Por: Camila Soares Shimoda
Graduanda em Animação, Universidade Federal de Santa Catarina
O filme de animação Tonari no Totoro (BRA: Meu Amigo Totoro) de Hayao Miyazaki, lançado em 1988, é uma obra que transcende as fronteiras culturais e tece uma narrativa que explora a essência da infância, da natureza e do sobrenatural. Ao transpor as barreiras culturais, essa obra constrói uma história que vai além do simples entretenimento, explorando de maneira profunda vários sentimentos.
Em um mundo de vida cotidiana e fantasia, Miyazaki captura a inocência, a curiosidade e a resiliência da infância pela compreensão do olhar de duas irmãs, Satsuki e Mei, que se mudam para o campo com o pai. Em meio às paisagens verdes e criaturas extravagantes, a simplicidade dos primeiros anos de idade é valorizada, ressaltando a importância de manter uma perspectiva inocente, aberta e imaginativa diante dos desafios da vida. Essa abordagem, entrelaçada ao longo do filme, sugere uma apreciação pela pureza e pela capacidade das crianças de encontrar alegria e beleza nas coisas mais simples da vida.
A atitude positiva de Satsuki diante das incertezas e preocupações, tentando manter um espírito corajoso e esperançoso para si mesma e para sua irmã. A presença de Totoro e outros espíritos da floresta, que representam a magia no cotidiano e incentivam a aceitação das coisas extraordinárias na vida diária. A ausência de antagonistas no enredo e o foco nas experiências diárias e nas relações afetivas entre os membros da família.
O modo como Mei enfrenta o desafio de sua mãe estar doente, tentando superar a situação de forma otimista e determinada. Esses elementos coletivos contribuem para construção de um ambiente cinematográfico que transmite mensagens mais aprofundadas sobre a natureza humana e a resiliência.
Além disso, há uma relação simbiótica entre os personagens e a natureza, onde o mundo natural existe como uma entidade viva e que influencia e interage com os protagonistas. Através dos espíritos da floresta e do Totoro, o filme comunica respeito pelo meio ambiente, consciência ecológica e a importância da convivência com a natureza.
Nessa esteira, Miyazaki explora a conexão espiritual entre os humanos e as forças invisíveis que os circundam. Esse aspecto adiciona uma camada de misticismo à história e confunde os limites entre realidade e fantasia. A presença etérea de criaturas inspiradas no folclore japonês, como o Susuwatari, não pretende incutir medo, mas suscitar a curiosidade e a apreciação pela beleza e magia do incomum.
Não obstante, Tonari no Totoro supera diferenças culturais e ressoa com o público em todo o mundo. Miyazaki incorpora à história elementos culturais japoneses em temas universais, o que torna o filme compreensível para pessoas de todas as idades e origens. A simplicidade da narrativa, aliada à riqueza dos seus temas permite que Tonari no Totoro mantenha o seu apelo intemporal através de gerações e culturas.
A influência dessa produção audiovisual vai além de seu lançamento inicial. O filme tornou-se um fenômeno cultural, moldando o cenário da animação e da cultura popular, a exemplo do próprio Totoro que se tornou um símbolo, representando a magia da narrativa do Studio Ghibli. O impacto do filme é evidente em sua popularidade duradoura, pois apesar de ser uma obra de 1988, continua a atrair novas gerações de fãs e admiradores, muitos dos quais descobrem e se apaixonam pela obra pela primeira vez, perpetuando sua repercussão ao longo do tempo.
Cinema e História, de Marc Ferro, fornece uma lente através da qual pode-se analisar Tonari no Totoro e seu significado no domínio da história cinematográfica. O trabalho de Ferro enfatiza a interligação do cinema e dos contextos históricos, e em como os filmes são moldados e moldam as paisagens sócio-políticas dos seus tempos. Ao aplicar as perspectivas do historiador francês à obra-prima de Miyazaki, surgem várias conexões, sobretudo, nos contextos histórico e social.
Tonari no Totoro pode ser visto como uma nuance histórica que reflete o ambiente cultural e social do Japão do final do século XX. Lançado em 1988, o filme capta aspectos do campo japonês daquele período e oferece um retrato da vida rural, da dinâmica familiar e dos valores sociais daquela sociedade. A ênfase de Ferro no cinema como documento histórico alinha-se com esta interpretação, à medida que a animação se torna uma cápsula do tempo visual que preserva e comunica o espírito da época.
