Confissões de um Cinema em Formação (2023), de Eugênio Puppo

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Por Vitoria Rocha

No último dia do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, tivemos a oportunidade de assistir a Confissões de um Cinema em Formação, filme realizado pelo diretor e pesquisador Eugênio Puppo. Muito mais do que a experiência do inédito de uma obra realizada no ano de 2023, o longa-metragem se apresentou como um desdobramento, dentre inúmeros, que significaram o retorno do Festival pós-pandemia e ainda, particularmente, a síntese de uma história apresentada pelo É Tudo Verdade: a de um cinema de processos. A narrativa de “retornos”, que nos foi bem apresentada de forma recorrente em muitas das obras visionadas durante o evento, não se definiu apenas como um estado de mudança temporal ou espacial, ou mesmo uma necessidade saudosista de rememoração. Mais do que um “outro dia eu volto” ou “estou voltando para casa”, o É Tudo Verdade foi um “voltar para voltar”, sobre o processo de retornar e não necessariamente sobre o seu destino. Neste sentido, um dos longas selecionados para concluir o evento entrou como um agradável contador (ou ensaísta) da história de um cinema em constante descobrimento de sua própria linguagem, que quanto mais avança, mais precisa retornar. E isso, em momento algum, significará um um declínio. 

Logo no início de confissões de um Cinema em formação, nos deparamos com uma descoberta. Uma das personagens, sentada em um sofá, lê alguns títulos dos capítulos de um livro do teórico francês Christian Metz, em geral não compreendendo grande parte do que lê, mas se contentando com o quê consegue. De uma forma muito sutil e até cômica, o diretor introduz o assunto enfatizando a descoberta do cinema, por uma pessoa comum, enquanto um objeto de estudo único, pesquisado por alguém e dissertado nas páginas de um livro completo. Essa sequência traz à tona uma constante declaração de senso comum sobre as artes e linguagens, de que estas são aptidões intelectuais quase “mágicas” que são dadas a seres humanos “especiais”, sem que se considere toda a atividade e empenho dos estudos teóricos, da pesquisa nas universidades e do esmero no aprendizado da prática do fazer fílmico. O cinema, que faz parte deste arcabouço, não escapa a estas afirmações e ainda encontra dificuldade ao se afirmar como uma linguagem extensa e complexa que pode ser estudada e descoberta constantemente em diversos sentidos e definições. Confirmando esta assertiva, Puppo não pretende realizar uma longa trajetória didática sobre a história do cinema brasileiro, nem criar um manifesto acirradamente político e muito menos homenagear alguém, sua premissa é estudar o cinema de um ponto de vista histórico e sob um discurso confessional e ensaístico, traçando a jornada do início de nosso estudo cinematográfico para apresentar como o ser humano olhou para si mesmo e se representou através da criação de imagens do seu próprio mundo, imaginário e real. Sua menor unidade é o participante dessa história que carrega uma memória viva, e que, através de uma confissão verbal, é materializado por um registro audiovisual integrante de uma longa e profunda história. 

De forma inteligente, o diretor une materiais de arquivo com relatos de pesquisadores, alunos e realizadores para falar sobre o desenvolvimento do cinema nacional partindo dos primeiros cursos da área no Brasil. Entre as deliciosas expressões de Ismail Xavier, Máximo Barro, Ana Carolina e diversos outros célebres convidados, o filme nos mostra como aprendemos a fazer cinema através de uma montagem que associa filmes e materiais de arquivo às diversas narrativas que são contadas, que, por sua vez, tendem a costurar o material audiovisual. Longe, novamente, de se parecer um material didático, os trechos de filmes que são apresentados não são colocados com o objetivo de criar uma relação com o que está sendo verbalmente exibido. (Tramadol) O propósito da imagem para Puppo está muito além de criar uma associação para um espectador inteligente se sentir ainda mais inteligente: ele usa a imagem para mostrar como determinadas pessoas estavam pensando o cinema dentro de formas específicas em algum momento da história. É desta forma que conseguimos olhar o cinema da década de 50 pelos olhos de Alberto Cavalcanti, por exemplo. O Brasil que precisava “fazer filmes brasileiros para o mundo”, em suas palavras, é um dos pontos de partida da formação cinematográfica no país e apresenta o início de um “intercâmbio de imaginários”, como uma motivação à construção do cinema nacional. A concepção de um imaginário que pudesse circular o mundo denota uma etapa de amadurecimento da linguagem pela qual a formação artística deveria ultrapassar para criar uma motivação. Isto significou a atividade de pensar narrativas, que antes de serem globalizadas, precisavam ser estudadas dentro de suas próprias fronteiras. É a partir destas apreensões que conseguimos entender os contextos de formação que tivemos ao longo do tempo.

