As outras fronteiras do cinema francês contemporâneo

Fátima Sebastiana Gomes Lisboa é Pesquisadora independente, pós-doutoranda em Artes do espetáculo e cinema. CAPES/UPV-III-RIRRA 21. Coautora do livro História e Cinema in: http://www.alamedaeditorial.com.br/historia-e-cinemma/ e Organizadora do livro, Cinema – Lanterna Mágica da História e da Mitologia in: http://www.agecom.ufsc.br/index.php?secao=arq&id=15244

Esse texto que compartilho com a revista RUA, serviu de suporte para o projeto “A Trilogia do desterro em Abdellatif Kechiche – Três filmes para três cidades”, uma mostra da obra de Kechiche, que será realizada no mês de agosto 2011, em três cidades brasileiras. Essa Mostra tem o apoio do Cinema Falado do Museu Victor Meirelles/Florianópolis, o projeto Cinema para aprender a desaprender do departamento de educação da UFRJ e do Departamento de Letras Clássicas da UFMG.

O cinema francês contemporâneo é caracterizado, pelo crítico e historiador Michel Marie, como sendo um cinema de autores e autoras”. Um cinema que não tem vergonha de apontar na sua gênese a influencia direta da Nouvelle Vague e que “finalmente integra o passado colonial Francês de alguma forma”. Este texto é um capítulo do livro de Mauro Baptista e Fernando Mascarello, sobre o cinema mundial contemporâneo. Michel Marie apresenta um quadro do que se costuma chamar na Europa de “exceção cultural francesa”.  Esta expressão foi cunhada na França dos anos 90, após um intenso debate no meio artístico, em torno da proteção do produto audiovisual nacional.[1] No período de assinatura dos acordos do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT) em 1993, nas chamadas negociações do Uruguai Round, o meio artístico exige que o governo Francês se posicione favoravelmente sobre a exclusão de obras consideradas de valor identitário e cultural, das regras de livre comércio internacional. O meio cinematográfico francês se posiciona contra o que este chama de “tentativa de transformar a produção nacional em mercadoria ordinária nas trocas comerciais entre as nações”.[2]

É justamente no bojo dessas discussões que uma nova geração de cineastas, muitos oriundos da FEMIS (Fondation européenne pour les métiers de l’image et du son), começam a produzir seus primeiros filmes de longas metragens. Esses novos cineastas reivindicam uma “volta ao cinema de autor”, ampliando de forma generosa o olhar autoral para questões intimamente ligadas a sociedade francesa contemporânea em sua diversidade cultural e política. Nessa nova geração surgida nos anos 80-90 prenhe desta discussão sobre cultura, fomentada pelos acordos do GATT, há uma grupo que levantou a bandeira da realização de filmes voltados para a vida quotidiana dos “franceses oriundos da imigração”.  Estes filmes são hoje muitas vezes realizados por franceses oriundos da imigração.

Por um pragmatismo habitual na critica cinematográfica deu-se um rótulo para esses novos filmes chamados então de “filmes de banlieue” ou “cinema de banlieue”. Poderíamos traduzir essa denominação por “cinema sobre o subúrbio”.[3]

Desde 1995 esse cinema vem se aprimorando e alargando seu horizonte para temas sociopolíticos mais sutis como o lugar das novas gerações dos “franceses de origem estrangeira” no desenvolvimento sociocultural da França. Tomo como ponto de partida, para uma discussão sobre essa questão, a pequena filmografia de um cineasta franco tunisiano, que passou sua infância num desses bairros populares, as chamadas cités[4], porem no sul da França. A escolha deste autor é uma tentativa de deslocar para fora de Paris a problemática desse cinema “de imigrantes”, pois Abdellatif Kechiche realizou filmes onde as cités de Paris são contempladas bem como as do sul da França, que ele conheceu particularmente.

Abdelatif Kechiche trata em seus filmes, de forma realista ou alegórica, temas políticos tão delicados como os da imigração e da integração social contemporânea do passado colonial Francês. A leitura do texto de Michel Marie nas entrelinhas nos dá algumas pistas para abordarmos esse novo “cinema de autor” francês, mas preferimos as imagens e os artigos em torno de Kechiche para tratarmos essa obra como igualmente integrante da chamada “exceção cultural francesa”.

