Por: Felipe Corrêa
A jovem protagonista permanece munida do início ao fim apenas com um traje espacial, uma câmera, um tradutor, e um osciloscópio. Ela não tem nome, é arqueóloga e astronauta de Recanto Lenhoso – um estranho planeta de alienígenas de quatro olhos fascinados por instrumentos musicais que parecem ter partido para uma corrida espacial antes mesmo de se industrializar – parte em sua nave, cabendo ao jogador a tarefa de explorar o sistema solar, composto por 6 planetas em miniaturas extremamente peculiares, para descobrir quem eram e o que aconteceu com a raça que anteriormente habitava aquele lugar. Tudo isso enquanto tenta entender uma maldição que lhe acomete. Após cada morte, a personagem, e consequentemente o jogador, acorda no mesmo momento, um pouco antes da viagem, no planeta inicial, onde apenas ela parece se lembrar dos acontecimentos anteriores… Tudo em 22 minutos de cada vez, já que o sol está prestes a virar uma supernova, reiniciando o loop: de novo e de novo. Esse é Outer wilds, jogo de 2019, criado por Alex Beachaum e desenvolvido pela Moebius Digital em parceria com a Annapurna Interactive e lançado originalmente para PC e Xbox One.
Assim como a sinopse acima, o início de Outer Wilds é denso, confuso e muitas vezes assustador. A obra apresenta para o jogador um mundo aberto em primeira pessoa, sem objetivos pré-definidos, HUDs ou Cutscenes. O jogo rejeita as convenções do gênero e nega-se, sobretudo, a emular uma cinematografia.
A produção de Alex Beachaum toma para si a ambiciosa missão de relatar, apenas através de ruínas, a ascensão e queda dos Nomai, uma civilização extinta a milhares de anos. Ao mesmo tempo em que apresenta personagens, locais e situações inventivas e cativantes. Baseando-se totalmente em uma narrativa guiada pelo ambiente, quase tudo é transmitido através das paisagens, enquanto mensagens cravadas nas paredes explicam acontecimentos específicos, mas de modo não-linear. Nada é obviamente apontado ou marcado em tela, não existem recompensas palpáveis, como itens ou colecionáveis, a maior recompensa em explorar é: EXPLORAR.
Desvendar os mistérios do sistema solar e o que ele foi outrora, ligando e encaixando pouco a pouco as peças do quebra-cabeça na mente do jogador é demasiado satisfatório, e a catarse, junto com a sensação de progresso, geradas ao finalmente entender as peculiaridades de cada planeta, descobrindo assim novas maneiras de utilizar seus equipamentos, é infinitamente maior do que qualquer loot seria capaz de proporcionar. Somado a isso está a estrutura semelhante a um Roguelike, em que a cada morte, o jogador (e também o personagem diegeticamente) leva consigo da sua vida anterior apenas mais conhecimento, sem novos status ou habilidades, mas com novas maneiras de encarar as ferramentas que sempre possuiu. Assim, a obra adiciona ao aspecto mecânico e lúdico uma dimensão narrativa que lhe é indissociável.
Esse modelo traz ao gameplay de Outer Wilds uma sensação de exploração que transcende o diegético. Embora a demasiada liberdade e ser forçado a reiniciar após 20 minutos me frustrasse às vezes, essa autonomia desafiadora, junto da punição pela morte, são, respectivamente, responsáveis por gerar curiosidade e tensão, um equilíbrio entre medo e fascínio pelo desconhecido, tão intrínsecos à experiência. Jamais esquecerei quando caí no buraco negro do Vale Incerto pela primeira vez, ou do verdadeiro desespero que senti em Abrolho Sombrio. Esse mundo parece existir apesar de você e não para você, um lugar nunca antes visitado, e muito menos planejado – mas foi, e cuidadosamente, por sinal.
Alex Beachaum e a equipe da Mobius Digital provam que, assim como os efeitos visuais, a excelência do game design se encontra em sua discrição: dicas, direções, coordenadas, mistérios. Tudo é mostrado, descrito e repetido diversas vezes ao jogador, contaminando sua mente com o próximo passo a ser dado, mas tão sutilmente que os olhos menos atentos, profundamente imersos na experiência, acreditam que cada uma de suas ideias é única e possuem completo mérito pela suas descobertas.
