Um caminho duplo de interferência: reflexões sobre interações entre a linguagem cinematográfica e a linguagem do videoclipe

Rodrigo Oliva*

Resumo

Este artigo pretende discutir sobre possíveis interferências entre a linguagem do cinema e do videoclipe. Verifica-se, por meio do debate de questões temporais e espaciais, como se organizam as linguagens e como podemos pensar o audiovisual dentro de um contexto contemporâneo e tecnológico. No lado cinematográfico, serão analisados dois filmes do diretor Wong Kar-Wai, representante de um cinema híbrido e marcado por marcas da linguagem do videoclipe em seus filmes. Na abordagem do videoclipe, serão analisadas expressões do videoclipe pop que, centradas na narratividade, contam histórias por meio da criação de personagens e imagens cuja abordagem remetem aos movimentos estéticos do início do cinema, como o surrealismo por exemplo.

Introdução

Pensar a linguagem do cinema e a linguagem do videoclipe, na tentativa de encontrar relações, permite olhar para várias possibilidades de debates, discussões e de enfrentamentos. Diante desta perspectiva e de um caminho aberto a experimentações e amplo no sentido teórico, torna-se importante encontrar e aprofundar determinados temas e espectros deste possível processo de confluência das linguagens.

Sendo assim, neste artigo será focada a relação que se estabelece entre as linguagens por meio de geradores de discussões que moldam as produções audiovisuais no contexto atual e que, por outro lado, interferem em criações estéticas.

Para esta análise, o objeto será o cinema e o videoclipe, pensando suas linguagens como representantes de um caminho duplo de interferências.  Essas relações permitem encontrar pontos específicos de uma linguagem, sendo utilizados como recurso tanto estético ou narrativo em outra linguagem. Pensar neste diálogo abre lacunas para compreender a noção temporal que marca a ideia flutuante da linguagem videoclípica, que por suas características rítmicas são de fácil incorporação em estruturas narrativas e o caminho inverso, já que o cinema e todo o seu aparato de contar histórias permitiu que o videoclipe absorvesse os recursos narrativos como parte integrante de sua concepção de linguagem.

Desenvolvimento

Arlindo Machado, na década de noventa, sinalizava em seus textos os aspectos do diálogo entre o cinema e a linguagem do vídeo, que marcou a projeção e cinematografia de alguns dos expoentes do cinema na época, como Peter Greenaway, que fundamenta em termos históricos e da própria prática da produção audiovisual o encontro entre suportes, que geraram visualidades impressionantes e híbridas. “Muitos filmes produzidos nos últimos anos chegam a dar evidência estrutural a esse hibridismo fundamental ao audiovisual contemporâneo, na medida em que mesclam formatos e suportes, tirando partido da diferença de texturas entre imagens de natureza fotoquímica e imagens eletrônicas.” (MACHADO, 1997, p. 215)

Portanto, é importante perceber que naquele momento histórico os caminhos de interação entre as linguagens começam a potencializar transformações importantes na natureza estética e de produção audiovisual, que no decorrer dos anos, com o avanço dos recursos tecnológicos e das integrações midiáticas, começam a interagir e a revelar novos aspectos e possibilidades de organização da mensagem audiovisual. Tais caminhos híbridos são decorrentes do desenvolvimento da própria linguagem cinematográfica enquanto experimentação e tentativa de subverter o alicerce que foi implementado pelo cinema narrativo clássico. Estes caminhos tiveram início a partir dos seguintes eventos: com as propostas vanguardistas; com o cinema experimental da década de 50-60; com todas as novas possibilidades estéticas implementadas pela videoarte; pelo trabalho de cineastas como Jean-Luc Godard, que se apropria da linguagem do vídeo dentro da estrutura cinematográfica; com o surgimento da linguagem do videoclipe e as possibilidades estéticas de confluência das novas mídias com o cinema.

Neste cenário de confluências é que penso estar organizado o caminho de interações que permitem estabelecer conexões entre as linguagens do cinema e do videoclipe. Gilles Deleuze, na obra Imagem-tempo, sinaliza algumas impressões que podemos pensar ao analisar filmes que assumem, em determinados fragmentos, características e passagens que nomeio aqui de “videoclípicas”. Ao falar sobre a imagem sonho, ou a definição de imagem puramente ótica e sonora, o autor aponta para algumas características importantes que marcam uma ruptura com o tradicional modelo de cinema movimento, ou cinema ação, para momentos cinematográficos que deslizam sobre o tempo, a partir de outras possibilidades estéticas. Robert Stam, na obra Introdução às teorias do cinema, aponta algumas características do olhar de Deleuze sobre a natureza da imagem cinematográfica. Segundo Stam, “Para Deleuze, as tecnologias digitais aumentam as possibilidade de um cinema nômade. A organização panorâmica do espaço perde sua força e cede lugar à tela estendida como memória palimpséstica.” (2003, p. 187).

