La Jetée: a memória interior no tempo

1. INTRODUÇÃO
A memória é fato e direito do ser humano, age latente e quieta, dentro de nós, ora ferida aberta, crua, ora esquecimento, lapsos de lembranças, pequenas e guardadas, que não nos causam dor, nem desconforto, mas quando imposta, é tortura, é violentamente bela e marcante. É assim, no filme de Chris Marker, La Jetée.

Pautado em “memórias espisódicas”: “lembrança de eventos de nossas vidas, quando e onde aconteceram, sendo definida como dependente de contexto espaço-temporal” (GILLUND apud BERTOLOZZI, 2004: 27) . Nesse contexto espaço-temporal é que o filme insere uma novidade, outra realidade espaço-temporal para poder então tratar da memória, da lembrança, do resquício de um passado fotográfico e eloqüente sobre o personagem, cobaia da vontade, utilizo essa palavra vontade, como meio de relacionar com o que o pensador Henri Bergson diz em “é preciso atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar” (BERGSON, 1984: XII)  – vontade de sonhar e reviver, mesmo que por instantes, episódios passados. Seria, pois, o protagonista do filme de Marker, uma cobaia dos seus próprios sonhos? De seu próprio desejo de sonhar? Que, abstraindo-se do presente, traz à mente (forçado) sucessivas imagens de dor e de desejo. É uma pergunta a se fazer. É um sonho a se permitir, mergulhando nesse filme, que é certamente uma obra-prima do cinema mundial.

  • DESENVOLVIMENTO
  • 2.1 A CICATRIZ DO TEMPO

    La Jetée é a cicatriz do tempo, o transcorrer/percorrer pelo futuro, passado e presente através de imagens perturbadoras, imagens fotográficas, estáticas, que através da montagem imbuem-se de ritmo e movimento.

    Tudo se dá numa Paris pós-Terceira Guerra Mundial, devastada e inabitável. O palco é o subterrâneo escuro da cidade francesa, onde o protagonista é cobaia de suas lembranças, cobaia do tempo, transita pelo passado e pelo futuro, à mercê de carrascos. Aqui, se desenrola esse verdadeiro idílio, da busca pela lembrança, da ação da lembrança, do homem “marcado por uma imagem da infância”, como diz o letreiro inicial do filme de Marker.

    No passado, a cicatriz inicial do tempo, o protagonista se lembra de quando ia ao molhe do aeroporto de Orly, levado por seus pais, ver os aviões passarem. Eis que então, a imagem dela surge: linda e resplandecente, a mulher, ao canto, cabelos ao vento, é o ponto-chave de suas memórias e de sua batalha. Nessa seqüência, além da bela mulher, tem-se outro ponto que ao fim do filme será revelado: a morte de um homem, ali. É a imagem-contemplação junto à imagem-perturbação. A mulher e a morte.

    2.2 O KAIROS DO DESEJO

    Kairos, palavra grega que significa momento certo, oportuno. É a expressão utilizada por Roland Barthes em seu livro “A Câmera Clara” para designar o “bom momento” (BARTHES, 1984: 91) do fotógrafo no seu retrato. Prendo-me a essa expressão para retratar o papel que a mulher tem durante o filme, é em si, a figura do desejo e do momento certo, pontual, da lembrança do protagonista. Sua memória capturou-a. Sua lembrança e sua mente resguardaram-na firmemente num sentimento de manutenção de um passado, que é ou não recriação, mas que para ele “é a única coisa de que tem certeza”, dito na seqüência inicial. É uma figura misteriosa, a qual requer o transe para ser encontrada no meio de tantas figuras, requer o kairos.

    Tal desejo se desenrola filme adiante, e traz ao protagonista uma ligação afetiva com o passado: a vontade de permanecer naquele instante, que é, no entanto, fugidio e consumado. O fato de o filme todo se desenrolar através de fotografias, ratifica essa questão, que Roland Barthes diz do “isso será e isso foi” uma vez que “ao me dar o passado absoluto da pose (…) a fotografia me diz a morte no futuro” (BARTHES, 1984: 142) e é essa morte que o protagonista encontra quando retorna ao presente da destruição e da sujeição à fantasia, porque o passado ficou por instantes no seu presente, percorrendo-o todo em sentimentos e desejo.

    É importante pensar no que essa mulher representa a ele: é o instante, um instante no passado, cuja ambientação remonta uma Paris livre da guerra com imagens verdadeiras e belas “um quarto de dormir verdadeiro”, “gatos verdadeiros”, “pássaros verdadeiros, e também “sepulturas verdadeiras”. Tudo a reiterar a palpabilidade de um passado onde ele pode reviver e sentir de novo uma cidade pura e livre da devastação e da radioatividade, e mais, fulgurar nesse instante com a beleza de uma paixão, o kairos de um desejo que é vida e morte, que é memória e esquecimento, que é verdade e recriação.

