Crítica | Amor à Flor da Pele (2000), de Wong Kar-Wai

Por: Pedro Acadroli

Em Amor à Flor da Pele, a película é o concreto capaz de materializar os sentimentos

No filme, o mundo material impede a concretização do amor, assim como é o responsável por seu surgimento. Em cada plano, através da película, é onde o amor floresce e se materializa. O filme lida com essa questão da incapacidade dos personagens concretizarem seus sentimentos, ao mesmo tempo em que os objetos materiais e a maneira como estão dispostos no mundo, são tratados como a representação simbólica da situação dos protagonistas. O mundo diegético do filme é simbólico justamente por ser construído, por estar sendo filmado por uma câmera que se movimenta e enquadra esse mundo de maneira a transmitir, através das imagens, os sentimentos que se afloram.

A cena inicial da mudança na qual os objetos dos dois casais são trocados já anuncia a confusão que acontecerá entre seus relacionamentos. A traição entre os parceiros dos protagonistas, Srª Chan e Sr. Chow (Maggie Cheung e Tony Leung), é indicada pela forte sensação que o filme cria de que algo está acontecendo fora do alcance da câmera, mas que, ao mesmo tempo, está ocorrendo próximo a ela. Essa sensação é construída pela maneira como os parceiros são apresentados, pelos enquadramentos e movimentos de câmera: nunca são filmados frontalmente. Seus rostos nunca são mostrados, pelo menos não de maneira nítida. Muitas vezes os ouvimos fora de quadro, mas não os vemos, a câmera opta por filmar espaços vazios ao invés deles. Há também vários planos nos quais a câmera se comporta como se estivesse escondida, atrás de paredes e objetos de cena, em armários, justamente para pontuar que algo está sendo feito de forma oculta. Alguns movimentos são executados de maneira a revelar os espaços, partindo de trás de uma parede para revelar algo, como acontece no plano inicial em que a câmera filma uma parede e faz um travelling para a esquerda até revelar a personagem no corredor. Logo no plano seguinte, aparece a protagonista abrindo uma janela e meio que procurando por alguma coisa, já indicando que há algo escondido que irá ser revelado. Num primeiro momento essa sensação se constrói para pontuar a traição dos cônjuges dos protagonistas, mas posteriormente também se refere à relação escondida deles mesmos.

Existem duas cenas que valem a pena serem citadas nas quais as soluções de montagem reforçam algumas dessas sensações dos personagens. A cena em que os protagonistas se encontram no restaurante para contar a traição de seus companheiros é uma delas. No primeiro plano desse momento, a câmera os enquadra a média distância, posicionada atrás dos bancos do restaurante como se estivesse os espiando, o que indica a discrição do encontro. Entretanto, nos planos seguintes, a montagem alterna closes laterais de ambos para pontuar a igualdade da situação dos dois, que sabem da traição de seus respectivos marido e esposa. A outra cena é aquela em que a Srª Chan vai encontrar o protagonista em um hotel para ajudá-lo a escrever seus livros de ficção a fim de não levantar suspeitas. Nesse momento, a montagem pontua a indecisão da mulher através de vários planos dela subindo e descendo as escadas que levam ao quarto, inclusive dando a entender que ela tinha ido embora.

A situação que os protagonistas se encontram também é transmitida pelos enquadramentos, assim como pelos objetos de cena e pelas suas próprias roupas. Muitos planos re-enquadram os personagens através de objetos, criando uma sensação de aprisionamento e alguns deles têm “bordas” provenientes de objetos do mundo diegético, como se estivessem reprimindo o personagem. Também existem alguns que são construídos com “coisas” obstruindo a visão da câmera, situadas no primeiro plano da imagem, como grades e cortinas. Ainda em relação aos objetos, vale ressaltar a importância destes para o desenvolvimento da narrativa. São os pequenos detalhes que denunciam as traições: a bolsa e a gravata iguais que ganharam de presente de seus cônjuges, assim como os pequenos gestos de cada um dos protagonistas enunciam a paixão que surge entre ambos, são os movimentos de dedos e mãos, são os olhares.

Se a situação do relacionamento entre os personagens se vê refletida através de sutilezas da decupagem e de certos objetos de cena, é por meio dos figurinos que se evidencia a tentativa dos personagens de camuflarem seus sentimentos, tanto em relação aos outros como a si mesmos. As roupas, em determinados momentos se confundem com os espaços, com as cortinas e objetos (vestido florido com cortinas floridas, casaco vermelho com cortinas vermelhas), como se os personagens se camuflassem para não serem percebidos. Exemplo disso é a cena em que a Srª Chan decide jantar com os outros moradores da casa onde vive. O vestido florido dela se mistura com as cortinas, com as estampas dos abajures e das cadeiras. O Sr. Chow também se camufla em seu trabalho, com suas roupas sociais, para esconder através das aparências aquilo que sente. Essa questão da roupa é interessante porque é como se a protagonista usasse essas estampas floridas justamente para se confundir com os ambientes da casa e do trabalho, mas quando ela usa roupas sem estampas e de cores básicas como o vermelho, é uma indicação de seus verdadeiros sentimentos, como quando vai visitar o protagonista no hotel e usa um casaco vermelho por cima do vestido. Há uma certa inversão, o que está por baixo esconde seus sentimentos e o que cobre indica o que sente, ou seja, o casaco cobre a camuflagem e evidencia suas reais sensações.

