Import Export (Ulrich Seidl, 2007)

Capitalismo e submissão

Se alguns filmes pretendem criticar certos aspectos do mundo, outros têm o mundo inteiro como objeto de sua crítica. A visão global da sociedade e a compreensão da função do cinema como espelho crítico dominam Import Export, filme austríaco que vê na expansão de suas fronteiras (geográficas e morais) uma possibilidade de dialogar com todos os problemas contemporâneos.

Para tanto, é preciso pegar duas figuras metonímicas dessa sociedade caótica: elas são uma enfermeira ucraniana que busca emprego na Áustria e um garoto austríaco que vai para a Ucrânia (por isso o título do filme). Ambos têm relações turbulentas com a família, com o emprego e com o ambiente. Se alguns filmes rebeldes defendem a existência de um mal (Gomorra e seu mundo maniqueísta), aqui não há maldade, mas uma grande hostilidade geral que é a essência mesmo das relações humanas.

Muitos críticos não hesitaram em usar o termo “nihilismo” que, mesmo forte, parece se encaixar neste caso. A estrutura escolhida por Ulrich Seidl é de ordem destrutiva, que passa como um rolo compressor pelo que vê à sua frente: religião, amigos, família, política: tudo está corrompido, o novo homem não tem pontos de estabilidade.

Este pensamento é representado por dois símbolos maiores, no caso, o trabalho e o sexo. O primeiro se transforma, ao olhar do diretor Ulrich Seidl, num retrato da exploração fordista do trabalho em série, através da imagem potente de pessoas uniformizadas (no sentido vestimentar e social do termo) e da arrogância de patrões e superiores. Neste mundo só existem funcionários de empregos que não desejam, em funções que não os satisfazem.

Uma cena exemplar da mise-en-scène consiste na implantação de uma máquina de balas coloridas num bairro cinzento, deserto e paupérrimo na Eslovênia, povoado por várias crianças ciganas que jamais poderiam comprar tais produtos. Compreende-se então que o discurso do diretor se baseia nos absurdos e nas ironias inerentes ao capitalismo.

O que nos leva ao segundo símbolo de submissão, o sexo. Visto enquanto produto, ele é representado por nossa protagonista, enfermeira bondosa e mãe, que recorre aos serviços de sexo pela Internet. Não é tanto a prostituição que é criticada, mas a submissão que vem do poder financeiro. Como lembra um personagem, o dinheiro compra o direito de possuir, humilhar e de se fazer o que se quer. Assim, as mulheres se submetem aos maridos; as prostitutas aos clientes, os funcionários aos patrões; os filhos às mães.

Ah, sim, existe a questão das imagens de desconforto: embora o filme não se apóie numa estética desagradável em si (como Gomorra, novamente), ele não deixa de ser difícil de assistir em suas cenas passivas diante de longos momentos de humilhação (de idosos enfermos em especial). Como reagir à tentativa pedagógica de sensibilização através do repúdio?

Vários críticos deploraram essa escolha, mas deve-se dizer que ela parece cada vez mais o instrumento pedagógico oficial das instituições, o que se percebe pelas propagandas destinadas a controlar os acidentes no trânsito, as doenças e demais problemas sociais. Para o câncer estampa-se imagens de pulmões doentes, para os acidentes automobilísticos utiliza-se a contra-publicidade do jovem embriagado e, do mesmo modo, para uma sociedade em crise mostra-se a humilhação de seus personagens.

Talvez este recurso, no fim, seja mais eficaz para falar do realizador que de sua própria realização. Import Export é um filme que rejeita o mundo para falar de uma idéia de mundo, ou seja, que rejeita o realismo para pregar uma ideologia. Entre imposição e retórica, este discurso é tão capaz de conscientizar os espectadores de cinema quanto as imagem de bêbados são capazes de controlar os acidentes de automóveis numa estrada.

Bruno Carmelo é graduado em Cinema pela Faap e mestrando em Teoria e Crítica de Cinema na Universidade francesa Sorbonne Nouvelle

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