    2.3 O MOMENTO DA ESTATICIDADE

    “O que ocorre quando o espectador do cinema encontra a fotografia? Inicialmente, ela se torna um objeto entre outros (…) A presença da foto na tela produz, no entanto, uma emoção muito particular (…) o filme parece congelar-se, suspender-se, criando no espectador um recuo que é acompanhado por um aumento do fascínio. Esse efeito mostra o imenso poder da fotografia se mantém mesmo numa situação em que ela já não é realmente ela mesma” (BELLOUR, 1997: 85). E quanto a um filme que se constrói todo à base de fotografias? A alucinação é elevada ao enésimo nível, pondo à discussão toda funcionalidade do movimento, do tempo do cinema, dos quadros por segundo, do entre-frames, tudo é repensado à maneira de uma construção pautada na montagem e no som, aliados às imagens estáticas que são tão potentes, e assumem em si uma quebra, uma falta em sua própria estrutura: é o respirar prolongado, é o entrever estendido, é a imaginação que requer que substituamos as imagens que se ausentam.

    Essa adoção da relativa fragmentação (relativa, pois as fotos seguem uma continuidade visual, uma ordenação lógica) reforça o assunto do filme, reitera o tempo, uma vez que “A imobilidade se torna seu princípio” (BELLOUR, 1997: 89) e é através dessa imobilidade e fragmentação que se buscam imagens-lembranças de uma memória que se confunde a recriações e sonhos através de lembranças pontuais, livres de uma seqüencialidade espaço-temporal (ele e a mulher ora estão no museu, ora num quarto, ora num jardim, ora não estão) e, sobretudo, amarrados por essa liberdade de lembrar vinculado num momento de respiro, um momento de intervalo, que se dá quando o protagonista volta à realidade e à consciência dos testes e de sua vulnerabilidade diante daqueles cientistas. Tudo isso pautado no passado, “É no passado tal como ele é em si, tal como se conserva em si, que iremos procurar nossos sonhos ou nossas lembranças” (DELEUZE, 2005: 101), um passado no qual o protagonista é menino e adulto, é livre e preso, é delírio e realidade.

    2.4 O MOMENTO DO MOVIMENTO

    O momento do movimento se dá a 18 minutos de filme, e é a libertação da estaticidade como forma de transcendência e eloqüência.

    O movimento, preparado num crescente com uma banda sonora alucinante, traz ao filme o seio da beleza do amor, da paixão transtemporal e a ruptura, mesmo que por segundos, de uma estabilidade já acostumada e consumada, pelo espectador. A cena é a do amanhecer da amada, a figura que o protagonista persegue em suas lembranças. Ela aqui abre os olhos, ao som de pássaros num crescendo crescente, é a leveza e a poesia no meio do caos e da perturbação de tempos e memórias.

    É como se esse momento representasse o caminho inverso do que propõe o estudo de Raymound Bellour em seu livro Entre-imagens no capítulo 6 – Espectador Ativo – que em linhas gerais diz da introdução de uma fotografia no cinema como recurso de estimular o espectador, fazendo-o exercer o que ele chama de “mediação imaginária do cinema” (1997: 93), seria, aqui, transpondo a outro pensador, Roland Barthes, estimular o punctum, “que é esse acaso que, nela [fotografia], me punge (mas também me mortifica, me fere)” (1984: 46), é o extra-enquadramento de uma foto, aqui, nessa cena em discussão, o punctum é estimulado a partir de um extraordinário movimento, que nos fere por ser inesperado, instantâneo, e desaparece logo em seguida. Desejosos do movimento tal qual no cinema, de outras cenas, Chris Marker nos permite outra visão, outra contemplação, que é bela e fortuita: a imagem da amada, que é fotografia e cinema, misturados numa estranha forma de enunciação.

    50 segundos de transcendência: o momento do movimento. Segundo palavras de Bellour “o olho que se entreabre, única vibração de um mundo congelado” (1997: 89).

    2.5 NO MOLHE, O TEMPO É A MORTE

    No molhe, caminha o adulto, protagonista de seus desejos, mas não mais de seu tempo, que é de outrem. Os cientistas controlam-no, fazem-no percorrer o futuro, o passado e o presente. Sua memória torna-se sua subjetividade, ou melhor, “a subjetividade nunca é nossa, é o tempo (…) a alma ou o espírito, o virtual. O atual é sempre objetivo, mas o virtual é o subjetivo” (DELEUZE, 2005: 104). É nesse subjetivo que não lhe pertence, pertence ao tempo, que o homem através de transitoriedade por entre tempos decide viver, continuar, reviver, sonhar, seguir e, principalmente, permanecer.

    Ao lado de seu objeto de desejo, transferência de um amor em tempo de um pós-guerra de devastação, o protagonista deseja ficar naquele sonho, naquela memória e ao lado daquela mulher que é mistério e fascinação. No entanto, ele é alvejado pela figura do homem do subterrâneo, relação do presente, e percebe que o tempo é inescapável, e assim, morre, diante da mulher, diante dele, criança, no passado conservado. “A única subjetividade é o tempo, o tempo não-cronológico (…) somos nós que somos interiores ao tempo (…) a interioridade na qual estamos, nos movemos, vivemos e mudamos” (DELEUZE, 2005: 103). É nessa interioridade do tempo, que se constrói a memória de um homem marcado por uma imagem da infância, e nela aprisiona-se, e morre relutante de um presente devastado, e apaixonado por um passado suscetível ao esquecimento.

