Estupro: um recurso narrativo ou uma forma barata de torturar mulheres?

Por: Mariana Melegari Piacente

Don’t let the sun catch you crying. Tonight is the time for all your tears. your heart may be broken tonight. But tomorrow in the morning light. Don’t let the sun catch you crying.

Quão longe estamos dispostos a ir para machucar uma personagem feminina? Quanto devemos fazer ela sofrer para mostrar que ela está sendo traumatizada? Entre incontáveis maneiras de seguir um caminho de dor, é comum que vejamos abuso sexual sendo usado como um recurso narrativo. Mas a que ponto isso é realmente necessário?

Estupro tem duas funções, tanto para a vítima como para o estuprador: fazê-la passar por um tipo de sofrimento indesejável e para mostrar quão ruim ele pode ser. Mas o ponto principal é: ele a violou. Da pior maneira possível. Ele, tão mau quanto poderia ser, literalmente entrou no corpo de uma mulher, apenas porque… Ele pôde. E nós não temos escolha a não ser assistir a isso.

Então, temos que encarar as consequências.

É engraçado como nosso corpo tem calafrios e se comporta completamente diferente quando ouvimos que uma personagem feminina foi estuprada. Digo, é horrível o suficiente se ela foi torturada de diferentes formas, mas quando ficamos cientes desse tipo de dano… É diferente. Muda tudo sobre ela e ele. Porque, como já sabemos, eles são as peças principais desse quebra cabeça. Nós precisamos de uma vítima para explorar e fazer sua vida baseada ao redor do seu abuso, e precisamos de um agressor, para mostrar às pessoas que ele é o pior tipo de pessoa que existe. É por essa razão que Michael Myers simplesmente estupra uma mulher no hospital em um dos remakes ruins de Halloween, apenas para que possamos desnecessariamente estar mais certos de que ele é uma pessoa completamente má. A cena não tem literalmente qualquer propósito que não seja gritar sua maldade em nossa cara — e fazer uma mulher aleatória, que nunca será mostrada novamente, viver um trauma por nada.

Mas essa é a única abordagem que podemos pensar para colocar uma personagem feminina em uma posição vulnerável? Isso não é um plot ultrapassado, fraco e barato? Não temos criatividade suficiente para escrever coisas diferentes na procura para o shock value? Nós realmente temos que expor esse tipo de coisa tão explicitamente?

A resposta é não. E a prova é um filme de 2020 chamado Never Rarely Sometimes Always, dirigido por Eliza Hittman.

Em primeiro lugar, a obra conta a história de Autumn, uma adolescente que engravidou e quer fazer um aborto. Mas, infelizmente, seu estado (Pensilvânia) não permite que menores de idade realizem esse procedimento sem o consentimento de um adulto. Então, ela vai à Nova Iorque com sua prima, Skylar, para que ela possa fazer isso de maneira segura e sem seus pais, ou qualquer outra pessoa, ficarem sabendo disso.

Literalmente desde o começo do enredo, nós recebemos dicas de que Autumn passou por um relacionamento abusivo. Ou de que ela era uma prostituta. Ou ambos. O que ela teve um caso de uma noite. Ou todos eles. O ponto é: ela foi ferida. Alguém, mais especificamente, um homem, a fez fazer coisas que ela não queria. Caramba, ela literalmente diz coisas sobre isso logo quando você aperta o play.

Seguindo em frente, nós descobrimos sobre sua gravidez, e quão afetada a jovem está com isso. Quão ruim é para ela porque a) ela é uma adolescente; b) sua família não é a ideal que você gostaria de ter; e c) seu dinheiro é bem limitado. É bem difícil para Autumn, uma menor de idade que ainda vai à escola e lida com parentes ruins. Ela mal tem dinheiro para si mesma, como ela poderia criar uma criança apropriadamente?

Basicamente, sua prima — que trabalha com ela — rouba do seu trabalho depois de seu turno, e elas pegam um ônibus para Nova Iorque. Elas estão totalmente sozinhas, sem saberem nada sobre seu destino e torcendo para o melhor. Além disso, a mulher que realizou a ultrassom de Autumn continua ligando para a garota. Ela é da igreja e contra o aborto. Eu devo confessar que estava com medo de que, de alguma forma, ela ia descobrir quem eram os pais de Autumn e contar a eles sobre seu plano. Eles não têm ideia de que ela está fora da cidade. Eles não têm ideia de que ela sequer está carregando um feto.