A ideia de palimpsesto marca o tempo na imagem do videoclipe, uma generalizada cadeia de imagens figurativas em múltiplas camadas, possibilidades e aspectos figurativos que dissociam totalmente a noção temporal e que, na análise feita por Deleuze, remetem a filmes do cinema vanguardista como Une chien andalou (Luis Buñuel, 1929) ou Entr’acte (René Clair, 1924), efeitos que de certa forma já haviam sido testados e amplamente pensados.

Para Deleuze, a noção tempo/espaço no cinema é marcada por um diálogo que se estende para fora da visualidade aparente do quadro ou do enquadramento. Tal conjunto de ideias que se formam dentro e fora deste local visível da imagem permitem reorganizar, por meio de efeitos estéticos, nosso entendimento da obra como uma geradora, como um processo em totalidade.

Num outro viés, podemos pensar a questão da montagem que intensifica a ideia do tempo. É por meio da montagem que será possível a criação de uma série de tratamentos estéticos criadores de uma gama de potencialidades expressivas. Assim, recursos de aceleração ou de slow-motion serão importantes para pensar como o tempo pode ser representado em sua natureza essencial, por meio de atitudes subversivas, mas que de certa forma ganham força e termos de representação.

Ken Dancyger (2003, p. 198) vai chamar este fenômeno de “Efeito MTV” e aponta algumas influências do estilo da linguagem do videoclipe na linguagem cinematográfica. Tais questões passam por uma discussão relacionada diretamente ao ritmo e à descontinuidade, que é possibilitada pela obliteração do tempo e do espaço. Segundo o autor, será o espectador que organizará o padrão de sons e imagens em uma progressão do pensamento, uma espécie de linearidade adaptada, mesmo que não esteja visualmente disponível na superfície fílmica. Para Dancyger, as escolhas do diretor passam por um tratamento diferenciado, no qual a utilização de planos mais fechados, como close-ups, fugindo de caráter puramente naturalistas, revelam o tom da diferenciação, o que permite dizer que exista uma interferência de aspectos da linguagem do videoclipe como efeito no filme cinematográfico. Outro aspecto será a utilização de teleobjetivas que desfocam personagens, espaço e o próprio tempo da imagem.

Tais recursos tecnológicos vão integrar no cinema as mais diferentes possibilidades de organização da linguagem. Ao focarmos o cinema contemporâneo, vamos verificar todo um processo potencial de articulações de efeitos que recriam espaços e detonam a lógica estrutural do tempo clássico da montagem disseminada pela narrativa linear.

(…) por força dos mecanismos de mediação tecnológica, cada filme torna-se uma teia de articulações sintáticas, formadas por associações e superposições de imagens, por janelas que se abrem, se opõem e se entrecruzam. Jogos criativos de edição eletrônica permitem a montagem meticulosa de cadeias de significantes estéticos, num efeito caleidoscópico sedutor e instigante. (GUIMARAES,  2005, p. 16)

Essas visualidades estéticas que surgem na integração das linguagens, principalmente com a linguagem do vídeo, acima citadas por Denise Guimaraes, formaram um amplo leque de possibilidades que vão interagir diretamente com o cinema, marcando traços característicos em algumas obras, como: A Última Tempestade (Peter Greenaway, 1991); Corra Lola, corra (Tom Tykwer, 1998); Timecode (Mike Figgis, 2000); Waking life (Richard Linklater, 2001); Valsa para Bachir (Ari Folmam, 2009). Todas consagradas pelo uso e integração de ideias e formatos estéticos ora pensados e projetados nos ambientes tecnológicos.

Análise das interações no cinema de Wong Kar-Wai

Para tal discussão, vou me ater ao cinema de Wong Kar-Wai, em particular a dois de seus filmes: Amores expressos (1994) e Amor à flor da pele (2000), como uma possível leitura que margeia esta interferência entre as linguagens cinematográfica e do videoclipe. Kar-Wai é um cineasta contemporâneo, nascido em Hong Kong, e particularmente de uma escola de cinema historicamente interessante, já que o país viveu até 1997 sob o domínio inglês e depois foi devolvido à China, diante de um tratado diplomático. Este fato marca um tratamento histórico interessante para a compreensão da identidade, mas não fundamentarei a análise por este viés e sim pelas características peculiares à estética dos filmes do diretor.