Falando em Mérito, o estúdio merece todas as glórias pelo aspecto técnico, embora o jogo mantenha-se simples em seu visual, adotando uma estética Low Poly e cartunesca, é de se destacar a quantidade de simulações de física, extremamente custosas aos hardwares (principalmente dos consoles – Xbox One e Playstation 4), rodando em paralelo por todo o sistema solar. Qualquer um que já tenha tentado renderizar um vídeo, entende a magnitude e imagina a engenharia necessária para simular 6 planetas, ao mesmo tempo, 30 vezes por segundo em um Hardware de 2013.
Contudo, uma obra não existe no vácuo. Não são as qualidades isoladas de Outer Wilds que me fazem escrever esse ensaio. Nas últimas décadas, “Jogos Cinematográficos” inundaram o mercado de Videogames. Títulos como “The Last of Us“, “God of War” e “The Witcher 3: Wild Hunt“, se tornaram o padrão das produções de grande orçamento. São obras que, embora possuam sessões consideráveis de Gameplay, focam em uma narrativa baseada em Cutscenes e momentos milimetricamente coreografados, com uma montagem semelhante a um filme. E quando entregam o controle ao jogador, lhe apresentam, na maioria das vezes, situações de combate, troca de tiros, agressão, e conflitos em geral. Com esse panorama estabelecido, a forma de narrar presente em Outer Wilds – descrita anteriormente como não-linear, guiada pelo ambiente e com ausência de montagem cinematográfica – torna-se ainda mais interessante.
Sem fazer juízo de valor, é no mínimo coerente que Alex Beachaum decida novamente se colocar na vanguarda ao apresentar uma jogabilidade completamente não-violenta, na qual o verbo “explorar” substitui o verbo padrão da indústria, “matar”. Vai na contramão de quase tudo o que é produzido atualmente, ao mesmo tempo em que prioriza os aspectos da jogabilidade e da interação jogador-jogo sobrepondo-os à montagem cinematográfica, trabalhando as especificidades do meio que se encontra de forma característica.
Essa singular direção, quase que pacifista, fica extremamente clara no tom e na atmosfera construída por toda a aventura. Nota-se isso ao encontrarmos outros viajantes no espaço, ou adentrarmos os templos perdidos Nomai. Outer Wilds não cai no cinismo já tão comum na ficção científica, com armadilhas e inimigos que guardam aquele conhecimento proibido. Muito pelo contrário, trabalha com a ausência de antagonistas. Os maiores empecilhos são as barreiras naturais, tais como montanhas, lagos e buracos negros, que quando vencidos, ou melhor, contornados – já que essa é na maioria das vezes sua única opção – o jogo não te introduz outra ameaça, mas celebra suas pequenas vitórias.
Os poucos diálogos, a trilha sonora de banjo, as fogueiras e os marshmallows, tudo é tão vagaroso, tão simples, tão calmo. São momentos contraditórios à megalomaníaca missão de investigar todo um sistema solar em minutos que te dizem a todo momento: “Calma, você tem todos os 22 minutos do mundo.” Novamente, Outer Wilds é sobre o que ele não é. Esse ritmo, imposto ao jogador mesmo com o limite de tempo, deixa claro o que à primeira vista pode parecer paradoxal a própria definição de “jogar”: Outer Wilds não é sobre agir. “Observar” é o ethos que guia as escolhas de Alex Beachaum. Através da singularidade da mídia dos Videogames, Outer Wilds transforma o ato passivo de assistir na condição ativa de observar. Tal conceito culmina na introdução dos objetos quânticos durante a gameplay. Pedras, fragmentos da chamada Lua Quântica, permanecem estáticas no mesmo lugar enquanto a câmera mantém seus olhos sobre elas. Porém, no momento em que saem do campo de visão, mudam de local e forma. Agora, o jogador atinge uma segunda camada de interação com a “mise-en-scène“, não só influenciando o campo, mas também o extra-campo. A partir daí a linha que demarca os limites de mundo e jogador torna-se cada vez mais borrada. Tem-se uma relação simbiótica construída tão profundamente, que em muitos momentos torna-se impossível saber quem dita o que. Afinal, o mundo conduz o jogador, mas agora o jogador também conduz o mundo.A prova cabal de que Outer Wilds só existe em colaboração com o jogador, evidencia-se através da interação que só o videogame como mídia é capaz de proporcionar. Mesmo que desconstrua gêneros e questione suas convenções, fuja do clichê e renegue muitos aspectos do videogame moderno, se mostrando como um simulador, um Roguelike, uma ficção científica, e principalmente uma obra narrativa, Outer Wilds, é antes de qualquer coisa, um jogo.