Ainda no ônibus, um cara aleatório demonstra interesse em Skylar, e ambas jovens parecem bem desconfortáveis em sua presença. Ele está claramente tentando dar uma investida, mas parece inocente. Mas a atmosfera é suficiente para você suspeitar de que ele vai assediá-las, persegui-las ou qualquer outro tipo de inconveniência que homens podem fazer para terem a atenção de uma mulher. Entretanto, mesmo com esse incômodo em querer passar seu número e tudo mais, ele as deixa sozinhas.

Cem coisas diferentes poderiam ter acontecido nessa cena. Ainda assim, Hittman decide manter o desconforto visível através de suas expressões, linguagem corporal e a possibilidade de o que aquele sujeito estranho no ônibus pode fazer com elas fisicamente, mesmo que ele termine não fazendo nada.

A mesma coisa acontece durante a “viagem” para Nova Iorque. As garotas não têm lugar para dormir. Elas estão tão vulneráveis que podem ser roubadas — e os assaltantes podem assediá-las sexualmente. Um milhão de coisas podem facilmente acontecer e, mesmo que elas não estejam chorando ou tremendo de medo, você vê em seus olhos quão perdidas elas estão. Especialmente quando as coisas parecem piores assim que Autumn chega na clínica.

Primeiro, ela fica ciente de que não está grávida de dez semanas, mas de dezoito — o que faz com que o procedimento seja de dois dias. Quanto dinheiro elas têm sobrando? Elas não planejaram isso. Onde elas devem ir? O que elas devem fazer?

Elas basicamente não têm dinheiro para voltar para sua cidade. E isso requer uma medida desesperada. Mas vamos deixar isso para depois.

No caminho para a clínica, uma das coisas ruins que poderiam acontecer de fato acontece. Nós vemos um homem, assistindo às duas dormindo no trem, e simplesmente decide se masturbar. Ele não chega perto dela e não vemos muito dele fazendo o que se sente no direito de fazer. A cena mal dura um minuto, já que estamos acompanhando as duas. Elas estão perturbadas o suficiente com a mera visão dele abrindo seu zíper, e fogem.

É tão simples, e ainda assim tão profundo. Isso poderia ter terminado de diversas maneiras diferentes, e algumas narrativas nem precisariam desse tipo de cena. Mas aqui, nós temos segundos de um agressor, e nosso foco é nelas. E isso adiciona no medo e desconfiança que rodeia seus pensamentos sobre aquele lugar.

E depois, somos levados à parte mais importante do filme, se quer saber minha opinião.

Antes de oficialmente começar o procedimento, a assistente social faz algumas perguntas à Autumn sobre seu histórico médico e relacionamentos. Durante a segunda parte, ela tem quatro tipos diferentes de respostas: nunca, raramente, às vezes e sempre.

Vê onde eu quero chegar?

A mulher faz perguntas simples, como quantos parceiros Autumn teve, se ela tinha um parceiro fixo atualmente e coisas do gênero. Mas a cena fica mais e mais profunda quando as perguntas viram “seu parceiro já te agrediu fisicamente?” ou “seu parceiro já te obrigou a fazer sexo quando você não queria?”. Autumn começa a responder sem dar muita atenção, mas ela começa a ficar mais quieta, suas expressões vão mudando até ela não conseguir lidar mais e chorar em completo silêncio.

E essa cena não é a mais emotiva e difícil de assistir só porque descobrimos mais sobre o passado da nossa protagonista e o tanto que ela sofreu antes de chegar ali, mas também porque nós sentimos sua dor sem de fato termos que vê-la sendo ferida.

Ela já está ferida. Ela está frágil. Ela passou por muita coisa. Desde o começo do filme, dicas são dadas de que seus relacionamentos passados ou o que quer que ela tenha vivido em sua vida, não eram saudáveis. Você se pergunta se ela foi estuprada ou não, se ela foi fisicamente agredida ou não, quem fez isso, por que ele fez isso. Mesmo assim, não temos cenas disso acontecendo com ela. É tudo sobre como ela está agora.

