The Wall (Alan Parker, 1982)

Por Pedro Marcondes*

É necessário ouvir The Wall antes de experimentá-lo sob a ótica prática concebida pela arte cinematográfica. Para compreender a vida de Pink, protagonista da obra, e todas as dificuldades apresentadas em seu caminho é preciso imaginar antes de se observar uma imagem decupada. A plenitude audiovisual de uma película acaba por ilustrar muitas vezes, quase que didaticamente, um entendimento stricto sensu do diretor quanto ao roteiro que lhe é apresentado. E não é este o conceito que Roger Waters, vocalista e baixista do grupo britânico Pink Floyd e roteirista da obra em questão, anseia transmitir em suas vinte e seis canções dispostas no álbum de 1979, homônimo ao filme. O conceito parte de nosso envolvimento com o protagonista do álbum, da nossa ciência em relação às etapas de sua vida, e, principalmente, dos diversos fatores sociais externos que a moldaram. É um exercício de reflexão quanto a nossa humanidade, espelhada pela observação de um semelhante cerceado a um padrão previamente concebido por seu meio social. Este exercício é apresentado ao longo da narrativa por intermédio da metáfora do muro, construído gradativamente pelo protagonista em seu desencontro com o ato de viver sobre regras e padrões. Ao fim do enredo o muro é destruído e Pink é colocado em julgamento sobre seus atos.

De maneira grosseira e simplista pode-se pontuar que a narrativa de The Wall trata basicamente de um war baby, expressão dada a crianças que nasceram durante a Primeira e Segunda Guerra Mundial, que sofre uma série de limites impostos pela sociedade que o observa e policia. Entenda como “limite” os padrões e regras de convívio em sociedade, que estabelecem a conduta normal ou correta para um individuo portar-se diante da comunidade que vive e com a qual se relaciona, um contratualismo perverso, um instrumento de alienação a serviço de um pequeno grupo que detém o poder de orientar um povo. São os detentores deste poder as instituições da família, educação e governo, os pilares da sociedade, criticadas em The Wall por intermédio da apresentação de símbolos de sua manutenção (a mãe, o professor e o serviço militar).

Pink cresce e torna-se um astro do rock, no entanto não se adéqua a estes padrões e invariavelmente acumula os transtornos desta não adaptação isolando-se cada vez mais, ampliando seu muro tijolo por tijolo. A ausência do pai, fatalmente ferido durante a guerra, a postura superprotetora de sua mãe, o fracasso no casamento, a educação carcerária, entre tantos outros pontos são alguns dos elementos que mostram o gradativo processo de deterioração do protagonista. A sobrecarga sofrida por Pink leva este a uma mudança total de personalidade e à perda de sua humanidade com a sua transformação em um líder totalitário (que ocorre metaforicamente através de uma metamorfose em que este se torna um verme, o qual após retirar o casulo que envolve seu corpo volta a ser um homem diferente daquele anterior). Cansado do isolamento, Pink é fadado a ser julgado por seus semelhantes, pelos responsáveis por sua loucura e sofrimento, mas também pelos mesmos a sofrer com o condicionamento social do “bom comportamento”, do respeito às regras de conduta em nosso meio.

Esta rápida apresentação de The Wall, no entanto, não evidencia o real conceito por detrás da obra aqui discutida. Antes de visualizar este enredo, é preciso ouvir a loucura gradativa presente no vocal de Roger Waters durante o crescendo perturbador desenvolvido por seu alter-ego (com elementos da personalidade do fundador e ex-lider do Pink Floyd, Syd Barret), Pink, ao longo das faixas do disco, assim como compreender as diversas inserções de efeitos sonoros e ambientações nas composições.  A partir desta leitura sonora torna-se possível entender que o disco carrega diversas mensagens visuais por intermédio unicamente do som (explosões, o som de um helicóptero e até mesmo o diálogo entre testemunhas e juiz durante um julgamento, apenas como exemplo dos diversos recursos utilizados). Este mecanismo nos auxilia a imaginar, unicamente pelo recurso sonoro, a nossa própria condição de individuo cerceado, de estabelecer empatia com aquele que representa quase que metaforicamente a inércia mecânica e previsível das ações sociais humanas.

Agora, após ouvir The Wall, o entendimento da obra pelo meio cinematográfico é mais adequado, pois estaremos cientes de que este produto fílmico é um olhar, uma releitura, de um material anterior muito mais denso e menos limitado por apresentar ao ouvinte elementos visuais imaginativos que o produto audiovisual acabado, denominado película, não pode. É importante ainda citar que mesmo esta adaptação sofreu modificações quanto às musicas apresentadas ao longo do filme, havendo a exclusão e adição de novas faixas, mudanças em letras, além de regravações das canções do álbum.

A adaptação de The Wall (1982) para o cinema seguiu um formato não muito conveniente. Não se trata de um musical (mesmo tendo músicas cantadas pelo protagonista como In The Flesh? e Stop não há o uso de coreografias ou outros elementos cênicos típicos a este gênero), mas mantém ao longo de toda sua narrativa a música como primeiro plano, com a apresentação da história do protagonista Pink (interpretado pelo músico irlandês Bob Gedolf, vocalista do grupo Boomtown Rats) através das letras das canções que seguem gradativamente até o desfecho da obra. O formato escolhido pelo diretor Alan Parker assemelha-se mais ao videoclipe, havendo a utilização de diversos recursos de fotografia e montagem típicos a este gênero tais como o uso de slow motion e efeito blur (durante a faixa Confortably Numb), animação (em diversos momentos, como durante as faixas de Empty Spaces, Don´t Leave me Now, What Shall We do Now, entre outras), repetição de planos (como em Another Brick in The Wall III), repetição de pedaços de um frame (em Another Brick in The Wall II), entre outros.

O recurso do flashback também é bastante utilizado, sendo muitas vezes um elemento que ilustra a memória de Pink, apresentando fatos que este vivenciou e outros que ele imagina ou que são parte de sua alucinação e loucura. A utilização destes instrumentos visuais busca satisfazer o compreendimento da mensagem cantada, como um meio de ilustrar o gradativo transtorno de Pink (por isso a utilização de repetição de planos e flashbacks torna-se cada vez mais constante conforme se amplia o desespero do protagonista) com a proximidade do desfecho da obra.

Apesar da utilização de diversos recursos estéticos visando transmitir a mensagem-conceito da obra, a direção de Parker, assim como a atuação de Bob Gedolf, foi bastante criticada por Waters que disse não ter ficado satisfeito com o resultado final do filme na época de seu lançamento. Há ainda relatos de que houve vários desentendimentos entre Parker e Waters durante as filmagens. Outro ponto é que o próprio Roger Waters apresentava o desejo de encenar Pink, o que, não tendo ocorrido, acabou por frustrar suas expectativas em relação ao protagonista e ao próprio filme.

Apesar destas críticas, The Wall veio a receber dois prêmios do BAFTA relativos ao som e a trilha sonora do filme. Tornou-se também um clássico cult, uma obra que satisfaz uma análise da condição humana por intermédio da música de Pink Floyd, da fina ironia e do sarcasmo presente nas letras de Roger Waters. Tem uma fotografia e montagem alinhadas à progressiva loucura do protagonista, respeitando a mensagem-conceito que o filme deseja trasnmitir (auxiliando assim a imersão do público no compreendimento da vida de Pink). O porém, como já pontuei anteriormente, é que precis-se ouvir o álbum The Wall antes de experimentar visualmente as intenções de Parker e Waters, é preciso fechar os olhos, imaginar, olhar para si, para então despertar.

*Pedro Marcondes é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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