Nossa proposta atende a chamada desse número da revista RUA que é dedicado ao cinema e suas relações com a política. Nesse sentido tratamos da fronteira geopolítica ligada ao deslocamento humano em espaços globalizados.[5] Mas também de outra fronteira, ligada aos meios e formas de comunicar essa mobilidade e suas conseqüências.[6] O tema Cinema e Política nesse artigo pretende, além de refletir sobre um problema real, geográfico, histórico e cultural, também quer refletir sobre a própria criação artística, o produto audiovisual “nacional” em tempos de globalização e de crise das identidades. Acreditamos que os temas políticos tratados pelo cinema não devem necessariamente atender a opção partidária do cineasta. A história do cinema político nos mostra que muitas vezes a escolha partidária e panfletária empobrece a forma. Não há nessas palavras nenhum julgamento de valor que pretenda negar as políticas audiovisuais dos partidos, que acreditavam no cinema como suporte de propaganda ou arma revolucionária. Acredito que os filmes estão aí para serem analisados nas mais diferentes áreas de pesquisa como documentos de uma época. Porem devemos nos render a evidência de que o que sobreviveu para a história do cinema, enquanto obras originais foram justamente aquelas portadoras de um sentido estético. As outras com um caráter mais pedagógico e de fácil assimilação, se revelaram pouco a pouco como obras panfletárias que não contribuíram para a evolução técnica e estética do cinema.[7]

A opção política, no cinema que será apresentado neste texto, está presente nas sutilezas da escolha temática. Veremos como o cineasta Abdellatif Kechiche abordou um tema atual da sociedade francesa nos fazendo refletir sobre sua abrangência, afinal a imigração árabe tornou-se um “problema mundial” depois do 11 de setembro 2001. Mas os “árabes franceses” também podem ser os “brasileiros de Portugal”, os Mexicanos dos EUA, etc. A problemática da imigração é um tema político que pode ser transferido para qualquer outra sociedade com um passado imperialista marcante.

Vemos que nos filmes de Abdellatif Kechiche a política está  presente nos enquadramentos, no trabalho com os atores, nos planos, nos cortes e, sobretudo na conclusão reflexiva que a obra propõe. Percebemos então como um cineasta aceito primeiramente com reserva pela crítica francesa (apontamos que Kechiche é visto como “francês de origem estrangeira”) constrói uma obra ancorada num patrimônio multicultural. Um patrimônio que não pertence mais ao “Império Colonial Francês”, mas também não pertence ao imigrante culto, que assimilou a cultura do “Império”, porém não perdeu suas marcas “tribais” que o identifica no jogo social da vida cotidiana.

“As fronteiras no cinema e do cinema”

Voltamos ao texto de Michel Marie e observemos sua descrição sucinta do cineasta Abdellatif Kechiche:  “Vemos que o César do melhor filme em 2005, atribuído a L’Esquive, realizado por Abdellatif Kechiche não foi obra do azar, mas ao contrário foi à concretização de um processo de integração de cineastas de origem magrebina[8] no cinema francês”. [9]

No momento em que seu filme L’Esquive, foi premiado Abdellatif Kechiche teve seu nome em todos os jornais e revistas especializadas em cinema na França inclusive deu uma entrevista na popular Telerama (revista de cinema e televisão conhecida do grande público). Há uma unanimidade na crítica em apresentar a trajetória profissional do cineasta iniciante como tendo sido marcada por sua condição de filho de imigrantes. “Francês de origem estrangeira” aparece sem aspas em quase todos os artigos, porém, nas entrevistas, as respostas de Kechiche apontam uma completa afinidade com a cultura dos meios populares e regionais da França. Sem mencionar aqui seu conhecimento considerável do teatro clássico francês. Quando questionado sobre como tinha entrado em contato com o cinema ele responde o seguinte:

