Avenida Dropsie

Avenida Dropsie de Will Eisner

Por Gabriel Correia*

Viver em uma cidade grande é um alimento para os sentidos, a cidade pulsa emprestando um pouquinho da vida de cada um que a habita: decepções, alegrias, descobertas, tudo isso acaba se impregnando na cidade, dando vida a objetos inanimados como postes, calçadas e janelas. Objetos que podem significar muitas coisas de muitas maneiras diversas no campo da subjetividade de cada um, mas que integrados num contexto maior findam por fazer parte de uma memória superior, coletiva, em que os momentos compartilhados suplantam os individuais. (Zolpidem) Esse contexto maior é a vizinhança, aquele lugar que aprendemos a identificar como parte indissociável daquilo que somos, lugar onde as vidas se misturam, umas influenciando as outras, criando um espírito coletivo tão forte que quando, enfim, nos distanciamos dessa primeira vizinhança, o choque é tão grande que nos sentimos, de certa forma, órfãos das gritarias, brigas, intrigas, amores possíveis e não. Will Eisner veio de uma vizinhança assim, como outra qualquer, nos arredores do sul do Bronx, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, e, curioso com uma reportagem de jornal sobre o renascimento daquela região após um período de declínio vertiginoso nos anos setenta, escreveu em 1995 a graphic novel Avenida Dropsie, contando em quadrinhos do nascimento ao declínio daquele lugar, tão caro ao artista.

A obra narra a trajetória deste lugar, a Avenida Dropsie, local tão fascinante quanto ordinário, e que, mesmo se tratando de um ambiente externo a quem não viveu aquelas experiências relatadas por Eisner, acaba, ao fim da leitura da obra, passando a fazer parte também da vida dos leitores, visto que o conceito que o autor procura expor é muito mais amplo do que a aparente simplicidade narrativa poderia subentender. Questões étnicas, guerra, amor, personagens cativantes que saltam das páginas direto para nosso cotidiano; tudo se mistura nesta obra ao mesmo tempo arrebatadora e extremamente simples.

A história começa em 1870 e termina no início dos anos 90, e a passagem do tempo, que poderia ser um ponto fraco, dada a extensão do período, acaba sendo tratada com maestria pela narrativa envolvente. O dinamismo narrativo é acentuado pela quase total rejeição da utilização da sarjeta (espaço entre os quadros, que está diretamente ligado à construção do tempo narrativo nos quadrinhos) e utilização, em lugar dessa, de uma profusão de fusão entre desenhos somada a uma total liberdade na diagramação das páginas, criando, assim, efeitos de transição só possíveis nas histórias em quadrinhos. Essa liberdade narrativa só é viável graças ao grande domínio do autor sobre o meio de expressão em que trabalha, assim, Will Eisner, artista de sensibilidade apurada e amante dos quadrinhos, acaba brindando o leitor com uma aula das possibilidades do formato. Eisner retrata os personagens de maneira mais cartunesca, buscando uma maior identificação desses com os leitores; reconstrói o ambiente arquitetônico com uma habilidade ímpar, trabalha os traços buscando sempre uma simplicidade ideal, nunca minimalista, mas sempre na medida para o tom da cena. Enfim, Avenida Dropsie é um trabalho de um artista mais que maduro, sempre em sintonia com sua época, buscando na memória íntima o combustível para uma obra com preocupações verdadeiramente artísticas. Para esse tipo de trabalho, Eisner utilizava um termo: graphic novel, que pode ser traduzido como romance gráfico.

Tal termo, popularizado e defendido por Eisner desde 1978, ano de publicação de Um contrato com Deus, sua primeira obra do tipo, é tão difundido quanto controverso no meio das histórias em quadrinhos. Tal denominação se refere a um tipo de publicação em quadrinhos voltada a trabalhos mais autorais e elaborados, e é nesse ponto que as opiniões sobre tal utilização do termo entram em conflito. Para alguns realizadores, tal distinção entre quadrinhos mais ou menos sofisticados não faz sentido e só serve para que as editoras elevem os preços de determinadas obras, aplicando nelas o “certificado de qualidade” de uma graphic novel. Por outro lado, a tentativa de Eisner com seu primeiro trabalho do tipo, em 1978, era a de levar os quadrinhos a um outro patamar, levando obras em quadrinhos para as livrarias, numa tentativa de mudar a imagem das histórias em quadrinhos como simples produto de consumo infanto-juvenil. Enfim, para além das discussões, o que fica é a obra, sendo chamada do que quer que seja, o que importa realmente é a obra, e Eisner é um gênio dos quadrinhos, e assim sendo, a leitura de obra tão densa e rica como Avenida Dropsie passa a ser um alimento para os sentidos, assim como viver em uma cidade, assim como a nossa vizinhança.

*Gabriel Correia é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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