Por: Gustavo Ramos Ribeiro
Redação RUA
A princípio, a série animada começa como uma antologia de histórias da vida do protagonista, que conta a história do autor e suas diversas crônicas do dia a dia, e sua consciência na forma de um tatu sarcástico que sempre tem uma crítica ou um comentário ríspido sobre as atitudes de Zero, bem intencionado, mas sempre passivo-agressivo.
As histórias contadas se comportam como uma contextualização sobre quem é Zero e como sua personalidade foi formada, da infância até a vida adulta e o que motiva suas escolhas, além de apresentar a audiência aos outros personagens da série, os 3 amigos mais próximos de Zero: Sara, uma amiga que age como a voz da razão, sendo bem mais tranquila com a vida e tendo o sonho de ser professora, Secco, o amigo que age sem preocupação com nada, ganha sustento de partidas de poker online e tem uma vontade obsessiva por tomar sorvete, o que vira uma espécie de bordão, mas não se torna nem um pouco repetitivo, pelos diversos contextos que é lançado e por fim a personagem mais importante para a história da série, Alice, uma amiga que Zero conheceu na adolescência e sempre teve um interesse, porém pela falta de atitude e pela falta de percepção do mesmo nunca houve nada, Alice também é uma pessoa a quem Zero acaba sempre conversando e se identificando na jornada pela vida, tendo um ponto de destino mas não sabendo por onde andar para chegar, e sempre estando, de acordo com o protagonista, à deriva, mas Alice já é uma figura distante na memória de Zero, de um ponto em que suas falas acabam sendo com uma voz de robô, menos no último episódio.
O formato de Antologia da série compartilha espaço em seus episódios com uma história do que acontece no que seria o momento atual da série, que se inicia a partir da segunda metade do episódio, uma escolha de direção da série que por mais que inesperada, funciona muito bem, de um ritmo bem fluido mas nunca apressado consegue muito bem em seus 15 a 20 minutos dizer para a audiência a crônica do passado de Zero e ao mesmo tempo conta sobre o que está acontecendo no momento, de forma conectada e transições entre as duas frentes sempre natural, a nível de fazer com que a reflexão do passado do episódio acabe sempre voltando a história atual, como por exemplo no quarto episódio mostrando a origem da ansiedade sobre pontualidade e imprevistos de Zero que começou após um incidente de escola, onde a professora brigou com ele e uma coleguinha de sala, e após cair no papo de um colega preconceituoso que disse que a colega de Zero, o amaldiçoou, já que esse menino possuía um preconceito sobre ciganos, e sendo uma criança ansiosa Zero acreditou a vida que isso era o motivo de seu asco ao conceito de pontualidade, e após sua amiga Sara mostrar a estupidez dessa repulsa e a suposta “maldição”, o protagonista acaba refletindo com sua consciência e fazendo as pazes com isso.
Cada episódio abordando uma espécie de preocupação, sendo sobre Masculinidade, Mudanças, Responsabilidade afetiva e sempre levando o tema comum sobre responsabilidade mostra uma vida adulta de uma pessoa comum, de uma forma bem aberta, não demonstrando vergonha em nenhum momento e mostrando momentos bons e ruins de forma nua e crua da vida de Zero, mostrando frustrações e escolhas das maiores até as mais mundanas, todas sobre o filtro da consciência de Zero, apresentando uma dinâmica bem interessante sobre a pessoa mais emocional e ansiosa que o personagem é em contraste com o Tatu tentando sempre sair por cima e preocupado com como é percebido.
Dinâmica essa que torna cada reflexão do personagem mais excitante de ouvir, mostrando seus defeitos e agindo como se o espectador escutasse diretamente de uma conversa com o autor, que colocou seu coração no papel, mostrando realmente como passou por cada evento citado e compartilhando visões de mundo e problemas de vida enquanto tudo isso se torna ainda mais divertido de assistir com o auxílio da linda e única animação da série, seguindo por uma forma bem mais cômica, seguindo o estilo de arte que o autor tem em seus quadrinhos e lembrando esse estilo de arte, com traços mais sujos e paletas de cores saturadas, torna um espetáculo visual pela forma tão singela que é desenhada e expressada, dando vida às metáforas usadas e mostrando uma perspectiva visual sobre as viagens pelas linhas de raciocínio de Zero.