“Isso remonta a minha adolescência. Eu cresci numa cité em Nice, não muito longe dos estúdios da Victorine. Eu ia muito ao cinema, a cinemateca de Nice. Primeiro foram os atores que me impressionaram: Michel Simon, Jules Berry, Harry Baur, Arletty (…) Raimu nos filmes de Pagnol era pra mim um ator vindo de outro mundo.(…) Mais tarde eu aprendi a conhecer os cineastas, de Sica, Pasolini, Pialat, Sautet (…) depois do vestibular, que eu não passei, fui estudar para ser geômetra sem estar motivado. Eu já escrevia cenários, mas tinha sobretudo vontade de realizar, de uma maneira ou de outra, foi assim que eu me inscrevi no conservatório de Nice para me tornar ator.”[10]

Cartaz do filme L'Esquive (2004), de Abdellatif Kechiche

Vemos nessa resposta de Kechiche algumas dessas fronteiras apontadas acima. O cineasta se considera um francês dos meios populares, cresceu numa cité em Nice, mas suas referências ao cinema são francesas. Michel Simon, Jules Berry, Harry Baur, Arletty foram atores representantes do cinema francês dos anos 30/40/50, o clássico porem popular parisiense. Nosso “novo cineasta” coroa sua lista de possíveis influencias citando o ator Raimu, que ele considera de “outro mundo”. Raimu foi um ator de comédias regionais assinadas pelo escritor Marcel Pagnol, que por sua vez era um intelectual que retratou a cultura popular mediterrânea em seus romances e filmes.[11]

Temos então nessas palavras de Abdelatif Kechiche duas fronteiras culturais historicamente construídas na França: Paris e o Mediterrâneo. Podemos então descolar Abdellatif Kechiche do rótulo de simples “francês de origem estrangeira” e darmos um rótulo mais elegante e universal, poderíamos considerá-lo como um homem “Mediterrâneo”.

Abdellatif Kechiche.

Abdellatif Kechiche cresceu em Nice, era cinéfilo, freqüentador de cineclubes e admirador impressionado da obra de Marcel Pagnol, intelectual francês que escreveu romances e dirigiu filmes essencialmente voltados para o homem do Mediterrâneo. O cinema francês descoberto por Kechiche, em suas andanças na cinemateca de Nice, era o “clássico” de Arletti, Jules Berry, Michel Simon e Harry Baur. Porem quem para ele se mostrava como “excepcional e de outro mundo” era o cinema de Marcel Pagnol na interpretação do ator Raimu, outro homem do Mediterrâneo, pois nascera na cidade de Toulon. Alem de Marcel Pagnol, as outras referências do cinema europeu citadas por Kechiche foram: De Sica e Pasolini igualmente Mediterrâneos.

O Festival de Cinema Mediterrâneo, que acontece todos os anos em outubro na cidade de Montpellier é atualmente a vitrine desse cinema criativo e atual que redimensiona o olhar da crítica para as outras fronteiras da França. Geralmente não se esporta corretamente a produção dessa outra fronteira, historicamente mais antiga e mais aberta aos estrangeiros e a mobilidade espacial, à fronteira do Mare Nostrum (geograficamente a Bacia Mediterrânea).

Cartaz do Festival de Cinema Mediterrâneo

O Mar Mediterrâneo berço das civilizações Greco-romanas, Cristã e Islâmica, pode ser representado como área geográfica desse novo cinema francês desconhecido do público internacional. No texto de Michel Marie, o cinema francês do mundo mediterrâneo foi apagado pelo “nacional parisiense”. Lendo sua descrição do cinema francês contemporâneo vemos que o produto nacional exportável ainda continua sendo o “made in Paris”, porém cada vez mais os festivais internacionais concedem prêmios a esse cinema deslocado do eixo Paris-Cahiers du Cinema/Positif. Essas questões também estão ligadas às políticas cinematográficas nacionais que elegem muitas vezes os centros político-econômicos como as únicas áreas que merecem ser contempladas por financiamentos e divulgação de produções artísticas. Os jovens cineastas geralmente fazem do deslocamento de suas cidades para estas grandes capitais, mas não perdem a perspectiva cultural de suas origens.