Amores expressos é um filme exemplar para compreender esta passagem, que integra a linguagem audiovisual por meio de confluências de mídias. O uso de câmeras de vídeo na mão, suplementares à de película, tornam híbridos tanto os processos de filmagens como os recursos estéticos projetados.

Na primeira cena de Amores expressos, vemos uma espécie de videoclipe, imagens aceleradas pelo efeito denominado de strobing slowmotion, que distorce o movimento e provoca a descontinuidade do espaço e do tempo.  Tais efeitos rompem os ideais clássicos da narrativa, pois permitem apresentar várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, o que nos dá a sensação de imagens sendo sobrepostas. Tal recurso é marcadamente utilizado por Kar-Wai neste filme, que marca a estética da velocidade. O tempo sendo perseguido em seus mínimos detalhes e máximas potencialidades.

No filme Amor à flor da pele, a influência da linguagem do videoclipe será mais explícita, pois Kar-Wai constrói momentos na narrativa, que serão apresentados como sendo passagens temporais marcadas pelo ritmo musical. São três as músicas características – uma delas é instrumental e as outras duas são de língua espanhola: Aquellos ojos verdes e Quizás, quizás, quizás.

Estas passagens, que denomino de videoclípicas, criam um efeito no filme, pois são marcadamente representadas por uma câmera em slowmotion ou câmera lenta. A edição dos planos acentuam o ritmo e o compasso musical. A primeira representação com este aspecto mostra a Sra. Chaw, personagem principal, de costas, indo até a sala, onde um grupo de pessoas joga. A cena é musical. Ela se posiciona atrás de um personagem homem, que aparentemente é seu marido. Vemos esta cena por meio de uma espécie de moldura. Neste momento, aparece outra mulher de costas. A Sra. Chaw deixa esta mulher passar. A mulher pede para o Sr. Chow sair do jogo num gesto de mãos. Nisto, ele sai e os olhares da Sra. Chaw e do Sr. Chow se entrecruzam. A Sra. Chaw se posiciona atrás do marido e a câmera persegue o movimento do Sr. Chow. Todo este movimento é sincronizado com a música e a montagem da cena em slowmotion. A câmera se posiciona em plano conjunto enquadrando a Sra. Chaw de costas e o seu braço nas costas do marido.

Em um outro momento, a cena se inicia com um plano da Sra. Chaw enquadrada  somente em suas pernas, com foco na vasilha onde ela compra macarrão. A cena é rítmica e todo o movimento em slowmotion. Ela desce as escadas, compra o macarrão, depois sobe. A personagem sai de quadro e a câmera enquadra a parede com uma luminária. Entra Sr. Chow com um jornal debaixo do braço e desce as escadas. A câmera passeia num movimento paralelo mostrando a textura das paredes e o espaço da escada por onde o personagem age. Em outro momento, a escada aparece como um elemento presente na narrativa, mesma música e o mesmo efeito de câmera lenta. Começa a chover, os dois esperam um pouco, ele fuma um cigarro e ela aguarda na venda de macarrão.

Estas passagens musicais ganham uma dimensão interessante, quando pensamos a ideia do tempo, pois caracterizam um efeito diferente na maneira como nos deparamos com a ideia do real, ou seja:, do tempo próprio ao tempo da imagem, ao tempo do fragmento, e sinalizando uma questão estética interessante da poética de Kar-Wai.

Outro aspecto importante, que marca a questão temporal do filme, é organizado pela utilização do figurino da personagem Sra. Chaw. Kar-Wai parece querer enganar o nosso olhar, por meio de uma quebra da continuidade temporal, o que verificamos diante da mudança no figurino da personagem.