Outra temática que é aprimorada visualmente pelo estilo de arte da série é o plot atual de cada episódio, mostrando que Zero e seus amigos Sara e Secco estão fazendo uma viagem de Roma até Biella, e se hospedando na casa de um casal de idosos, por motivos que são escondidos do espectador até o final do penúltimo episódio, em uma cena bem chocante que pega a audiência de surpresa, na qual após Zero escovar os dentes e ter uma cena fofa com os velhinhos que os receberam em casa, o mesmo conversa com seu amigo antes de dormir sobre estar desconfortável em dormir ali, onde da forma mais sem escrúpulos Secco diz que ao menos estão no quarto de hóspedes, enquanto Sara dorme no quarto de uma morta, e assim revelando que estão ali para o funeral de sua amiga Alice, que cometeu suicídio.
Seu último episódio é bem emocionante, após o baque que o espectador leva no último minuto do anterior, digere a informação junto com a melancolia das cenas a seguir, enquanto acompanha o fluxo de pensamentos de Zero, puxando um assunto aleatório para não pensar no principal, assim como mostrado em episódios anteriores, mas no final dessa, temos algo que causa um outro baque, os amigos de Zero e os personagens ao redor, que em episódios anteriores suas vozes são feitas pelo protagonista, tentando replicar o tom de voz, dessa vez estão com suas vozes de verdade, fazendo assim com que o espectador esqueça do formato anterior e fique na ponta do assento enquanto espera pelo desenvolvimento do episódio.
Esse que mostrando a profundidade emocional implícita da animação, põe tudo pra fora num clímax maravilhoso de assistir, confrontando todas as mentiras que Zero se contou a vida inteira, olhando com o Tatu, sua vida em outra perspectiva, enquanto toma um choque de realidade graças a seus amigos, finalizando a série quando ouvimos pela primeira vez a voz de Alice em uma gravação no enterro, deixando os últimos 10 minutos com um peso emocional altíssimo que se desenvolve na última cena do grupo de personagens seguidas da última reflexão de Zero, que percebe o quanto o medo de percorrer seu caminho e rasgar a entrelinha pontilhada é estúpido e o barrou de viver melhor, ao mesmo tempo que perde sua atitude egocêntrica e ansiosa.
A maturidade com que a animação trata sobre problemas da cabeça e do coração como culpa, ansiedade e até seu tópico mais polêmico, o suicídio, deixa claro como a vida é difícil de percorrer, mas não se deve ter medo de rasgar o papel, pois a entrelinha pontilhada de ninguém é rasgada perfeitamente, a parte da vida que observamos de cada pessoa é apenas uma parte, e todos são mais complexos do que nossos olhos podem ver, esse recado final que a série dá, algo que aprendemos com Zero, demonstra a coragem da série, escolhendo mostrar a sujeira e os defeitos inertes à qualquer ser humano, com sensibilidade pra dizer que ainda assim, pessoas são complexas demais para serem reduzidas a apenas uma perspectiva, e a preocupação com o futuro é algo natural, portanto apenas aja, rasgue sua entrelinha, mesmo que o formato não esteja traçado.
Usando a metáfora que a série introduz por Sara: “somos apenas pedacinhos de grama”, frase essa que concentra a sensibilidade da série em tirar o peso do pensamento que estamos performando sob um holofote, trazendo uma perspectiva menos imediatista e mais calma sobre o ato de viver e ao lado de um estilo de arte único e um excelente trabalho de som, torna essa série uma obra única, que passa voando, começando e terminando de forma tão fluida que quando prestamos atenção, já estamos no último episódio.