Minha tese de doutorado sobre a obra escrita de Glauber Rocha utilizou como suporte teórico a sociologia de Pierre Bourdieu, principalmente em seus trabalhos sobre o capital cultural, hábitus de classe e as distinções que os meios intelectuais/artísticos e acadêmicos criam para se afirmarem culturalmente. O cinema de Glauber Rocha é realizado essencialmente nos anos de criação do que denomino “campo cinematográfico mundial”. Nos anos 1950/60, à exemplo da fotografia nos anos 1920/30, o cinema alcança sua “maior idade” e aprimora seus mecanismos de “legitimação cultural”. O cineasta brasileiro contribuiu teoricamente para essa “legitimação cultural do cinema” e se tornou prisioneiro desse aparato social. Apesar dos conhecimentos teóricos não tinha  “diploma universitário”, marca distintiva que o faria ultrapassar a barreira de classe, no momento em que o cinema entrava no meio acadêmico. Temos nos anos 1960-1970, a criação dos vários cursos universitários de cinema no mundo. Glauber foi respeitado e admirado como artista, mas sempre obteve “rótulos” que o afastava do campo que ele ajudou a construir e que privilegiou a dimensão mais telúrica de sua obra menos sem dar o devido valor a sua produção intelectual.[12]

Esse longo parêntese serve para apresentar a lista de premiações recebidas pela restrita obra de Abdellatif Kechiche. Em oito anos de realização este cineasta ganhou 12 prêmios com seus três filmes longos. Em 2000: Prêmio Luigi-De-Laurentis do melhor primeiro filme para La Faute à Voltaire; 2005: três Césars para L’Esquive: Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Roteiro e o Prêmio Lumière de melhor roteiro no Festival de Cannes; 2007: Premio Especial do Júri e Premio FIPRESCI da Crítica Internacional na 64ª Mostra de Cinema de Veneza e Premio Louis-Delluc para La Graine et le mulet; 2008: três Césars para La Graine et le mulet: Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Roteiro e no Festival de Cannes seu filme ganha o Prêmio Lumière de Melhor Direção e a iniciante Hafsia Herzi ganha o premio Lumière de Melhor Atriz.[13]

Não estou comparando a obra de Kechiche com a de Glauber Rocha, mas acredito que os cineastas hoje têm maior domínio da dimensão socioeconômica de sua obra que nos anos 1960/70. Todos sabem que um prêmio abre caminhos e oportunidades para outras realizações, mas principalmente insere ou não um jovem cineasta na “família do cinema” ou segundo P. Bourdieu no campo distintivo. Este campo é internacional e pode liberar o cineasta das “marcas tribais” que o “inferioriza” no momento das trocas simbólicas e principalmente nas “trocas econômicas”. Glauber Roche foi um cineasta livre dessas marcas, pelos seus pares internacionais, mas sofreu discriminações de seus pares brasileiro.[14]

Muitos estudantes de cinema que poderão ler este artigo desconhecem a existência desse cinema feito por franceses de universos culturais diversos. Cineastas franceses de outras fronteiras, que não alcançaram ainda o rótulo de “exceção cultural”, mas que reivindicam a participação na “família cinema universal”.

Os filmes desse “cinema francês periférico” não tratam somente da violência física e dos problemas sociais nos bairros populares. Contrariamente ao filme La Haine os filmes de Abdellatit Kechiche abordam a violência simbólica, que gerar violências físicas de todos os matizes. Essa violência simbólica assombra as fronteiras dos bairros populares de Norte a Sul da França, mas também das outras grandes capitais culturais e econômicas do ocidente pós-colonial e “descolonizado”. Na França as cités, espaços construídos artificialmente para se camuflar a realidade histórica de um passado colonial, são zonas de agrupamento populacional geralmente beneficiadas por políticas públicas paliativas para a questão da imigração, do universo do imigrante e de seus descendentes.

Nosso cineasta Mediterrâneo vai construindo uma carreira na peregrinação de uma cidade do Sul aos arredores de uma cité de Paris.  As imagens de seus filmes nos revelam que na “integração socioeconômica e cultural” as fronteiras nunca deixarão de existir.

