Forma e sociedade Glauber Rocha

RESUMO

O presente artigo analisa a relação entre os impasses sociais por que passou a sociedade brasileira entre as décadas de 60 e 70 e as irresoluções formais do cinema de Glauber Rocha. Tal análise é feita à luz da crítica materialista conforme formulada pelos marxistas Antonio Candido e Walter Benjamin, bem como a partir das análises histórico-formais de Ismail Xavier. Aponta-se que as irresoluções formais em um filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol são demonstrativas, de um lado, dos impasses políticos brasileiros; de outro, da tentativa em Glauber de harmonizar senso religioso e consciência revolucionária, mito e história. —————–

Antonio Candido (2000), em seu Literatura e Sociedade, batizou de paralelística a abordagem sociológica da literatura que consiste em pôr de um lado os aspectos sociais e de outro a sua ocorrência na obra literária, sem se chegar a uma síntese dialética que permita vislumbrar uma interpenetração efetiva do literário com o social. Sem essa ansiada interpenetração, a obra literária torna-se mero pano fundo do social, sem efetiva força cognitiva. Assim, por exemplo, para a perspectiva dos estudos sociológicos “paralelísticos” ­- se assim podemos chamar – é suficiente constatar que todos os dramas vividos pelo Brasil no Segundo Império estão refletidos na obra de Machado de Assis.

Essa postura, ainda comum, é tributária de um positivismo indisfarçável para quem a literatura realista (conceito em si problemático este de “realismo” artístico) é reflexo passivo do social, sem nenhum poder de novas descobertas e proposições. “Reflexo”, “retrato”, “espelho”, “fotografia”, “painel” são palavras-chave desta crítica, por inferirem uma transparência na transposição do fato social para o discurso literário.

A obra de Antonio Candido constitui uma reflexão conseqüente contra essa abordagem “paralelística”. A crítica literária, para ele, tem que pensar o social não a partir de fora do literário, mas como um componente que influi na economia da obra; Candido fundir “texto e contexto numa interpenetração dialeticamente íntegra” (2000, p. 4). À crítica literária, nesta pauta, cabe “averiguar como a realidade social se transforma em componente de uma estrutura literária” (idem). Como alerta o crítico, não só o social, mas o psicológico, o religioso etc influem na economia da obra. Assim, a explicação que enfatiza o social deve renunciar de querer explicar, por si só, o fenômeno literário. Enfatizar o social numa análise literária não deve significar abdicar de achegas ao psicológico, ao mítico, ao religioso.

Em Candido, como de resto na maioria da crítica materialista – pense-se em Benjamin, em Adorno, em Goldman – estamos diante de um conceito dinâmico de estrutura literária, que nem é imune ao que lhe vem de fora (no caso em pauta, o social) nem é mero reflexo do mesmo.  Numa palavra, estamos diante de “uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte” (2000, p. 7).

Essa dialética entre forma social e estrutura literária, tal como a elaborou Candido no seio da tradição hegeliano-marxista, é perfeitamente capaz, sem qualquer violência epistemológica, de servir como instrumento de análise de outros campos artísticos. O que se propõe aqui é o aproveitamento dessa dialética como princípio de análise do cinema de Glauber Rocha. Parte-se, assim, da tese de que as irresoluções estéticas e políticas do cinema de Rocha é a transmutação, no campo artístico, dos reveses por que passava a sociedade brasileira nos anos 60 e 70. Glauber transformou em problema estético um impasse social.