No momento específico, que inicia com a música  Aquellos ojos verdes, os personagens  Sr. Chow e Sra. Chaw, por meio dos diálogos e pelas imagens em planos detalhes e closes, mostram que possivelmente seus cônjuges mantenham um relacionamento. Este momento do filme finaliza com os personagens caminhando e sendo enquadrados de costas, em plano conjunto. Os dois se questionam do momento em que os cônjuges se conheceram. Tudo isso é mostrado em slowmotion. Cessa a música, nota-se um salto temporal pela mudança de figurino da Sra. Chaw. A cena inicia com a projeção da sombra das personagens que caminham por uma rua. Ela  pergunta a ele se a esposa está em casa, ele fala que está dormindo e não desconfiará. Ele pergunta do marido e dispara uma indireta, Sra. Chaw fala que o marido não diria aquilo daquela forma. Mesma cena e mesmo texto. Nesse momento temos a impressão de que os personagens começam a simular uma representação. Mesma cena, ela quase diz sim para o convite do Sr. Chaw, mas desiste, dizendo que não consegue fazer aquilo. Em seguida, outra passagem videoclípica, no café, novamente com a mesma trilha. Eles simulam o que o outro gosta, como, por exemplo, a comida apimentada da esposa. A câmera se afasta e volta, em movimento de travelling. Aqui temos outro corte temporal, verificado pela mudança de figurino de Sra. Chaw, mas a música continua a mesma.

A música Quizás, quizás, quizás vai marcar outro contexto da narrativa, quando os dois personagens se encontram de uma forma mais intensa. Sr. Chow aluga outro apartamento, onde os dois se encontram para escrever um livro. Estas cenas são marcadas por um corredor rodeado de cortinas longas na cor vermelha, que, em profundidade, criam um efeito visual. Nestes momentos, a música é marcante e os planos próximos, a maioria de costas, em que os personagens se mantêm parados, mas que a câmera se movimenta, ora frontalmente ora enquadrando o personagem de costas.

Podemos verificar, na descrição destas cenas, que o Kar-Wai vai representar aspectos internos na narrativa, por meio de passagens que são articuladas de uma maneira rítmica e organizam a estrutura narrativa de uma forma diferenciada, o que acentua o estilo e a aproximação com a linguagem do videoclipe.

Um olhar para a hibridização das linguagens do cinema e do videoclipe

Neste caminho de influências das linguagens, podemos perceber que a contribuição via hibridização das linguagens apresentam marcas e visualidades características de uma linguagem dentro de outra. Existe uma complexidade ao afirmar tais possibilidades dentro de uma estrutura extremamente ampla de possibilidades e recursos tecnológicos e estéticos na construção das poéticas audiovisuais. Verificar esses detalhes na obra de Kar-Wai é simplesmente traçar um recorte, porém é possível perceber tais marcas nas obras de outros cineastas contemporâneos.

Do outro lado, teremos a linguagem do videoclipe, logicamente ancorada nos tempos atuais, que vai intensificar alguns aspectos importantes que foram traçadas, principalmente pelos videoartistas como Nan June Paik e caminhar por meio de experimentações e ideias subversivas, ligadas ao universo jovem, a liberdade das atuações em raves e, particularmente, a uma imagem visual e sonora extremamente sinérgica. O que vale é a exploração do sensório.

O triunfo do videoclipe aparece como uma das ilustrações do crescente domínio da lógica do marketing na indústria do disco, na hora do hiperconsumo. Difundir música e canção filmada não é mais suficiente: agora a música deve se combinar com um visual que funciona como moda e cinema, marca e estilo. Não mais a simples imagem do cantor, mas uma criação visual feita de “desconstruções” em série, destinadas a criar um posicionamento distintivo, uma “imagem da marca” para um público jovem ávido de sensações, look e originalidade. (LIPOVETSKY, 2009, p. 276)

Gilles Lipovetsky contextualiza essa influência de ambas as linguagens, pontuando uma lógica que ele denomina de hipermoderna, pontuada pelo ritmo em detrimento das ações naturalistas. Portanto, para o autor, o videoclipe tornou-se como que uma expressão curta, mas exemplar desta lógica (LIPOVETSKY, 2009, p. 278). Tal imagem caracteriza-se pelo excesso, com efeitos especiais, fragmentações e multiplicações.

Não havendo uma necessidade narrativa, o videoclipe apresenta-se como possibilidade experimental. Lipovetsky aponta tal fato como uma ironia, pois, na década de 50, o cinema experimental havia postulado tais ideais, como os filmes de Maya Deren, por exemplo.