Além disso, a exploração de Ferro sobre como o cinema constrói a memória coletiva é relevante para o impacto duradouro da terceira obra do Studio Ghibli. O filme não só se tornou uma parte da herança cultural japonesa, mas também usufruiu alcance internacional. Por meio de temáticas relacionadas à amizade, família, natureza e infância, Tonari no Totoro contribuiu para a construção de uma memória cultural partilhada para públicos de todo o mundo. Esta ressonância global apoia-se na ideia de Marc Ferro de que os filmes podem quebrar fronteiras temporais e geográficas, moldando memórias coletivas em diversas sociedades.
Os elementos sobrenaturais empregados nessa animação podem ser analisados à luz das discussões de Ferro sobre como os filmes históricos muitas vezes incorporam mito e simbolismo para transmitir realidades sociopolíticas intrincadas. Totoro e os espíritos da floresta, embora fantásticos, servem como metáforas que comunicam as preocupações ecológicas e espirituais de Miyazaki. A exploração do simbolismo e da metáfora no cinema por Ferro oferece uma estrutura para a compreensão das camadas mais profundas de significado incorporadas no filme.
Em síntese, Cinema e História de Marc Ferro valoriza a análise de Tonari no Totoro ao oferecer uma perspectiva histórica que considera o filme como um produto de seu tempo e um contribuidor para a memória coletiva de públicos de maneira global. Essa abordagem considera o filme não apenas como uma criação artística isolada, mas como um reflexo e influenciador do contexto temporal em que foi produzido.
Lendo as Imagens do Cinema de Laurent Jullier e Michel Marie, fornece uma estrutura para analisar a linguagem visual do cinema com a abordagem que se baseia na ideia de que as imagens cinematográficas são portadoras de significado e que a análise dessas imagens pode expor camadas profundas de narrativa, expressão emocional e comunicação visual. Quando aplicada ao filme Tonari no Totoro essa perspectiva permite uma análise mais minuciosa dos elementos visuais presentes na obra.
Jullier e Marie investigam a semiótica do cinema, examinando como as imagens transmitem significado além da sua representação literal. Miyazaki emprega na animação uma linguagem visual rica em simbolismo e metáfora: as paisagens profusas e as criaturas extravagantes que carregam um significado narrativo mais complexo. Essa abordagem dos autores Jullier e Marie para decodificar os elementos semióticos das imagens cinematográficas permite mostrar as camadas de significado embutidas no conjunto visual de Tonari no Totoro.
O livro também enfatiza a importância de reconhecer códigos cinematográficos e iconografia na decodificação de narrativas visuais. O uso de símbolos recorrentes por Miyazaki, como o próprio Totoro, o Catbus e a árvore de cânfora, estabelece um léxico visual dentro do filme. Elementos como composição de cena, movimentos de câmera e escolhas de enquadramento são linguagens cinematográficas que contribuem para o processo visual do filme. Nesse sentido, as imagens se tornam motivos recorrentes que carregam uma carga cultural e narrativa.
A obra Lendo as Imagens do Cinema (2009) também aborda as dimensões espaciais e temporais da narrativa cinematográfica. A meticulosidade de Miyazaki aos detalhes do cenário rural, a arquitetura da casa e a progressão temporal da história alinham-se com a exploração de Jullier e Marie em como esses elementos contribuem para o desenvolvimento narrativo geral. O ritmo das cenas, o uso de transições e a representação visual da passagem do tempo desempenham papéis importantes na formação da experiência e do envolvimento emocional do espectador.
Ademais, os autores analisam a expressividade dos personagens no cinema, discutindo como as atuações e as escolhas visuais dos atores contribuem para a experiência estética geral. Embora Tonari no Totoro seja um filme de animação, a expressividade dos personagens transmitida por meio de técnicas de animação, contribui para a ressonância emocional da narrativa. Logo, ao alinhar os conceitos de Lendo as Imagens do Cinema com a narrativa visual presente em Tonari no Totoro, compreende-se de maneira mais aprofundada as intenções por trás das escolhas visuais da obra cinematográfica de Miyazaki.
A Produção Social da Arte de Janet Wolff, oferece uma perspectiva sociológica sobre a criação e recepção da arte, examinando as maneiras pelas quais as práticas artísticas estão inseridas em contextos sociais, culturais e históricos. Ao aplicar a compressão de Wolff a Tonari no Totoro, a animação pode ser analisada como um produto cultural que reflete e contribui para valores sociais, relacionamentos e modos de expressão.