As mulheres e os homens (des)masculinizados de Abdellatif Kechiche

Para Kechiche a mediação, para a aproximação dessas fronteiras, está na língua falada, na oralidade, mas também na fraternidade do olhar feminino sobre o problema do “outro”. Nos filmes de Abdellatif Kechiche são as mulheres que transmitem suas heranças culturais e estimulam a discussão sobre a tão falada “integração”. A professora do filme L’Esquive, que faz os alunos da cité lerem e representarem a peça de teatro Le Jeu de l’amour et du hasard de Marivaux,[15] colocando-os em contato com o clássico atemporal teatro francês, de Molière, Racine, Corneille, Marivaux et Musset, onde os temas da vida cotidiana são apresentados em diálogos críticos, irônicos e sarcásticos. Nessa peça (representada por jovens de origens étnicas diversas que no cotidiano da cité falam um francês fragmentado, cheio de síncopes, ritmos diversos, ilustrados por movimentos corporais) a língua francesa se apresenta da forma mais culta. O jogo da aparência teatral dialoga com a hipocrisia da “política da integração social”. Na realidade quem domina o verbo, pode estar apto à integração, ou enfrentar outras instancias de legitimação cultural que determinarão sua capacidade para ser cidadão.

São as mulheres como a jovem Lydia (Sarah Forestier), que se encanta tão fortemente por seu personagem na peça que manda fazer um vestido de baronesa no costureiro chinês do bairro. Ela o veste imediatamente exibindo-o pela cité, transformando assim o espaço temporal da diegese do filme, hora no século XVIII de Marivaux, hora no século XX do costureiro chinês, que incorpora o original, recicla e devolve a mercadoria copiada de forma exemplar. Lydia devora a peça de Marivaux até perder suas marcas de classe, ela recita os diálogos sem nenhum sotaque, imitando o que para ela poderia ser a forma de falar de uma francesa do século XVIII. Quando a jovem tira o vestido ela retorna a sua dura realidade de adolescente presa ao olhar masculino interesseiro e a um tipo de olhar feminino enciumado.

Krimo (Osman Elkharraz), o protagonista masculino do filme, está apaixonado e quer ficar o mais próximo possível de Lydia, por isso decide comprar o papel de Arlequim destinado a seu amigo de turma. Krimo propõe ao amigo, pequenos objetos oriundos de furtos para que este lhe deixe tomar seu lugar na peça. Porem a astúcia de Krimo será desmascarada, pois os diálogos da peça não despertam nenhum interesse no jovem, que não os compreende e nem sabe decliná-los de forma correta. Lydia propõe ensiná-lo e acaba passando por uma moça fácil e fútil aproveitadora dos sentimentos puros dos rapazes. O silêncio de Krimo é revelador do “estrangeiro” que não domina o verbo e, portanto sofrerá as conseqüências no momento das trocas simbólicas. Abdelatif Kechiche aponta nos diálogos do filme o jogo social da representação na realidade. O cineasta também sugere que uma cultura pode ser absorvida pelo outro em aparência, como um ator absorve seu personagem teatral, entretanto a realidade é outra e muito mais complexa.

L’Esquive foi o segundo filme de Abdelatif Kechiche. Seu primeiro filme La Faute à Voltaire (2000) não foi muito visto até que ganhou um premio e conseguiu uma divulgação mais importante, mesmo assim não alcançou as salas do circuito comercial. Foi um filme de poucos recursos como todos os filmes do cineasta, mas não menos profundo. Nele o domínio da língua francesa também foi apontado como fator de integração. A estória apresenta-se como uma “ironia do destino”.

Cartaz do filme La Faute à Voltaire (2000), de Abdellatif Kechiche

Um jovem árabe Jallel (Sami Bouajila), imigrante sem documentos de identidade, luta cotidianamente para sobreviver no país de seus sonhos e acaba recebendo de presente a carteira de motorista de um jovem francês, meio marginal que parte para o Tibete para ser monge. Jallel vai viver entre os excluídos (loucos e marginais) de Paris e conhecer a verdadeira “igualdade, solidariedade e fraternidade” lemas da bandeira de nação sonhada que lhe rejeita oficialmente. Esse rejeitado estrangeiro, no entanto, conhece profundamente a cultura letrada francesa. Ele culto, aprendeu o francês em seu país de origem, adora ler e foi em parte em busca dessa cultura que ele deixou seu país para tentar a vida na França. Quando chega à Paris ele encontra essas, “cultura” e “civilização” em decomposição.[16] Entretanto ele aprende que a fraternidade e solidariedade estão nas ruas, no mundo dos excluídos, dos estrangeiros e daqueles que optaram por aceitarem uma sociedade mais complexa e menos pragmática.