Com a diferença que (…) escapa à necessidade linear do discurso-exposição, ao imperativo de coerência do encadeamento dos planos. Sem exigências narrativas, o clipe se oferece como puro bombardeio sonoro e visual, desconstrução levada ao extremo, sucessão de imagens-flash, como relâmpagos visuais que, nos clipes tecno, chegam a fazer desaparecer propriamente a imagem mimética: Ironia hipermoderna: o mais comercial faz agora o que fazia, um tempo atrás, o cinema mais experimental.  (LIPOVETSKY, 2009, p. 278)

Verifica-se que a música no cinema é acompanhada como uma forma de sentir a história, tendo uma abordagem extremante rígida para dar unidade e clima ao filme. “No entanto, o clipe conta uma história, por mais confusa e fragmentada que seja, cuja trama tem a ver com a canção: é onde se mantém a ligação com o cinema enquanto narrativa-em-imagens” (LIPOVETSKY, 2009, p. 279).

Este caráter de hibridização da linguagem audiovisual, historicamente, vai ter na linguagem do vídeo algumas das marcas iniciais, pois recursos de mixagem das imagens, justaposições e sobreimpressões serão apresentadas como possibilidades estéticas. Segundo Belour (1993), a imagem videográfica foi capaz de atrair, absorver e misturar todas as imagens anteriores como a pintura, a fotografia e o cinema.

Erick Felinto (2006, p. 419) aponta que a hibridização dos suportes e das linguagens convida a recepção a participar mais intensamente, já que atualmente existe uma demanda por experiências de natureza sensorial. Estamos na época da experimentação. Imagem não é suficiente, o que leva a pensar em algumas possíveis experiências, como o cinema expandido, que promovem toda uma gama de sensações extra-diegéticas. Tais marcas estão presentes neste contexto atual, por onde caminha o cinema, o videoclipe e os processos digitais.

Em sua extrema flexibilidade, a imagem digital permite um grau de manipulação inacessível ao analógico – e, portanto, em alguns sentidos, capaz de absorvê-lo. Essa flexibilidade deriva, essencialmente, de sua descontinuidade. Formada por pixels que podem ser controlados individualmente, ela não se submete à continuidade e unicidade do analógico, muito mais difícil de ser manipulado. Essa possibilidade de controle absoluto dá origem a certos discursos que proclamam a onipotência do digital. Não existiriam limites para a imaginação do artista explorador do digital. Não existiriam limites para a imaginação do artista explorador dessas novas tecnologias, afirma-se com bastante frequência. Essa sensação de onipotência não constitui atributo exclusivo do criador, mas também do espectador (FELINTO, 2006, p. 415).

Como citado anteriormente, no final da década de noventa Arlindo Machado aponta algumas reflexões sobre a linguagem do videoclipe. Segundo o autor, o videoclipe pode ser considerado um formato de baixo custo, porém de intenso potencial de distribuição, o que verificamos agora, pois antigamente ele estava preso a canais de televisão específicos, como a MTV. Atualmente, o clipe se prolifera no Youtube e sites blogs específicos de projeção videográfica. Mas o que chama atenção do autor é a natureza do vídeo, segundo o qual, a ideia de subversão e originalidade é levada a extremos, diante de uma linguagem que inicialmente se marcava por um caráter exclusivamente de apresentação musical, por meio da imagem das bandas. Machado contextualiza tal fenômeno a partir de exercícios audiovisuais ousados. Passados dez anos e confrontando com a citação de Erick Felinto, percebe-se que as possibilidades digitais permitem novos arranjos e estruturas cada vez mais experimentais e ousadas.

Outra tendência importante do atual videoclipe é o abandono ou a rejeição das regras do bem-fazer herdadas da publicidade e do cinema comercial. O que vale agora é a energia que se imprime no fluxo audiovisual, a fúria desconstrutiva e libidinosa que sacode e dissolve formas bem definidas impostas pelo aparato técnico. Nada daquele controle de qualidade que poderia imprimir ao produto a chancela de um acabamento industrial. Em lugar da competência profissional ou da mera demonstração de um bom aprendizado das regras e truques do feudo audiovisual, agora presenciamos o retorno ao primitivismo deliberado, à imagem suja, mal iluminada, mal ajustada, mal focada e granulada, o corte na rebarba, a câmera sem estabilidade e sacudida por verdadeiros terremotos, todas as regras mandadas para o vinagre e todo o visível reduzido a manchas disformes, deselegantes, gritantes, inquietantes (MACHADO, 2000, p. 177).

Por outro lado, algumas tendências voltam a aparecer. Ao analisarmos clipes como Judas (Stefani Germanotta e Laurieann Gibson, 2011), Alejandro (Steven Klein, 2010) ou Telephone (Jonas Akerlund, 2009), da cantora Lady GaGa, vamos verificar uma presença narrativa interessante. Nos primeiros momentos dos clipes, a música já não é expressa de início, temos uma pausa. Teremos um filme particularmente parecido com um curta metragem, que nos situará na inclusão de uma narrativa por onde a personagem, vivenciada pela cantora, irá atuar.