No ano de 1954, o primeiro curso de cinema do Brasil é inaugurado: o Seminário de Cinema. Em um período em que o cinema já estava consolidado como uma manifestação artística e já possuía relevância no cenário industrial norte-americano, uma das primeiras relações de fomento desta arte em nosso país foi intensificada pela presença de uma cinefilia — nada mais do que cineastas em formação. Nosso primeiro passo no ensino foi estimulado pela Igreja Católica que identificou esta crescente e cooperou para o desenvolvimento de uma formação técnica, que serviu a interesses religiosos, mas também aprimorou a prática e até a atividade de cineclubistas. O estudo e a prática, como sabemos, expandiu os horizontes de muitos estudantes e a existência crescente de um grupo de intelectuais e cinéfilos tornou possível a consolidação de uma criatividade, que emergiu do reconhecimento de um imaginário social próprio e de imaginários estéticos de outros lugares. Neste sentido, Hélio Gagliardi e Marília Franco apresentam no longa-metragem de que forma o Neorrealismo Italiano estabeleceu de fato a escola de ensino de cinema no Brasil, por meio da influência. O reconhecimento da perspectiva crítica pensada pelos realizadores italianos foi um instrumento de assimilação sobre a edificação da indústria do cinema nacional, que já havia passado pelas produtoras Vera Cruz e Atlântida. À vista disso, a percepção conduziu as razões artísticas dos intelectuais e cineastas brasileiros a uma criação que, antes de tudo, estivesse voltada a uma motivação política, estética, social e embasada por uma reflexão emocional e teórica. Esta formação, já robusta e corporificada na face de muitos diretores que conhecemos e alguns convidados de Puppo no documentário, alcança seu ápice e certo clímax ao ser apresentado no longa com a ocupação da Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP), que em toda sua profunda manifestação estudantil, abrigou Glauber Rocha e Roberto Rossellini, tudo apresentado a nós pelos olhos da memória de Ismail Xavier. 

O retorno a todas essas memórias vivas no registro de Eugênio nos mostra todas as vezes em que o cinema foi descoberto em nosso país e aprimorado por um estudo teórico que o tornou uma necessidade humana e histórica de nossa sociedade. Confessar esta trajetória, mais do que ter algo a dizer, serviu como receptáculo de uma reminiscência até depois de partir, como mostram as alegres afirmações de Carlos Reichenbach. Mais do que apenas registrar como um amigo, Puppo organizou uma história de formação do cinema baseada na importância de aprender a ver o que estava sendo refletido sobre si mesmo e sobre pensar em como criar uma forma para isto. Todas as vezes que retornamos a isso, também estamos mantendo viva uma cultura de manifestação artística que não se limita à pura motivação emocional e nem a um pensamento único e imutável durante toda a existência de um pensamento cinematográfico. É assim que encontramos onde reside uma de nossas maiores capacidades: a de reunir valores de testemunhos em qualquer momento, sendo capaz de resgatar, a cada novo visionamento de um filme (ou o retorno a um antigo já visto), um contexto vivido e uma imagem de ser humano e mundo sempre em constante mudança. Confissões de um Cinema em Formação é uma carta de amor à história do nosso cinema, pois volta a si mesmo para responder e legitimar as questões de sua própria existência, e não coloca em si nenhum ponto final ao seus constantes descobrimentos, como uma entidade munida de erudição que não morre nunca.

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