se valorizar o charme quase inocente de um filme como esse, que, lançado à sombra da era Reagan, parece disposto a discutir as múltiplas faces do saudosismo americano por sobre uma ótica interna; é, afinal, na família em que tudo nasce e onde os dilemas de um país reverberam no mais alto grau de importância. Se o longa de Robinson não trabalha com caracterizações que fujam dos arquétipos mais ou menos pré-definidos de geração, tampouco os reduz a isso. Mesmo atrelado a um sentido mais clássico de narrativa, ele não deixa de brincar com o aspecto figurativo da coisa toda: o campo onde os fantasmas do passado residem é, no fundo, um esforço de imaginação do espectador diegético e de nós, externos àquele mundo. É preciso desabilitar a descrença, o apego à realidade inflexível dos burocratas, e transpor em seu lugar uma fé num tempo passado que é não fim em si, mas ponte para algum lugar.
Essencialmente, Campo dos Sonhos é um exercício de ressignificação da história, cultura e identidade americana, menos atrelado às suas psiques específicas e mais interessado num sentimento maior de reconhecimento desses elementos da nação, expostos antes de tudo pela vida privada. Os jogadores que alcançaram o estrelato, bem como os que nunca chegaram a completar uma partida nas ligas majors, representam um valor único para todo um microcosmo que existe em razão das rebatidas e arremessos (realizados ou não), pessoas próximas e desconhecidas cujas trajetórias adquiriram um novo sentido por conta deles, seus erros e acertos. Se os símbolos são parte central do filme, é porque revelam um caráter ao mesmo tempo universal e particular que o concreto não é capaz de mensurar. É a família Kinsella, a relação de Ray com seu falecido pai John, com sua esposa e filha, que espelha o cenário amplo do país, bem como é o desejo dessa família de voltar a um tempo distante não pelo mero prazer de retornar, mas para olhá-lo com olhos de compreensão, que redime a dissidência de um povo irresolvido com sua própria história. Talvez o que una os tempos da América seja mesmo o fato de serem plurais, sempre se metamorfoseando, se confundindo, sendo redescobertos, adquirindo novos sentidos. É preciso, no fim, ter algo para o qual voltar, mesmo que não se saiba muito bem o quê. Esse filme, ao seu modo sentimental (e não por isso menos honesto), entende bem isso.
REFERÊNCIAS (seguindo norma ABNT):
ROBINSON, P. A. (Diretor). Campo dos Sonhos. Estados Unidos: Universal Pictures, 1989. 1 filme (113 min), sonoro, color.