Interessante verificar que tal marca já fora historicamente apresentada em clipes anteriores como no Black or White (John Landis, 1990) e Thriler (John Landis, 1982), de Michael Jackson, porém na contemporaneidade ganham expressões nítidas dentro do contexto das cantoras pop. A partir de GaGa, as cantoras pops apresentam seus videoclipes com o mesmo formato “cinevideoclípico” (Rihanna, em We found love [Melina Matsoukas, 2011], e Britney Spears, em Criminal [Chris Marrs Piliero, 2011], por exemplo).

Tais videoclipes colocam as cantoras como atrizes representando papéis, em sua maioria, polêmicos. Tais marcas do comportamento das cantoras, às vezes, ficam sobrepostas aos recursos pirotécnicos das imagens. No clipe We found love, a personagem de Rihanna é extremamente subversiva e ao mesmo tempo sensual e angelical. Ela rouba, briga com o namorado, vive uma vida desregrada, por outro lado brinca com o namorado numa pista de skates e aparece caminhando num campo de trigo bucólico. No campo visual, o videoclipe vai mostrar imagens curtas, que dão ritmo, que representam fogos de artificio, explosões, pupilas dilatando, comprimidos. Imagens que remetem puramente a excitação e sensações. Apesar de toda essa imersão em imagens, iremos encontrar uma narrativa clara na atuação da cantora como uma personagem.

Nos videoclipes de Lady GaGa temos a mesma construção. Detalhes e fragmentos estéticos bem elaborados, que amarram esta estrutura narrativa, mais precisamente a personagem vivenciada pela cantora, nos dará margem para compreender nitidamente uma estrutura de narração que se ancora no espaço e no tempo. No início do videoclipe Telephone, por exemplo, são apresentados letreiros como no cinema, marca dificilmente utilizada como recurso nos videoclipes. Tal texto tem um apelo estético parecido com os dos filmes do diretor Quentin Tarantino. No videoclipe Criminal, da cantora Britney Spears, esta marca é mais evidente, pois o videoclipe é apresentado como se fosse um filme de cinema.

Por outro lado, a linguagem do videoclipe ainda é marcada por constantes trabalhos que mantém aspectos experimentais e ousados, como os videoclipes recentes da banda Scissor Sisters. Invisible Lights (Nicolás Mendéz, 2010) é um arranjo musical e imagético rítmico interessante, que revela uma subversão narrativa e cronotrópica, ou seja, dá ideias de tempo e espaço numa aproximação com as experiências do cinema surrealista e do cinema de vanguarda. Neste clipe, veremos um mosaico de imagens delirantes totalmente voltadas para expressão dos desejos, um trabalho poético incrível com imagens e estruturação narrativa que levam o espectador, por meio de associações de imagens, a compreender os efeitos e a produção de sentido.

Considerações Finais

Por meio desta abordagem é possível verificar, nos estudos da linguagem audiovisual, conectividades em aspectos determinantes da construção dos filmes. Estes caminhos abertos a interferências de certa forma reafirmam o caráter híbrido das linguagens e as amplas aberturas para que as criações se estruturem de forma conjunta. Tanto a linguagem cinematográfica como a linguagem do videoclipe são produtos da nossa contemporaneidade, porém o cinema, que tem um trajeto de maior profundidade visual e histórica, se renova diante de novos arranjos e possibilidades estéticas, cujos efeitos podemos perceber na absorção de influências de estilos.

Não é possível dizer que o cinema é videoclipe e nem que um videoclipe é cinema. Mas ao verificar no fragmento e nas obras citadas, em ambas as linguagens, podemos perceber determinados pontos comuns que abrem possibilidades de leituras e de influências. Estes pontos constituem-se como marcas e criam visualidades expressivas que caracterizam as linguagens dentro de um contexto tecnológico e neomidiático que permite tais experimentações e junções. Neste sentido é que se apresenta o caminho duplo de interferências entre as duas linguagens apresentadas.

*Rodrigo Oliva é doutorando em Comunicação e Linguagens do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná.

Referências Bibliográficas

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DANCYGER, Ken. Técnicas de edição para cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosaic&Naify, 2004.

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GUIMARAES, Denise Azevedo Duarte. Comunicação Tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.

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STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.

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