Crítica | Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022), de Daniel Kwan e Daniel Scheinert

Por: Isabella Brêtas

Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo: a arte do excesso

E se não tivéssemos medo de criar? Imagem, som, luz, cenário, figurino, movimento, toda a linguagem cinematográfica está posta com uma infinidade de possibilidades de criação para além da estrutura clássica realista à qual estamos habituados. Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, a título de destaque, serve-se dessa linguagem em toda sua potencialidade, explorando de forma criativa e inovadora todos os recursos do se fazer cinema no mainstream.

A construção rítmica e visual do longa faz juz ao seu nome: somos bombardeados com uma excessividade de informações, acompanhando a rotina caótica e sobrecarregada de Evelyn Wang, ao passo que a ruptura do multiverso começa a externalizar o caos da protagonista. Evelyn é uma imigrante chinesa que tenta conciliar a administração da fracassada lavanderia da família com seu papel de mãe e um casamento que aguarda o divórcio iminente; ela é responsável pela família, pelos negócios e também pela falha de ambos. A dificuldade de se integrar o trabalho, as relações familiares e as próprias motivações é tratada com delicadeza em meio a inventividade de sci-fi e da fantasia. Nesse contexto, a abordagem do multiverso abre um leque de oportunidades de dinamismo narrativo e visual raramente explorado com tanto entusiasmo, bom gosto, liberdade e sensibilidade.

Os Daniels não têm medo de abusar da aleatoriedade em prol da significância e dinamicidade narrativa. Ao ser confrontada com o Waymond Wang de outro universo que toma o corpo do seu marido, Evelyn descobre o Alphaverso, onde foi desenvolvida a tecnologia para projetar a sua consciência no corpo de suas versões de outros universos, chamado de “saltos”. No entanto, para alcançar a probabilidade do impulso, é preciso executar uma ação bizarra e altamente improvável. Essa única ideia permite o uso ilimitado da criatividade dos criadores. Assim, nesse multiverso, tudo é possível: saltos em universos por fones de ouvido, agentes assassinas da receita federal, mindinhos com superforça, salsichas no lugar de dedos, entradas secretas para BDSM, guaxinins cozinheiros, rochas falantes, buraco negro em forma de donuts.

Nada disso seria possível sem o trabalho impressionante e preciso da montagem e da direção de arte. A montagem dignamente aclamada leva o conceito de multiverso para a forma cinematográfica, utilizando uma mistura de gêneros, colagens, recursos figurativos, efeitos especiais, estilizações, entre outros para transmitir a ideia de multiplicidade. Toda a forma do filme é fluída: mudamos de gênero, influenciados pelo cinema asiático, como filmes de Kung Fu e do cinema chinês clássico de Wong Kar Wai; de estilo, indo do live action até a animação e colagem; e transitamos até mesmo de tamanho do frame, uma fragmentação que nos conecta à transição de mundos que os personagens experienciam. Cada vez que Evelyn adentra nessa fragmentação pelo poder, o filme acompanha a intensificação desses recursos.

Os figurinos, em complemento à personalidade do longa, são exuberantes e transitórios. O poder de onisciência universal de Jobu Tapaki, versão do Alphaverso da filha de Evelyn, Joy, é transmitido principalmente pela caracterização física da personagem: tanto entre como em cenas o figurino e a maquiagem mudam constantemente, parodiando figuras, personalidades, estilos e abusando da abstração, sempre com maquiagens coloridas e psicodélicas. A aleatoriedade, bizarrice e presença simultânea na multiplicidade dos universos estão intrínsecos na personagem por meio dessa caracterização dinâmica, contrastando e destacando a mentalidade niilista da antagonista.

Em meio a tanto excesso, tanta loucura, tanta aleatoriedade, a trama principal se baseia na simples relação entre os membros da família Wang. Os personagens e suas emoções, ora tão cotidianas, ganham uma nova dimensão dentro do sci-fi, de forma que seus anseios, sofrimentos e alegrias viram de importância universal. A relação entre mãe e filha de imigrantes chineses, explorada em outros filmes de sucesso como Turning Red (2022), é a principal movente dessa trama. Jobu Tupaki, agente do caos e destruidora dos universos, nada mais é do que a consequência da inadequação de Evelyn com as necessidades da filha LGBT+, e de seu próprio conservadorismo e de seu pai, que lhe abandonou quando foi para os Estados Unidos. Joy, por causa do controle da mãe, mesmo em outro universo, foi condenada a experienciar tudo, a se fragmentar mentalmente e fisicamente entre os infinitos universos.

Tendo isso em vista, elementos marcantes e decisivos que em um primeiro momento podem parecer aleatórios — como os olhinhos de plástico de Waymond ou o donut gigante criado pela filha — carregam grande significado. O donut, de centro branco e borda negra, e os olhinhos, com o centro negro e a borda branca, são referentes ao símbolo de yin e yang e, igualmente, refletem o estado dos dois personagens mais próximos de Evelyn. Yin, os olhinhos de plástico, dão vida a tudo que tocam; significam enxergar a beleza, o amor e o significado da vida, frequentemente rejeitados por Evelyn em sua amarga rotina. Yang, a rosquinha, é o oposto: é vazia, carrega o sentido de destruição, pessimismo, a completa falta de sentido. Assim, enquanto Waymond se demonstra uma pessoa sensível e carinhosa, que recorre à gentileza mesmo ao pedir o divórcio, Joy sucumbe ao desespero, criando a rosquinha como último recurso para se auto aniquilar.

E tudo leva ao ponto de todo esse caos: a família. Mais do que um filme de comédia e ação, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo reflete em seus personagens o significado de viver, ou a falta dele, no jeito que cada um deles decide encarar a vida. Apenas quando Evelyn coloca o olhinho de plástico em sua testa, aceitando a gentileza e amor de Waymond, e confronta seu pai, é capaz de salvar a filha, de quem nunca, em nenhum universo, foi capaz de desistir. O figurino, a luz, a cenografia, o movimento, o som e a montagem colapsam em uma explosão sensorial e simbólica das dores e alegrias da família. Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo é excessivo porque a vida é excesso: excesso de dores, de alegrias, de decepções, de dúvida, de ódio, de amores, de possibilidades. Por isso, devemos tentar nos entender, devemos viver com o sofrimento e com a felicidade e devemos, apesar de tudo, nos permitir amar e ser gentis, afinal, nada importa.

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