Esse personagem masculino é feminizado por Kechiche, humanizado por atitudes femininas, pois ele vive num abrigo para pessoas sem domicílio fixo, na ala masculina do abrigo e vê-se claramente seu refinamento diante de homens embrutecidos pela vida cotidiana, pela malandragem e pelos vícios. Em algumas cenas o “selvagem estrangeiro” é mais civilizado do que o francês de origem. Ele não é homossexual, é um homem delicado que respeita as mulheres como iguais. Jallel se relaciona com duas mulheres em momentos distintos, ambas marcadas pela arbitrariedade do poder fálico. A primeira é uma “beurette”, como são chamados as filhas dos magrebinos nascidos na França, garçonete num bar árabe e mãe solteira. O pai de seu filho era um jovem “beur” que teve o casamento arranjado pela família e volta ao país de seus pais para casar. A segunda é uma francesa esquizofrênica obcecada por sexo. Jallel se nega a ter relações sexuais com a moça por perceber que sua obsessão por sexo é um dos sintomas de seu desequilíbrio emocional. O jovem entretanto resolve acolhe-la quando sai do sanatório e  encontra sem teto e grávida. Eles vivem juntos e Jallel acaba se apaixonando pela moça convivendo com sua diferença.

Um Cinema Político Generoso

Concluindo, penso que o cinema de Abdelatif Kechiche é generoso e não complacente com a idéia de fazer a apologia do retorno dos imigrantes a seus países de origem. Ele trata da possibilidade de uma política mais humana e menos quantitativa para o problema da integração dos desterrados do “Império Colonial Francês”. Ele trata dos caminhos e descaminhos desse movimento em busca do reconhecimento do “outro” enquanto “igual”. O subúrbio de Paris é um microcosmo de um problema sem barreiras geopolítica, há uma identidade entre o universo da jovem Lydia de “L’Esquive” e o da jovem Rym (Hafsia Herzi) de seu terceiro filme “La Graine et Le Moulet”, que se passa na cidade de Sete no sul da França. Mas também com o universo de Jallel, o homem desmasculinizado, de seu primeiro filme. As personagens femininas chamadas de “beurettes”, na gíria popular, não aceitam de forma passiva a condição de vítima de um sistema colonial que obrigou seus pais e antepassados a serem condenados a não terem raízes. Elas buscam suas raízes e a exemplo do que afirmou o historiador Marc Bloc, promovendo raízes horizontais feitas de vários ramos e não raízes verticais, profundas porem frágeis. As mulheres de Kechiche, sabem que a integração passa pelo bem falar, e pelo bem representar, que são marcas da sociedade francesa herdadas da corte de Luis XIV e denunciadas por Pierre Bourdieu, ao longo de sua produção acadêmica. O estrangeiro, que continua chegando à França em busca de melhores condições de existência, não é mais o “ignorante”, “aborígene”, “selvagem” ou tantos outros adjetivos que a sociologia durkheimienne pode atribuir aos povos das novas colônias francesas  do século XIX.[17] Jallel é um “civilizado”, que aprendeu a cultura da metrópole e vem a ela para lutar com outras armas, as armas do conhecimento.

Kechiche através de seus personagens femininos ou masculinos (não submerso na ideologia da dominação masculina) nos mostra que é impossível lutar contra a sociedade das aparências. Ele descreve Molière e Mariveuax como escritores atemporais, presentes na cultura francesa que também foi absorvida pelas antigas colônias. Kechiche nos dá uma nova/velha imagem política da França, aquela que nutriu sonhos de liberdade em todo mundo ocidental. Ele denuncia também outra imagem da França, aquela da “corte parisiense” com seus palácios de pedra e cartão, dos cenários das peças teatrais e dos clássicos do cinema. Molière e Mariveuax são representantes da sociedade de corte tão bem estudada pelo historiador e sociólogo alemão Norbert Ellias. Mas finalmente o que é a sociedade contemporânea da comunicação e da aparência, se não uma projeção hollywoodiana dessa sociedade da corte de Louis XIV? A comédia francesa é representada nas fantasias de arlequim e de princesa, de Krimo e Lydia, mas também na festa de inauguração do barco restaurante de La Graine et le Moulet, onde a nata da sociedade do sul da França, se reúne para experimentar o banquete dos excluídos.