Não é à toa que a câmera não se move durante o questionário. Tudo o que vemos é o rosto de Autumn e um zoom in começando lentamente enquanto as coisas começam a ficar mais pessoais. A diretora não precisou fazer dela uma Sansa Stark para quebrá-la, para que ela pudesse se reerguer e brilhar. Nós sabemos que ela foi abusada de alguma forma. Ponto. Quantas vezes? Por quantos homens? Quando? Não importa. Nesse caso, por que importaria? Esse não é o foco. Por que deveria ser o foco principal de nossa narrativa? Ou de qualquer narrativa?

Após isso, Autumn passa pelo primeiro procedimento, e então ela e Skylar vão comprar suas passagens para voltar para casa no dia seguinte, após a segunda parte. Mas, por conta do preço do aborto, o dinheiro está longe de ser suficiente. É aqui que a medida desesperada é tomada.

Skylar liga para o cara do ônibus. Ele vai até elas e fica pedindo para a jovem ir até ao centro da cidade com ele, mas ela fica negando e tentando ser gentil, e apenas mostrar interesse suficiente para que ambas possam ter o que querem dele: dinheiro.

Jasper, o mesmo que eu venho chamando de “o cara do ônibus”, raramente dá uma investida física. Honestamente, isso acontece “só” duas vezes. Mas, desde que o conhecemos no ônibus até sua última cena, tudo que envolve os três é estranho e desagradável. Por quê?

Nós ficamos esperando que ele faça algo. E parece que Jasper vai fazer ou dizer algo prejudicial de alguma forma. Autumn e Skylar, especialmente Skylar nesse caso, posto que ela é o seu alvo, está dolorosamente tentando tolerar a situação como um todo, para que elas possam pegar o ônibus pela manhã. De novo, suas expressões, linguagem corporal e até mesmo suas falas são suficientes para nos convencer de quão dificultoso é para essas adolescentes lidarem com isso. Não precisamos que Jasper pegue os pulsos de Skylar e force um beijo nela para deixar mais óbvio. Contudo, nós sempre esperamos para que algo desse tipo aconteça. Estamos tão acostumados a ver mulheres sendo agredidas na mídia e na vida real, que até a menor das inconveniências nos deixa com medo de termos que presenciar o maior trauma que alguém com uma vagina possa sofrer.

Então, Jasper as leva para lugares diferentes e um deles é o karaokê. É a primeira vez que o vemos tentar algo com Skylar. Enquanto Autumn canta, sua mão se aproxima da perna da jovem. Nós não vemos muito disso e ele mal está acariciando (não que isso torne menos ruim). A câmera se move e para na face de Skylar. Ela está paralisada, não mostrando muito como se sente através de sua expressão, porque ela não pode se permitir expor seus verdadeiros sentimentos. A garota bebe um pouco de sua cerveja, então sorri fraco por causa de alguma porcaria aleatória que ele falou em seu ouvido. Todavia, esses poucos segundos são suficientes para percebermos claramente que ela não queria estar naquele lugar, sendo tocada por ele. Jasper não precisa agarrar sua perna e beijar seu pescoço, por exemplo. Um simples e “inocente” ato diz tudo.

A outra investida física vem logo depois, quando eles estão perto do metrô e Skylar pede pelo dinheiro, alegando que pagará de volta, é claro. Ele acredita. Ou pelo menos diz que acredita. Não importa para ele, para ser honesta, contanto que ele tenha o que quer.

E para isso, eles deixam Autumn sozinha, que procura por eles um tempo depois, e eles estão se beijando em algum lugar.

