Possession e a Dualidade Metafórica

Por: Marcella Lins

  1. Introdução

Lançado em 1981, Possession, não foi um sucesso de bilheteria, sendo, inclusive, censurado em alguns países por suas cenas de violência explícita. No entanto, adquiriu um status de ícone cult. Dirigido por Andrzej Żuławski, a obra é, até os dias atuais, fonte de forte controvérsia. Seu texto polissêmico permite diversas interpretações desde diferentes prismas, o que torna cada tentativa de análise igualmente complexa e original.

De maneira a tentar compreender a obra, é necessário ter em mente o contexto em que foi produzida. Andrzej Żuławski foi um diretor e roteirista polonês, nascido na União Soviética nos anos 1940. Żuławski carregou em seu trabalho influências tanto do cinema nacional polonês, adquiridas durante o período que trabalhou como assistente do prestigiado diretor Andrzej Wajda, como influências internacionais, oriundas de sua formação no Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris.

Desde o lançamento de seu primeiro longa-metragem, The Third Part of the Night (1971), seu trabalho gera controvérsias significativas. Em 1977, durante a produção de On the Silver Globe (1977/1988), Żuławski foi detido por subversão política, sendo proibido pelo regime comunista polonês de entrar em qualquer set de filmagem no país. A situação culminou em seu exílio na França (BIRD, 2009).

As circunstâncias caóticas do momento – agravadas pelo fato de sua esposa ter-lhe pedido o divórcio na mesma época – o instigou a trabalhar em um novo projeto: Possession.

  1. O filme          

É possível observar em Possession um estilo próprio que une elementos surrealistas a elementos característicos da terceira geração do Cinema Polonês, principalmente a manifestação da identidade do autor e a tendência à estilização poética. Além disso, os estudos de Żuławski na França determinaram o caráter transnacional de suas obras, exemplificado pelo desprezo por estruturas narrativas convencionais, o que é característico do movimento da Nouvelle Vague (GODDARD, 2014).

À primeira vista, o ponto central do filme reside na representação do colapso de um casamento e a, consequente, tentativa do personagem principal, Marc (Sam Neill), em compreender a situação que, desde o seu ponto de vista, não possui uma explicação lógica. Ao retornar de uma viagem de trabalho, Marc encontra sua esposa Anna (Isabelle Adjani) diferente e distante, o que é corroborado no momento em que ela lhe pede o divórcio.

Anna, então, começa a exibir comportamentos erráticos e perturbadores, desde automutilação, utilizando uma faca elétrica, até a negligência resultante do abandono de seu filho pequeno, Bob (Michael Hogben), em casa, sozinho, por horas. O ápice da insanidade de Anna se manifesta na icônica cena do metrô em que saem litros de sangue de todos os seus orifícios, criando um espetáculo gore com componentes que evocam cenas de possessão demoníaca de filmes de horror sobrenatural.

A busca de Marc por uma explicação para o desejo de separação de sua esposa, o leva até Heinrich (Heinz Bennent), o amante excêntrico e apaixonado de Anna. Enquanto isso, Marc se aproxima da professora de seu filho, Helen, – também interpretada por Isabelle Adjani -.

Finalmente, Marc descobre que Heinrich não era o principal responsável pelo afastamento demonstrado por sua esposa. É revelado que Anna mantinha em um apartamento secreto uma espécie de monstro com tentáculos, com quem mantinha relações sexuais recorrentes. Ao longo da trama, Anna mata pelo menos três pessoas com o intuito de proteger o Monstro e manter seu relacionamento em segredo.

O filme se encerra em um ritmo frenético: ao invés de um clima de conclusão, o desfecho inclui uma perseguição policial, explosões exageradas e trocas de tiros. A aparente morte de Marc e Anna nos minutos finais e a fuga do Monstro – agora com as características físicas de Marc – não fornecem uma explicação clara para a trama, exigindo uma observação minuciosa dos diferentes elementos apresentados no texto para sua compreensão.