O cinema de Glauber Rocha é marcado por um “impulso totalizador” (XAVIER, 2001) e de feições épicas. Sua ambição (principalmente nos anos 60) foi encenar uma alegoria da realidade nacional, e não apenas em sua dimensão política, mas também metafísica. O sertão de Glauber, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, funde Graciliano Ramos com Guimarães Rosa; é a sondagem das condições matérias e espirituais do sertanejo. Em Glauber Rocha, o político e o religioso se interpenetram, e a religião popular pode ser menos um agente alienador que um meio de tomada de consciência para a Revolução. Falou-se em alegoria, o que remete a Walter Benjamin (1984), que em Origem do drama barroco alemão, faz uma distinção entre alegoria e símbolo: a primeira, enquanto revelação de uma verdade oculta, é temporal e aparece como um fragmento arrancado à totalidade do contexto social, sem nenhuma ilusão de atingir uma unidade; o símbolo, por sua vez, é essencialmente orgânico. A alegoria glauberiana, em sua trasmudação de agonias sociais em problemas estéticos, é a mímesis do dilaceramento e impasses da sociedade brasileira dos anos 60-70.

Naturalmente, essa dilaceração não está apenas representada nos filmes de Glauber Rocha, mas vai influir decisivamente em seu estilo, em suas operações formais. Lembremos-nos da lição de Candido (2000): os fatores sociais, ao contrário do que supõe uma sondagem meramente sociológica do fato estético, são agentes da estrutura da obra, e não apenas “matéria registrada pelo trabalho criador” (2000, p. 5).  O estilo dos filmes de Rocha será, então, convulsivo, descontínuo, tenso. Na palavra de Ismail Xavier (2001), um estilo barroco: funde o sensualismo táctil da câmera como anseio abstratizante da alegoria; alterna longos planos-seqüência com montagens dinâmicas; exibe momentos de silêncios exasperantes com outros de intensa saturação sonora; e o mais singular: exige do ator uma impostação teatral, dramática, lenta, que contrasta com a agilidade e o nervosismo da câmera, criando, paradoxalmente, uma atmosfera mítica sem abandonar os intentos políticos. Mito e história, política e metafísica no mesmo espaço.

Disse-se antes que o cinema de Glauber Rocha aspira a uma representação em larga escala, épica, da nação – uma epopéia política e metafísica. Este propósito choca-se, aparentemente, com seu estilo descontínuo, fragmentário. Xavier (2001) percebeu este detalhe ao apontar que o cinema de Glauber, ainda que movido por um impulso totalizador, se empenha numa interminável acumulação de elementos que representam um sério desafio à síntese. Por isto, trata-se de um cinema alegórico, no sentido benjaminiano de alegoria, já antes aludido. Trata-se de uma dialética incompleta, já que as contradições não se harmonizam numa síntese final. Poder-se-ia falar, referindo aos filmes glauberianos, em especial a Deus e o Diabo na Terra do Sol, de obras inacabadas, e não por incompetência ou desistência do criador, mas devido a um impasse ideológico quanto aos destinos de uma revolução comunista no Brasil. Em suma, a estética heterogênea e fragmentária é, em Rocha, a internalização de um fator externo, no caso o fato sócio-político.

As irresoluções formais deste cinema – não se entenda “irresoluções” como “falhas” – em um filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol são demonstrativas, de um lado, dos impasses políticos de sua nação; de outro, de sua tentativa de harmonizar senso religioso e consciência revolucionária, mito e história. A alegoria glauberiana, como teorizava Benjamin, não nos oferece ao final uma síntese consoladora, mas perplexidades diante das ruínas da história (no caso, da história do Brasil). Como disse Benjamin, a alegoria se encontra entre as idéias como as ruínas estão entre as coisas. Tudo em Glauber Rocha acontece à beira de um apocalipse e o homem está condenado a decidir. Glauber, que detestava a pusilaminidade e o meio-termo, decidiu pela Revolução, mas, ao contrário de muitos de seus pares revolucionários, rechaçou o didatismo da arte comunista, optando pela perplexidade.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000. BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. ________. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, 1). São Paulo: Brasiliense, 1985. XAVIER, I. “Historical Allegories”. In: MILLER, Toby; STAM, Robert. (Org.). A Companion to Film Theory. 1 ed. Oxford: Blackwell Publishers, 1999, v. , p. 333-362. ________. O cinema brasileiro moderno. 1. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001

Wanderson Lima é doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Email: wandersontorres@hotmail.com

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