CRÍTICA | Cavalo (2020), Rafhael Barbosa, Werner Salles Bagetti

Por: Vitor Hugo Pereira

Redação RUA

     Entre suas inúmeras especificidades, o cinema possibilita a integração de várias artes em sua forma, como a composição de imagens, a música pelo som e a dança pela captação de movimento. É dentro dessa lógica integradora que Cavalo (2020), de Rafhael Barbosa e Werner Salles, propõe uma união desses três elementos a partir da ancestralidade africana no Brasil, tendo como palco as ruas e terreiros de Alagoas.

  Os diretores já traziam a relação com a espiritualidade em religiões de matriz africana em suas obras anteriores, como o documentário Exu – Além do bem e do mal (2012), de Werner Salles. No entanto, Cavalo tem uma outra especificidade: é o primeiro longa-metragem de Alagoas a ser produzido inteiramente por meio de editais de financiamento público. Sendo assim, o espaço cultural alagoano ganha destaque. A obra aborda o cotidiano de sete dançarinos e artistas, que preenchem o filme com suas performances pelas ruas e espaços públicos, ocupando com o corpo em movimento os lugares históricos e afetivos na vida de cada um.

    O título faz referência aos “cavalos”, nome dado às pessoas capazes de receber e incorporar entidades nas religiões de matriz africana. Os indivíduos com essa aptidão compartilham seu corpo e sua mente com as entidades, que são recebidas no plano terreno a partir dos movimentos corporais, da dança e da música.  O tema da tradição religiosa e cultural é retratado na perspectiva desses indivíduos, seja pelos seus relatos sobre as incorporações, ou pelas sequências de dança, que expressam não por palavras, mas por movimentos, a experiência e o sentimento de receber tais entidades. 

    Desse modo, a obra ganha força ao unir sequências documentais, ficcionais e musicais como um mosaico de imagens que não explicam essa tradição, mas que sugerem o que ela expressa para aquele povo; é o hibridismo da forma refletido no hibridismo corpóreo dos dançarinos, que compartilham sua mente e corpo com as entidades. Os momentos ficcionalizados e documentais abordam momentos-chave na vida dos “cavalos” que os levaram aonde estão hoje; a parte musical os une, pois é na música e na dança – unidas pelos rituais – que eles se sentem pertencidos a um mesmo espaço e tempo.

     A relação com os elementos da natureza também é intensificado pela dança numa mise-en-scene que busca aproximar ser humano e natureza como um só corpo: cenas com dançarinos se utilizando de movimentos “fluidos” assim como a água e até mesmo sobre a água ao som sugestivo de pingos de chuva e ondas, permeados de tons aquosos; ou então as oferendas feitas na terra sob a luz do fogo, com cortes secos e movimentos rápidos, intercalados por performances que se utilizam de sombras. A partir dessa união de elementos naturais, o filme se aprofunda na religião. Toda a obra é atravessada pela relação daqueles indivíduos com os orixás e a criação do humano, visto tanto no início do filme, com a narração do mito da criação como também em cenas que se utilizam da cor de determinados orixás e seus respectivos elementos, como a cor roxa que representa a orixá Nanã, aparecendo em uma cena entre os rios e lamaçais, tendo o barro (terra e água) como seus elementos representativos.     Ao abarcar todo esse arcabouço sociocultural e religioso, Cavalo apresenta reflexões sobre a ancestralidade – muito presente nas religiões afro-diaspóricas – e memória, pois resgata, por meio da dança, união de som e de gestos, a história de um povo que atravessa não só o oceano, em relação às matrizes africanas, como também questões étnico-raciais, culturais e de preservação histórica.

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