  1. Dualidade

Um dos princípios que regem a análise narrativa assevera que o conteúdo de um filme não é um resultado imediato e sim construído (AUMONT e MARIE, 1990). Partindo da premissa de que Possession é recheada de simbolismos, a interpretação do texto depende da desconstrução e análise individual de seus elementos, ao invés de uma tentativa de compreender o enredo em sua forma integral de uma só vez. Dessa forma, esta análise procurará, por meio da escolha de fragmentos do texto relevantes para o desempenho de tal tarefa, se centrar sobre a discussão acerca de um tema interessante e muito presente na obra: a dualidade.

Primeiramente, é preciso mencionar o cenário escolhido pelo diretor como propício para o desenvolvimento de tal temática. Dado o período da Guerra Fria em que o filme foi produzido, o Muro de Berlim, colocado como pano de fundo em diversas cenas, fornece uma representação da divisão do mundo entre o ocidente capitalista e o oriente comunista, relembrando-nos, constantemente, a também separação do casal. Ao mesmo tempo, representa o choque entre a normalidade da Alemanha Ocidental – perceptível em locais que aludem à vida cotidiana dos personagens, como o café, as ruas movimentadas e o bar – e o muro, que nos recorda que a ameaça comunista e, portanto, ameaça à normalidade se encontra muito próxima, inclusive do casal.

Levantado o cenário, o tema da dualidade em Possession se revela na narrativa a partir de duas formas distintas: a dualidade em oposição e a dualidade complementar. Basicamente, em alguns momentos são mostrados dois personagens diferentes, porém com as mesmas características físicas – Doppelgängers[1] – com o intuito de evidenciar algum contraste existente entre duas personalidades, enquanto em outros momentos dois personagens diferentes podem ser utilizados para elucidar o desmembramento de uma mesma personalidade em duas partes.

Helen, como doppelgänger de Anna, exibe comportamentos e características que, de certa forma, parecem ausentes na figura de Anna. Helen é retratada como uma dona de casa exemplar, atenciosa, gentil e preocupada com Bob. Visto que Marc é a única pessoa que interage com Helen – com exceção de Bob, porém ele em nenhum momento menciona a semelhança física entre as personagens – e enxerga-a como fisicamente idêntica à Anna, é possível ler este fator como a manifestação do desejo de Marc de que sua esposa possuísse tais atributos.

Da mesma forma, podemos enxergar nos amantes de Anna características faltantes em Marc. Heinrich é “cheio de vida”, exótico, apaixonado e bajulador, em oposição ao seu esposo controlador e, em alguns momentos, abusivo. Já o Monstro é construído como uma manifestação da necessidade de Anna – e, de fato, ela o “pariu” na cena do metrô – de explorar sua sexualidade e seus desejos e apetites sexuais, uma vez que, como exposto ao longo do filme, Marc é incapaz de satisfazê-la por completo.

O doppelgänger de Marc aparece apenas ao final do filme e, diferentemente do de Anna, não serve apenas para contrastar com a personalidade do personagem principal. A réplica representa a união dos atributos dos dois amantes de Anna em uma pessoa só, ou seja, um Marc aperfeiçoado de acordo com as preferências e idealizações da mulher. Seus trejeitos e maneirismos remetem à figura de Heinrich, enquanto seu olhar perverso e sombrio, alude ao Mal, representado pelo Monstro tentaculoso.

Na esperança de reconquistar sua esposa, Marc provocou um incêndio criminoso para ocultar provas de crimes cometidos por Anna, matou Heinrich, fugiu da polícia e abandonou o filho. Totalmente o oposto de seu comportamento no início do filme. A substituição de Marc por seu doppelgänger[2], expressa a evolução do personagem rumo à imagem desejada e idealizada por Anna.

Além disso, o desespero de Bob frente à chegada do doppelgänger de Marc no apartamento nos minutos finais demonstra a natureza maléfica da nova figura que se parece com seu pai. Inclusive, é possível traçar um paralelo entre o medo de Bob neste momento em questão e a reação dos investigadores ao se encontrarem com o Monstro no apartamento de Anna anteriormente.