O tema central de Wolff gira em torno da ideia de que a arte não é criada isoladamente, mas está profundamente ligada às estruturas e dinâmicas sociais do seu tempo. No caso de Tonari no Totoro, o filme serve como um produto social que reflete o ambiente cultural e social do Japão do final do século XX. A representação da dinâmica familiar, do ambiente rural e da interação com a natureza pode ser vista como uma resposta aos valores da sociedade e uma representação da paisagem cultural durante a produção do filme.
Wolff também explora como a recepção da arte é influenciada por fatores sociais. E Tonari no Totoro impactou o público em todo o mundo, sua recepção pode ser entendida através da ótica de recepção cultural da autora. As temáticas da animação relacionadas a família, natureza e infância, reverberam em diferentes culturas, contribuindo para o seu apelo universal. Desse modo, a ligação afetiva do público com o filme reflete não apenas preferências individuais, mas também em sensibilidades culturais partilhadas.
Outrossim, Janet Wolff explora a atuação dos artistas na influência da mudança social por meio de seu trabalho. Embora Tonari no Totoro seja principalmente uma obra de entretenimento, as escolhas de Miyazaki ao retratar temas ambientais, a importância da interconexão e a celebração da inocência infantil podem ser vistas como uma forma de “agência artística”, com a capacidade de transcender seu propósito estético, tornando-se um veículo para mensagens mais amplas sobre a consciência ecológica e os valores sociais, influenciando potencialmente as perspectivas do público sobre estas questões.
Desse modo, A Produção Social da Arte de Janet Wolff aplicada a Tonari no Totoro possibilita uma compreensão mais contextualizada da obra como parte integrante da dinâmica cultural e social. A obra de Miyazaki transcende a expressão artística para se tornar uma voz significativa no diálogo mais amplo da sociedade japonesa e global.
A ligação entre Leitura das Imagens do Cinema de Laurent Jullier e Michel Marie, Cinema e História de Marc Ferro e A Produção Social da Arte de Janet Wolff com o filme Tonari no Totoro reside na exploração interdisciplinar da arte cinematográfica como um objeto cultural e histórico multifacetado.
O trabalho de Jullier e Marie sobre semiótica visual e códigos cinematográficos fornece uma base para dissecar a linguagem visual de Tonari no Totoro. Os símbolos, os designs de personagens e os motivos recorrentes do filme podem ser analisados através das da semiótica, revelando como esses elementos visuais contribuem para a narrativa geral. Os códigos cinematográficos estabelecidos no filme alinham-se com a ênfase de Jullier e Marie na decodificação de imagens para desvendar camadas mais profundas de significado.
Cinema e História de Marc Ferro complementa a análise ao situar Tonari no Totoro no seu contexto histórico. O filme, criado em 1988, reflete elementos do Japão do final do século XX. A exploração de Ferro sobre como o cinema está interligado com acontecimentos históricos e mudanças sociais permite considerar o filme como um documento histórico que capta a essência cultural e temporal da sua produção.
A perspectiva sociológica de Janet Wolff sobre A Produção Social da Arte torna-se relevante quando se consideram os quadros institucionais que moldaram a criação de Tonari no Totoro. A influência do Studio Ghibli, como instituição na indústria da animação, e a “agência artística” de Miyazaki na transmissão de mensagens ecológicas e sociais, alinham-se com as discussões de Wolff sobre como a produção artística é influenciada pelas estruturas sociais.
Todos os três teóricos contribuem para a compreensão do impacto cultural de Tonari no Totoro. A ênfase de Jullier e Marie nos códigos cinematográficos ajuda a decodificar o apelo visual do filme, enquanto a lente histórica de Ferro o coloca dentro de um contexto cultural mais amplo. As percepções de Wolff sobre a recepção do público e a produção social da arte esclarecem como os temas universais do filme repercutem nos contextos culturais e sociais diversos.
Ao combinar semiótica visual, contexto histórico, perspectivas sociológicas e considerações de agência artística, estas obras oferecem uma compreensão abrangente de como Tonari no Totoro funciona como uma obra-prima cinematográfica culturalmente rica e historicamente inserida.
Por conseguinte, Tonari no Totoro é cinematograficamente importante por suas contribuições às técnicas de animação, à capacidade de transcender barreiras culturais, à exploração de temas ambientais, à influência na animação subsequente e pelo apelo atemporal.
REFERÊNCIAS
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as Imagens do Cinema. São Paulo: Ed. SENAC, 2009.
MIYAZAKI, Hayao. Tonari no Totoro. Japão: Toho, 1988.
WOLFF, Janet. A Produção Social da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.