Cartaz do filme "La Graine et le Mulet" (2007), de Abdellatif Kechiche

Esse é o grande questionamento político do cinema de Abdelatif Kechiche. As fronteiras temporais e geográficas são criações humanas. A cultura é cumulativa e resiste, ao mesmo tempo que se transforma, independente das fronteiras artificiais por meio, entre outras coisas, da oralidade e da generosidade do “bom selvagem”.

Nos filmes em questão, o lema francês da igualdade, fraternidade e liberdade segue sendo uma utopia de contornos frágeis necessitando da ação dos agentes sociais para sua realização. No caso desse novo cinema sobre o subúrbio são as personagens femininas ou os “homens românticos, quase mulheres”, os artistas que, em meio ao poder de uma realidade fálica e belicista, ainda cultivam esse ideal igualitário no dia a dia da sociedade. Apresentando esses novos agentes sociais podemos dizer que o cinema francês dos filhos dos imigrantes se posiciona a favor da utopia transformadora. Ele faz parte da chamada “exceção cultural francesa” porque  promove o debate e a reflexão em torno das várias culturas que compuseram o “império colonial francês” e que hoje se esforçam para compor a França contemporânea.

Bibliografia

Beugnet Martine. Marginalité, sexualité, contrôle dans le cinema français contemporain. Paris: L’Harmattan, 2000.

MICHEL, Marie. “Os ultimos 20 anos do cinema francês (1986-2006)”, in Cinema mundial contemporâneo, Mauro Baptista et Fernando Mascarello (ed.), Papirus editora, Campinas, 2008, pp. 57-70.

JEANCOLAS, Jean-Pierre. Histoire du cinéma français. Paris: Armand Colin [collection « 128 »], 2005.

MARIE, Michel, Ed. Le Jeune cinéma français. Paris: Nathan [collection « 128 »], 1998.

PRÉDAL, René. Le Cinéma français depuis 2000, Paris: Armand Colin, 2008.

–––. Le Cinéma français des années 90. Paris: Armand Colin, 2008.


[1]MICHEL, Marie. “Os últimos 20 anos do cinema francês (1986-2006)”, in Cinema mundial contemporâneo, Mauro Baptista et Fernando Mascarello (ed.), Papirus editora, Campinas, 2008, pp. 57-70.

[2] Ver “Pour “l’exclusion” culturelle”, in Le Monde Diplomatique, Paris, Lundi 1 Novembre 1993.

[3] O filme La Heine de Mathieu Kassovitz (1995), foi o primeiro a tratar de forma aberta o tema do imigrante demonstrando a fratura social causada pelas disparidades sócio-econômicas que distinguem o imigrante, do francês de origem. O primeiro apresenta marcas distintivas aparentes que o faz sofrer discriminações sociais e profissionais. O segundo domina a língua, não possuí marcas distintivas como o bronzeado da pela, a fala hesitante, típica dos filhos de imigrantes, além de um melhor resultado escolar. Esses dados socioculturais distinguem os dois grupos no momento das disputas por uma colocação profissional ou social. Em seu filme La Haine, Mathieu Kassovitz, ressalta a questão econômica como a base para as atitudes discriminatórias. Para o cineasta, independentemente das questões étnicas, os subúrbios de Paris agrupam indivíduos com problemas sócio-econômicos semelhantes. Porém atualmente, esta visão tende a ser nuançada, pois se sabe que as marcas aparentes são dificuldades a mais no jogo das disputas cotidianas. Ver: TARR, Carrie, Reframing Difference: Beur and banlieue filmmaking in France, Manchester: Manchester University Press, 2005. ——, Beur is Beautiful: Contemporary French-Maghrebi Cinema. Special supplement, Cineaste, 33:1, Winter 2007.

[4]Mantenho ao longo do texto o termo francês cité, que pode ser traduzido como “bairro popular” ou “conjunto residencial popular”, dos subúrbios franceses. Esses bairros foram criados nos anos 60-70 para acolherem principalmente migrantes e imigrantes das ex-colônias asiáticas e africanas independentes.

[5] Para a noção de desterritorialização  e dos rótulos que a segue, estrangeiro ou nativo,  no âmbito da cultura ver: ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000.

