Chris Marker e Wim Wenders na Tóquio dos anos 80

Cruzar as ruas de Shibuya na última noite de 2006 foi a experiência audiovisual mais poderosa que já vivenciei. Ali, a força da cidade e seu potencial de vida geraram um arrebatamento que, imagino, ocorre raras vezes ao longo de uma existência. Ao retornar para o Brasil, dei início a uma busca desenfreada por filmes que pudessem oferecer imagens de Tóquio. Uma tentativa de trazer à tona as reverberações daqueles meses vividos entre neons, estações de trem, lan houses, parques, templos, restaurantes minúsculos.

Encontros e Desencontros (Sofia Coppola, 2003) vinha sendo, até então, o principal mediador entre o imaginado, o vivido e o lembrado da cidade. A generosidade com que Sofia oferece Tóquio para nos acolhermos é quase irresistível. Os clichês estão todos presentes, porém de forma elegante. O descolamento não se faz desesperador. Ao contrário, o estado de suspensão é exatamente o que possibilita o direito de deleite com a própria melancolia.

Depois, vieram alguns outros, como os ainda não lançados no Brasil Mapa de los sonidos de Tokio (Isabel Coixet, 2009) e Enter the Void (Gaspar Noé, 2009). Ambos estiveram em competição oficial no Festival de Cannes apresentando narrativas do submundo das situações-limite. Somando Babel (Alejandro Gonzales Iñarritu, 2006) e Tokyo! (Michel Gondry, Leos Carax e Joon-ho Bong, 2008), é fácil afirmar que o olhar cinematográfico ocidental esteve bastante infiltrado por Tóquio nos últimos anos.

Mais de duas décadas atrás, pré-efervescência do “cool/cult/cute Japan” para o mundo, ou seja, antes da revista Fruits, dos livros Phaidon e dos catálogos Benetton, dois documentários se dedicaram a filmar as entranhas de um caldeirão de paradoxos que borbulhava em Tóquio. Sem Sol (Chris Marker, 1982) e Tokyo Ga (Wim Wenders, 1985) possuem muito em comum: não seguem nenhum sistema de ação e reação, são simplesmente as perambulações dos próprios diretores que, frente a uma realidade demais poderosa, se colocam e nos colocam numa posição de vidência.

Cena do filme Tokyo Ga
Cena do filme "Tokyo Ga"

A situação em que se encontram extravasa as capacidades motoras.  Sem reação diante do que veem, apenas registram, perseguindo uma visão mais do que engajados numa ação. Não são ensaios sociológicos, nem tratam o exotismo dos costumes com fascinação turistíca. Apesar de possuírem uma linha de esboço (os filmes de Yasujiro Ozu para Wenders e as questões da memória para Marker), a principal investigação em ambos casos parece ser sobre a imagem em si.

Cena do filme Sem Som
Frames do filme "Sem Sol"

Vagam entre os limites do sagrado e do profano elaborando, a partir do superficial de ambos, algo que em sua terra natal nunca transbordaria. As declarações ganham tom premonitório, só que ditas por sonâmbulos.  Sob uma trilha sonora temática “sons do mal-estar urbano”, filmam televisores em quartos de hotel, propagandas luminosas noturnas, pessoas dormindo no metrô e videogames da primeira era. Imagens que já nascem nostálgicas.

Em nossas situações cotidianas passamos perto de muitas coisas, são “apenas” pessoas, uma fábrica, uma escola. Através dos esquemas sensório-motores, reconhecemos tudo isso, suportamos e aprovamos, comportando-nos de acordo com nossas capacidades e gostos. Mas se esses esquemas são quebrados, pode aparecer um outro tipo de imagem. A vida na cidade de Tóquio com todo seu excesso de horror e beleza. Como coloca Deleuze, mais do que perturbar as ligações sensório-motoras, é preciso que a imagem ótico-sonora contenha forças imensas de uma “profunda intuição vital”.

O que acontece a Wenders e Marker, não lhes pertence. Apenas intuem a parte irredutível do que acontece: o que constitui o insuportável, o intolerável. São testemunhas que nos fornecem sucessivas constatações sem laços lógicos ou reações realmente efetivas. Ficamos sem saber o que é imaginário ou real, físico ou mental na situação. Não há espaço para uma pergunta desse tipo. Os objetos e os meios conquistam uma realidade material autônoma que os faz valer por si mesmos em meio a uma exploração dos tempos mortos da banalidade cotidiana.

Cena do filme Tokyo Ga
Cena do filme "Tokyo Ga"

No outro extremo, está um cineasta como Werner Herzog, para quem o que importa é o contato mítico original, quando se vê algo pela primeira vez, gerando imagens iniciáticas. Seu esforço é em direção à tentativa de expressão do contato direto entre homem e mundo. Já era de se esperar seu desespero na cidade onde quase tudo é mediação. Em um encontro com Wim Wenders no topo da torre de Tóquio, Herzog declara: “Isto é tão simplesmente poluição visual. Quase não existem mais imagens possíveis. Teríamos de fazer uma escavação arqueológica. Temos que encarar essa guerra, a fim de solucionar tal necessidade”. Logo em seguida, Wenders prossegue e afirma que, ao contrário, as imagens que ele busca só poderiam ser encontradas justamente no caos da cidade.

Para alguns estrangeiros que visitam Tóquio, fica a impressão de que se viveu um devir. Ou de que se fez parte de “um gigantesco sonho coletivo, do qual a cidade inteira seria uma projeção” (Sem Sol). A experiência adquire o status de exclusividade, do que poderia ser vivido apenas ali. Daí a nostalgia automática que existe em cada frame desde o momento da captação. As impressões passam a constituir o mais íntimo do viajante que caminhou pelo cruzamento que mais recebe pessoas por dia no mundo, o de Shibuya. Aqueles sons e imagens causam, inevitavelmente, alguma mudança em nosso eixo interior. Assim como um bom filme.

Referências bibliográficas:

BARBER, Stephen. Projected cities: cities and urban space. Londres: Reaktion, 2002.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

Regiane Ishii é graduanda em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

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