  • CONCLUSÃO
  • A obra de Chris Marker propõe mais que discussões sobre o tempo, propõe uma nova visão sobre a própria linguagem do cinema. Obra de 1962, é uma verdadeira homenagem à memória, à lembrança em tempos de Guerra Fria. É uma ficção científica que se passa no pós-Terceira Guerra Mundial, numa Paris arruinada, onde a devastação trouxe experiências com tempos e memórias pessoais, forma de libertação e de aprisionamento.

    Ele, para ela, é seu Espectro “essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto” (BARTHES, 1984: 20) enfatizado pela figura do homem adulto (presente) que transita por tempos de quando era criança (passado). O homem permanece ao seu lado, transitando entre os instantes, quando lhe é permitido, e ao fim, seu desejo de permanecer naquele momento lhe traz a fatalidade, a consciência do tempo nunca estático, ou como diz Henri Bergson, o tempo passado que coexiste com o presente. Ele seria o que Deleuze chama de “imagem virtual (lembrança pura) [que] não é um estado psicológico ou uma consciência: ela existe fora da consciência, no tempo” e continua “o que nos engana é que as imagens-lembrança, e mesmo as imagens-sonho ou devaneio, freqüentam uma consciência que necessariamente lhes dá aspecto caprichoso ou intermitente, já que se atualizam segundo as necessidades momentâneas (…) mas, se perguntarmos onde a consciência vai procurar tais imagens-lembrança, imagens-sonho ou devaneio que ela evoca segundo seus estados, seremos levados às puras imagens virtuais, das quais estas são apenas modos ou graus de atualização” (2005: 100-101). E a morte encerra-o, virtual e coexistindo noutra noção temporal, em que ela não mais lhe permite alcance, em que ela não está. Essa fatalidade traz-lhe a morte e a consciência do tempo, fatídico agente do esquecimento.

    Termino aqui meu ensaio com uma linda frase do filme, podendo ser tomada como conclusão de todo meu pensamento: “outras imagens se apresentam, misturam-se no museu que talvez seja o da sua memória”. La Jetée nos faz pensar e apreciar a memória, o tempo, o instante, a fotografia e o amor. No entanto, aqui, a luta com o tempo é travada de forma dolorosa e trágica. Nossa memória é museu e luta, sobretudo àqueles marcados por uma imagem da infância.

    Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

  • BIBLIOGRAFIA
  • ALVES, Gabriela Santos. Souvenirs de Chris Marker: memória, tempo e história em La Jetée. Disponível na World Wide Web: http://www.novomilenio.br/comunicacoes/1/?target=artigo. Acessado no dia 22 de junho de 2008.

    AVILA, Daniela. Quase nudez x expansão retórica. Disponível na World Wide Web: http://www.questaodecritica.com.br/conteudo.php?id=122. Acessado no dia 22 de junho de 2008.

    BARTHES, Roland. A Câmera clara: nota sobre a fotografia; tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

    BELLOUR, Raymound. Entre-Imagens. Campinas: Papirus, 1997.

    BERETOLOZZI, Marcia Regina. Um estudo sobre memória e solução de problemas: enfoque das neurociências. Dissertação de Mestrado, USP: 2004. Disponível na World Wide Web: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3146/tde-30092004-130314/. Acessado no dia 25 de junho de 2008.

    BERGSON, Henri. Cartas, conferências e outros escritos; seleção de textos de Franklin Leopoldo e Silva; traduções de Franklin Leopoldo e Silva, Nathanael Caxaeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

    BUNGARTEN, Vera. A relação do espectador com as imagens visuais no cinema. Disponível na World Wide Web: http://www.revistaav.unisinos.br/index.php?e=2&s=9&a=38. Acessado no dia 25 de junho de 2008.

    DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A imagem-movimento. Tradução: Stella Senra. Editora Brasiliense. São Paulo: 1985.

    SUPPIA, Alfredo Luis Paes de Oliveira. La Jetée, “DOCUMENTÁRIO” do futuro. Disponível na World Wide Web: http://www.rizoma.net/interna.php?id=212&secao=camera. Acessado no dia 20 de junho de 2008.

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      Marc

      Difícil comentar o já tão bem comentado, mas este filme deixa no espectador desavisado um impacto forte.
      Sempre fui fascinado por histórias de viagem através do tempo.
      Mas a medida em que não vivemos (ou não podemos viver) o presente e passamos a revirar os instantaneos perdidos no passado, como para tentar resgatar o aroma e sabor há muito desaparecido, saímos do mundo dos vivos, pois provavelmente assim vivem os mortos.
      Não podemos viver sem nossas memórias, sem elas não somos nada, porém também não podemos viver sem um futuro indefinido, pois o determinismo é insuportável.

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