A questão da dualidade complementar é, também, expressa em Anna. Em um vídeo gravado por Heinrich, Anna conta, por meio de uma parábola, que se encontra dividida entre duas personagens que representam duas ideias opostas, porém irmãs: a Fé e a Oportunidade. Ao confidenciar essa história a Marc, aponta que quando deu à luz ao Monstro, ela “abortou” a Fé e ficou com a Oportunidade. Este momento esclarece o dilema principal de Anna, que a persegue durante grande parte da narrativa, entre ficar em casa e desempenhar seu papel de mãe de família, tendo fé de que isso será o bastante para satisfazer seus desejos e necessidades ou ceder à oportunidade de explorá-los através do Monstro (MACCORMACK, 2010, p. 104).

  1. Considerações Finais

Longe de ser suficientemente exaustiva, a análise aqui desenvolvida fornece algumas percepções que permitem interpretar o texto tendo em vista o tema da dualidade. A existência de Helen evidencia que Marc deseja uma dona de casa exemplar, submissa e honrada, enquanto a presença de Heinrich e do Monstro mostram que Anna deseja ter uma identidade própria que não seja definida apenas por sua relação com Marc e sua posição como mãe de família. Esta falta de sintonia entre ambos cônjuges é um fator relevante para se explorar o desmoronamento de seu casamento. No entanto, ao mesmo tempo, permite que levantemos questionamentos sobre nossa própria vida e identidade.

Possession acerta ao discutir todas essas problemáticas mascarando-se de um filme de horror. Os filmes de horror têm como principal qualidade a encenação de conflitos que giram em torno de nossos medos e desejos reprimidos (CLOVER apud GRBAVAC, 2016, pp. 1-2). Além de conseguir explorar a realidade do mundo (e de sua vida) em sua época, Żuławski utiliza a complexidade narrativa de Possession – e suas cenas surreais e oníricas – para expor a vida como um mistério, cuja resolução vai além da compreensão humana.

Referências

AUMONT, J.; MARIE, M. Análisis del Film. 1. ed. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1990.

CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS. Doppelgänger. Cambridge Advanced Learner’s Dictionary & Thesaurus, 2021. Disponível em: <https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/doppelgänger>. Acesso em: 10 outubro 2021.

GODDARD, M. Beyond Polish moral realism: The subversive cinema of Andrzej Żuławski. In: MAZIERSKA, E.; GODDARD, M. Polish Cinema in a Transnational Context. 1ª. ed. Rochester: University of Rochester Press, 2014. p. 235-257.

GRBAVAC, N. Monsters Within and Without: Reading Female Identity Through Monstrosity in Andrzej Żuławski’s Possession. Tese de Mestrado em Estudos Midiáticos: Mídia Nórdica. Oslo: Universidade de Oslo, 2016.

MACCORMACK, P. Mucous, monsters and angels: Irigaray and Zulawski’s Possession. Cinema: Journal of Philosophy and the Moving Image, Lisboa, 1, 2010. 95-110.

POSSESSION. Direção: Andrzej Żuławski. Produção: Marie-Laure Reyre. França/Alemanha Ocidental: Oliane Productions. 1981.

THE OTHER SIDE OF THE WALL: THE MAKING OF POSSESSION. Direção, Roteiro e Produção: Daniel Bird. Reino Unido: Bildstörung. 2009. TOTARO, D. An Interview with Andrzej Zulawski and Daniel Bird. Offscreen, 18, 5, 2014. Disponível em: <https://offscreen.com/view/an-interview-with-andrzej-zulawski-and-daniel-


[1] Na definição do Dicionário de Inglês de Cambridge, a palavra Doppelgänger aparece como alguém que é idêntico a outra pessoa – uma espécie de réplica – mas sem que exista qualquer relação entre elas (CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS, 2021). Acredita-se que essas réplicas idênticas representam, muitas vezes, o oposto de seus homólogos.

[2] Parece ambíguo se Marc de fato morreu e se a sua réplica é uma outra pessoa, se é ele mesmo ou se é o Monstro em sua forma mais evoluída. O ponto aqui é que, ao final do filme, o personagem Marc que foi estabelecido no começo da narrativa, não existe mais, tendo sido substituído por outro completamente diferente.

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