A prima da jovem está encostada em um pilar. Seu corpo está firme, seu pescoço mal se mexe e suas mãos estão atrás dela. Jasper está fazendo tudo. Suas mãos, felizmente, não estão passeando pelo corpo dela, mas não precisamos disso para mostrar a vantagem que ela está tirando dela. Nós sabemos o desagrado que o corpo e mente de Skylar estão passando. As garotas poderiam apenas ir embora após pegarem o dinheiro. Afinal de contas, Jasper nunca mostrou nenhum sinal de violência ou nada perto disso. Mas, de novo, nós ficamos esperando por isso. Autumn e Skylar ficam esperando pelo pior. A sociedade ensinou que precisamos estar alertas e sempre esperarmos pelo pior vindo de homens. É necessário estar cautelosa em cem por cento das vezes. Caso contrário, no pior cenário possível, seu corpo pode ser encontrado em algum rio aleatório. Ou nunca ser encontrado.

Então, assistimos a uma das cenas mais tocantes do filme: Autumn calmamente encostando contra o outro lado do pilar e alcançando a mão de sua prima. Elas estão em completo silêncio, segurando as mãos firmemente. E, mesmo com poucos segundos dessa atitude de apoio, é mostrado a nós que, mesmo que elas pareçam estar sozinhas, elas têm uma a outra.

Quando Jasper vai embora, o sol já está raiando e é hora do segundo procedimento de Autumn. Sendo assim, ela vai até a clínica e tudo ocorre tranquilamente. A assistente social fica com ela o tempo todo. Mesmo que a vida tenha tentado sabotar Autumn desde o momento em que ela nasceu, a cirurgia vai bem.

Com tudo feito, Autumn e Skylar têm um café da manhã silencioso e pegam seu ônibus para casa. E o filme termina.

É isso.

Não temos mais que isso. Mas o ponto é, não precisamos de mais.

Nós conhecemos Autumn, uma jovem que foi abusada. Ela tinha um namorado ruim? Um parceiro de sexo casual ruim? Ela foi vítima de um abuso que teve a gravidez como consequência? Ou naquela vez foi consensual? Ela terminou com ele? Ele terminou com ela? Digo, não sabemos se ele sabia do bebê ou não. E não importa. Eliza Hittman nos prova isso.

Desde o primeiro segundo do filme até o fim dele, existe esse peso constante no nosso peito nos dizendo que algo pode acontecer com aquelas duas jovens. Mas nada acontece. Nós sentimos a aflição durante a trilha sonora, fotografia e atuação. Como Wallace Andrioli pontuou em sua crítica, publicada na Revista Moviement “no entanto, Hittman evita torturar as personagens, transformar seu sofrimento em artifício narrativo apelativo […]”. E esse é o todo o foco disso. Quantos filmes, séries, videogames e qualquer outro tipo de narrativa midiática jogou cenas de abuso (e não precisa ser necessariamente estupro) em nossas caras apenas com a intenção de nos chocar?

E, na maioria das vezes, esse abuso é sem sentido. Mulheres não precisam passar por isso para crescer de alguma maneira. Ou mudar de uma forma positiva. Ou para ficarem mais fortes (olá de novo, Sansa Stark). É para lá de patético e extremamente cruel colocá-las nessa posição só porque você não é capaz de escrever o menor dos plots complexos para sua personagem.

Never Rarely Sometimes Always é um filme tocante, emotivo e, como mencionei outras incontáveis vezes, muito desconfortável. Mas extremamente necessário. Não é complexo de um jeito que você precisará procurar por explicações online, porque é simples suficiente para todos notarem o básico. É uma porta aberta e uma chance para muitos roteiristas e diretores realmente se importarem com suas personagens e audiência femininas, e mostrar a elas alguma humanidade. Perceber que seus corpos — nossos corpos — não são feitos para shock value, ou que mulheres precisam ser feridas dessa maneira apenas para que elas possam ficar mais maduras e fortes.

Mulheres não precisam ser estupradas para desenvolvimento de personagem. Os escritores só precisam aprender outra estratégia de narrativa. 

The nighttime shadows disappear. And with them go all your tears. the sunshine will bring you joy. For every girl and boy. Don’t let the sun…

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NEVER Rarely Sometimes Always. Direção de Eliza Hittman. 2020. 101 minutos;

ANDRIOLI, Wallace. Never Rarely Sometimes Always Opressão Sistêmica. Revista Moviement, 2020. Disponível em: < https://revistamoviement.net/never-rarely-sometimes-always-293f80ecf3b4>. Acesso em 30 jan 2022.

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