Os personagens vão se confundindo com os lugares e objetos, se confundem com seus parceiros nas encenações que fazem e nessa confusão toda acabam se apaixonando. Se apaixonam ao encenarem a relação de seus parceiros na tentativa de entender como a traição começou. Esse conflito entre os casais cria situações interessantes como a cena em que a protagonista encena o momento futuro em que ela indagará seu marido sobre a traição. Como o filme sempre enquadrou o esposo de costas sem mostrar seu rosto, no início dessa sequência o espectador fica sem saber se é realmente o marido ou não, só é revelado a identidade do homem, que é o protagonista, quando um contracampo mostra seu rosto.

Os espaços dos apartamentos são essenciais na construção do relacionamento entre os personagens e também nessa relação do meio concreto enquanto representação opressiva da situação como um todo. Num primeiro momento os espaços das casas aparecem como uma espécie de prova material e memória viva da traição pela qual estão passando, tanto é que ambos se sentem sufocados em suas casas, sempre saem para comer fora. Posteriormente, entretanto, esses espaços são ressignificados, agora eles são prova material da paixão que surgiu entre os dois, pois eles criaram memórias nesses lugares. Exemplificativamente, como na cena em que a protagonista dorme na casa do Sr. Chow porque os outros moradores estavam jogando um jogo de tabuleiro até tarde. Por isso que ambos voltam para lá anos depois, a Srª Chan chega a comprar o apartamento onde morava. Por mais que esses espaços apertados tenham promovido a traição de seus cônjuges, foi por conta deles que a aproximação entre os protagonistas surgiu.

Estes “amantes” escondem seus sentimentos para não se tornarem como seus parceiros, seu amor nunca é concretizado nem mesmo por palavras. O concreto os oprime, por isso os enquadramentos por objetos de espaço, pelos lugares apertados (cena da parede entre os dois), eles escondem seus sentimentos até através de suas roupas. A mulher usa vestidos que a escondem até seu pescoço, por essa razão que o mínimo contato entre os dois é tão significativo. Outro ótimo exemplo é a cena em que a moradora idosa repreende a protagonista por estar saindo muito de casa. O vestido que ela usa cheio de pequenos furos que mostram um pouquinho da sua pele, simbolicamente indica que as pessoas estão desconfiando de algo, estão vendo através das aparências, estão vendo sua pele. Por isso, em um momento seguinte ela se camufla no ambiente ao acompanhar a senhora no jantar e nos jogos. O único momento em que o amor dos dois se corporifica no mundo diegético é no fim do filme, quando o protagonista sussurra seus sentimentos na parede, o que gera uma planta. Quando ele faz isso é como se estivesse “exorcizando” esse amor impossível, de alguma forma o amor precisava se materializar, se não fosse pela relação concreta entre os dois seria de outra maneira. E foi. Interessante que o momento de concretização do amor é o momento em que ele simbolicamente acaba. O fato do personagem externar seus sentimentos no buraco de um templo antigo evidencia essa tentativa de transmitir algo imaterial para algo da realidade concreta, ainda mais por ser um lugar histórico que guarda em suas paredes milhares de memórias de diferentes pessoas e povos antigos (pinturas e gravuras nas paredes).

Se o amor não foi capaz de se efetivar no mundo material do filme, pelo menos no que diz respeito a relação dos protagonistas que nunca se realizou, ele está presente em cada plano do filme, a imagem concretiza o amor. Um bom exemplo disso está presente no plano em que o protagonista está fumando em seu trabalho. A fumaça do cigarro funciona como uma espécie de transpiração de seus sentimentos, algo volúvel e imaterial. Essa sensação só é possível pelas escolhas de enquadramento que estiliza o momento, a imagem representa simbolicamente aquilo que o personagem luta tanto para esconder. Já as cenas em que toca a música tema do filme e os planos ficam em câmera lenta, são lampejos das sensações que os protagonistas tentam esconder por meio das aparências materiais. Para além desses momentos mais estilizados, os planos em geral tem essa presença do amor que floresce entre os protagonistas. O que as personagens não veem não escapa ao “olho” da câmera, que através de closes, planos médios, movimentos diversos etc., capta os sentimentos que nem as próprias personagens estão conscientes, como se desde o início a câmera já soubesse da paixão que nasceria entre os dois. A película, que forma em si a imagem, é o meio material no qual os sentimentos são capazes de se manifestar concretamente.

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