[6] A Presidência do Conselho de Ministros de Portugal disponibilizou on line um estudo intitulado: Média, Imigração e Minorias Étnicas. 2005/2005. Este relatório aponta a preocupação em compreender o papel dos Medias na construção de uma visão estereotipada do imigrante na Europa e as políticas audiovisuais de positivação da imagem do imigrante. Tratasse de um estudo para a sociedade portuguesa que, de alguma forma, contribui para que possamos entender os financiamentos à nível europeu de projetos que contemplem o universo do imigrante nos domínios mais diversos. Disponível em http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_EstudosOI/OI_28.pdf (Acessado em 28/08/2010)

[7] Podemos citar os filmes de Costa Gavras, para um cinema de opção pragmática, pedagógica e partidária com pouca pesquisa formal e o cinema de Dziga Vertov, que atendia uma plataforma política igualmente pragmática, mas com grande preocupação formal que o fez transpor as barreiras do tempo.

[8]Magrebe é um termo árabe para designar a região da África do norte cercada pelo Mar Mediterrâneo, pelo Deserto do Saara e pelo Oceano Atlântico.

[9]Utilizamos o texto de Michel Marie em sua versão francesa disponível em: http://www.afeccav.org/wp-content/uploads/articles_des_adherents/MM1.pdf

[10]Ver:http://www.telerama.fr/cinema/23146rencontre_avec_abdellatif_kechiche_realisateur_de_la_graine_et_le_mulet.php?xtor=RSS-20 (Acessado em 23/05/2010)

[11] O termo “regional” é utilizado aqui na acepção geográfica da palavra, não traduz nenhuma conotação política pejorativa. O sentido de popular aqui está ligada a tradição cultural regional do mediterrâneo. O modo como o homem mediterrâneo (de origens étnicas variadas) se apropriou da língua francesa, seu sotaque e sua tradição oral, que engloba vários dialetos e línguas regionais do sul da França e dos países abordados pelo Mediterrâneo. Os filmes de Marcel Pagnol não foram exportados como produto francês justamente por reivindicar uma estética da diferença. Porem a crítica cinematográfica dos anos 60 reconheceu o valor autoral da obra deste escritor e cineasta. Ver: “Entretien avec Marcel Pagnol”, par Jean André Fieschi, Gérard Guégan et Jacques Rivette. Cahiers du Cinema. Paris: Éditions de l’Etoile, décembre 1965.

[12]Na França, Glauber foi conhecido como “Antonin Artaud do cinema”, “Profeta do Terceiro Mundo” entre outras denominações. No Brasil por muito tempo foi considerado louco, delirante, etc.. A justa medida de seu valor intelectual foi dado por outro intelectual que tinha plena consciência desses mecanismos de distinções sociais, o sociólogo Darci Ribeiro, que o chamou de “Gênio da Raça”. Hoje o conjunto da obra de Glauber Rocha é utilizado em pesquisas acadêmicas liberada dos julgamentos de valores. Ver: Glauber rocha et l’utopie du Cinema Novo. 1950-1970”. Gomes Lisboa, F. S. Un artiste intellectuel : Glauber Rocha et l’utopie du Cinema Novo (1955-1971) [thèse] – Villeneuve d’Ascq : Presses Universitaires du Septentrion, 2002 .

[13] O prêmio Lumière foi instituído em 1996 para premiar filmes franceses lançados na França no ano anterior ao Festival de Cannes. O júri é composto de 200 jornalistas internacionais.

[14] Bourdieu, Pierre. La Distinction une critique sociale du jugement. In http://00h00.giantchair.com/html/ExtraitsPDF/27454100831100_1.PDF (Acessado em 02/05/2010)

[15]Escritor e teatrólogo francês que produziu obras essencialmente para a Comédia Italiana entre 1722 e 1740.

[16] Para entender a aplicação dos termos Cultura e Civilização nos países em eles que foram cunhados, Alemanha e França, ver: Remaud, Olivier Culture Versus Civilisation, la Genèse d’une opposition. In: Revue de Synthèse, n.1, volume 129, p.105-123.

[17] Émille Durkheim é considerado fundador da sociologia moderna.


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