
Por Victor Hugo Cruz Freire
Redação RUA
Dancing in the Dust (2003) começa com belos planos e uma montagem que chama atenção para si, dando pistas falsas para o espectador sobre o que esperar do filme, ao menos sobre o segundo aspecto citado. Quando a trama enfim se inicia, notamos que se trata de um desentendimento entre um casal: o marido, Nazar, está sendo pressionado para se divorciar de sua esposa, Rayhaneh. O filme não entrega de prontidão os motivos para a dita pressão. Ele nos permite visualizar, antes, Nazar discutindo com os seus pais, debatendo consigo mesmo e ponderando sobre a sua situação, para então nos revelar que o grande motivo é o fato da mãe de sua mulher ser uma prostituta. A família do noivo teme que essa relação termine por impactar a sua imagem, e esses pensamentos passam então a envenenar o cérebro de Nazar que, confuso, é forçado a escolher o seu futuro.
A partir disso, e da decisão de Nazar de prosseguir com o divórcio, ele se depara com outros problemas: não realizou o pagamento do dote de casamento para Rayhaneh, sendo esse um aspecto da tradição do casamento no Islã, na qual o noivo ou a sua família tem que pagar um valor acordado para a noiva. Além disso, também falta dinheiro para o processo do divórcio, e por fim descobrimos ainda que ele já havia se endividado para realizar o casamento.
Após uma série de contratempos, Nazar consegue oficializar o divórcio, mas antes havia prometido para a mãe de Rayhaneh que ainda pagaria o dote, e decide cumprir a sua promessa. Para tanto, o jovem rapaz começa a trabalhar em uma espécie de laboratório, mas logo descobre que poderia ganhar mais dinheiro capturando cobras no deserto, o que acaba tornando-se então, ao menos para ele, a solução para conseguir quitar todas as suas dívidas o mais rápido possível.
Nesse sentido, o filme tem como elemento fundamental para o seu desenvolvimento uma relação de amor. Nazar ainda ama Rayhaneh, e por ela toma, mesmo após o divórcio, as atitudes mais inconsequentes, se submetendo à situações de risco e também fazendo escolhas que apenas um desvairado de amor, acrescido do desespero e de uma dose de esperança, faria.
Interessante então se coloca a relação que Nazar desenvolve com o espectador. Funcionamos como o seu companheiro de aventura. Vemos o seu declínio para além da perda de prestígio social, indo até as suas dificuldades de origens médicas, e o odiamos durante a maior parte do caminho. O personagem é irritante, e exige do mundo um amparo que acreditamos que talvez ele não mereça. Nazar constantemente está pedindo auxílio para os demais personagens, ou então esperando que alguém decida lhe ajudar nos momentos de sufoco, mas é difícil tentar pensar em um motivo para alguém ser benevolente com o protagonista; ele é petulante, pidão e incapaz, o que por muitas vezes causa irritação.
Apesar de sua antipatia inata, Nazar se coloca como um elemento muito instigante dentro da trama. Isso se deve porque, para além, claro, de ser o protagonista e então ter mais tempo de tela, o personagem consegue, na realidade, realçar os demais, elevando o nível de sua participação. O contraste entre Nazar e todos os outros personagens que compõem a narrativa de Dancing in the Dust parece, em muitos momentos, ser um reflexo da forma como cada uma dessas personalidades representadas lidam com o amor.
Os pais do protagonista, já juntos há muitos anos, agem em comunhão, tendo os mesmos pensamentos, por mais que os expressem de formas diferentes. Rayhaneh, após ser informada do motivo completo para o divórcio, parece lidar com o sentimento por meio da decepção, quiçá frustração, sem expressar de forma muito acentuada o que se passa em sua cabeça e em seu coração, entregando em muitos momentos apenas um olhar triste. O homem velho que aparece no deserto e torna-se uma espécie de companheiro para o protagonista parece simplesmente sufocar o sentimento, tentando escondê-lo como uma memória do passado, mas que vez ou outra ressurge para incomodá-lo.
Todos os personagens parecem estáticos, lidando com o amor por meio das estratégias de solidez defensiva que criaram. Nazar, entretanto, é elétrico, movimentando-se entre um espaço e outro, gritando, exclamando para todos que querem ouvir — e também para os que não querem — as suas questões amorosas. O choque que as interações entre ele e os demais personagens gera é, em grande parte, o que causa o encantamento pelo filme.
Ainda nessa linha, outros elementos que auxiliam a compôr a narrativa são a posição da câmera perante os acontecimentos da tomada e o quanto a montagem nos permite ter acesso à cada uma delas. O que mais chama a atenção são os momentos de exceção. Quando vemos Nazar parado, conversando sobriamente ou quieto, somos impactados. Nesse sentido, destaco aqui três sequências: Nazar dormindo no deserto, parecendo ter sido vencido pelo mundo ao seu redor; Nazar no carro, conversando com o homem velho, sendo essa uma das poucas vezes que o vemos parecendo realmente refletir sobre a sua situação e também sobre as histórias que lhe cercam; e por fim, quando Nazar está no hospital, agora imóvel por suas próprias escolhas.
Em todos esses momentos, somos agraciados com o tempo. Nos é permitido sentir o impacto de cada uma delas. De certa forma, funcionam como momentos de respiro dentro da trama, demarcando que o que está por vir é algo novo, mas que por aqueles breves 3 ou 4 minutos estamos livres para apenas aproveitar as imagens e os sons da tomada. A montagem invisível, acrescida de um ritmo mais lento, parece valorizar o tempo, com ênfase nos momentos em que acompanhamos o protagonista também parado. Assim como ele está à mercê de sua condição, nós estamos à sua mercê.
REFERÊNCIAS:
DANCING IN THE DUST. Direção: Asghar Farhadi. Irã: Neshane, 2003. 1 filme (95 min.).