Melancholia (Lars Von Trier, 2011)

Gabriel Dominato*

Melancholia, novo filme do dinamarquês Lars von Trier, é sem dúvida um dos filmes mais incríveis do ano ao lado do celebrado A Árvore da Vida de Terrence Malick, tratando-se ambos de um tema que parece ser muito caro aos diretores contemporâneos: a existência humana e o lugar das pessoas no mundo.

Créditos iniciais repetem o estilo usado em "O Anticristo", sendo só uma das semelhanças entre os dois filmes que também são divididos em partes e prologos.

O filme se inicia com o sonho de Justine (Kirsten Dunst), um prefácio magnífico em câmera lenta ao som do prelúdio de “Trinstan und Isolde”, ópera do compositor romântico alemão Richard Wagner. A música  dará o tom da tragédia do planeta Melancholia, em rota de colisão com a terra. Neste prelúdio, assim como em várias passagens do filme, o diretor se utiliza de símbolos e signos importantes para a significação do filme. Sinto a necessidade de destacar alguns dos que me parecem ser os mais importantes.

O primeiro é o quadro de John Everett Millais que representa a Ofélia de “Hamlet”, que é reproduzido no filme com a cena em que Justine aparece flutuando num rio vestida de noiva com buquê nas mãos (tal imagem foi utilizada também na divulgação do filme).Esta Imagem parece representar perfeitamente o estado de espírito do personagem, que assim como Ofélia de Shakespeare, se joga num rio para se matar, embora no filme as intenções suicidas parecem mais representar simbolicamente a melancolia de Justine e não propriamente um desejo de morrer,  um desapego a vida.

Ophelia, pintura de John Everett Millais
Reprodução da pintura no filme

A segunda passagem interessante é quando Justine está tentando caminhar mas aparece amarrada por fios de linha que se agarram a seu corpo deixando-a imóvel, que me parece a representação da impossibilidade da personagem conseguir superar sua tristeza. Há várias outras, mas estas duas creio que ilustram muito bem a argumentação que pretendo fazer aqui.

Planos de mis-en-scene impecavel são marcas de Melancholia

Logo após a cena do sonho, o filme  inicia a sua primeira parte chamada “Justine”, pois será nesta personagem que ele irá se focar. Estamos na recepção da festa de Justine e Michael (Alexander Skarsgård) organizada por sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg). Ao chegar na referida recepção, Justine percebe uma estrela vermelha no céu. O marido da irmã, John (Kiefer Sutherland), astronômo entusiasta, diz ser a estrela Antares da constelação de Escorpião, porém não irá demorar para que todos percebam que na verdade se trata do planeta Melancholia que está vindo em rota de colisão com a terra.  John nega durante todo o filme este fato, defendendo que os verdadeiros cientistas calcularam que isso jamais poderia ocorrer.  A festa prossegue e, se no início Justine parecia completamente feliz com o casamento,  progressivamente  seu humor começa a oscilar entre a alegria e a tristeza, o que realmente a fará destruir sua noite, chegando a um profundo estado de melancolia. Conforme o planeta se aproxima da terra, mais abruptas parecem se tornar as mudanças de humor de Justine, que começa a sair da presença dos convidados, se isolando de todos.

Kristen Dunst ganhou palma de ouro em Cannes por sua interpretação de Justine em Melancholia

A escolha de movimentação de câmera feito por Trier aqui merece destaque, é hábil e propositalmente tremida, fazendo a imagem sair rapidamente de foco às vezes pela velocidade com que muda de um objeto longe para outro próximo, como quando muda da paisagem do jardim da casa de Claire e John para o rosto de Justine de forma quase abrupta, focando-a rapidamente e com precisão, tudo para provocar a sensação de desorientação que irá acompanhar os personagens noite a dentro.

No fim da noite, o casamento e  emprego de Justine foram perdidos e ela entra em um estado de melancolia sem retorno – perdoem a falta de adjetivos, mas von Trier acertou tão perfeitamente no título que nenhum outro poderia descrever o rosto de Justine naqueles momentos –  Agora com o planeta já próximo, seu humor parece então finalmente estagnar, ficando ela presa na atmosfera que o planeta faz recair sobre todos.

Os personagens são influenciados pela aproximação do planeta em colisão com a terra.

Na segunda parte, “Claire”, o enfoque muda para a outra irmã e a fotografia se esmaece em tons frios, cada vez mais cinzentos e azulados, como  fica o céu e o próprio planeta que tem uma atmosfera azul um tanto desbotada. Belíssima fotografia e efeitos empregados em sua construção fazem do planeta um deslumbre em tela. Aqui Claire, já desconfiada de John e de seus “cientistas”, fica cada vez mais em pânico, sufocando-se com dificuldades para respirar ao mesmo tempo que  planeta se aproxima da atmosfera terrestre, enquanto Justine parece ficar cada vez mais indiferente e apática. Ela é reintroduzida na história em um estado completamente catatônico, trazida por Claire novamente a sua casa para proteger a irmã que supostamente está doente.

Exemplo de tonalidades quentes da primeira parte
Exemplos de tonalidades frias da segunda parte

Um das partes mais interessantes do filme se dá quando elas vão andar a cavalo e em determinado trecho o cavalo de Justine se recusa a ultrapassar, o que irá se repetir novamente em certa altura. Curiosamente na primeira parte, a limosine do casal tem dificuldades para entrar na propriedade, e agora, ao contrário, ela tem dificuldades para sair. Em pânico, quando o planeta já está bem próximo, Claire tenta fugir com um carro de golfe, mas bem neste exato lugar o carro para de funcionar, tudo parece conspirar para que as irmãs passem este derradeiro momento juntas. John ao perceber que os matemáticos erraram, se suicida com os medicamentos de Claire, para continuar o ciclo de personagens masculinos patéticos e/ou egoístas dos filmes de Lars von Trier, sendo nas mulheres que está contido todos os grandes diálogos e ações, nunca nos homens. Ficam então apenas as duas irmãs e o filho de Claire, aguardando o momento em que por fim o Melancholia acerta a terra destruindo toda a vida nela existente, em um momento de grande tensão que dá o ápice do filme,  fazendo até mesmo os mais debochados se silenciarem dentro do cinema.

Assim como em "O Anticristo", um final apoteótico fecha Melancholia.

Sim, melancolia é a palavra mais acertada, essa foi a sensação com que saí da sala de cinema e carreguei comigo por vários dias. É impossível ficar indeferente a esta obra. Ela contém um poder que não via em Lars von Trier desde “Ondas do Destino”, é sua volta a grande forma. Controvérsias a parte deve-se admitir que o diretor conseguiu realizar um dos mais belos e tristes filmes de 2011.

Entretanto, creio ser necessário analisarmos o fim do mundo e sua iminência presente no filme como uma metáfora. Só assim, creio, poderá se ver a beleza colossal e profundidade de significado nele contida, para além de “um belo filme sobre o fim do mundo”, como declarou o diretor em várias ocasiões. Vejo o planeta Melancholia como a representação das forças que fazem as pessoas agirem e, com o pessimismo de Lars von Trier, isto não é nada muito bom. Por isso esse elemento parece malévolo, capaz de causar a destruição das relações. Ainda pode-se ver, como bem reparou um amigo, os planetas como as personalidades das irmãs em choque até um conflito final e derradeiro para que possam se entender. Enfim, como toda grande obra a interpretação não deve nem  pode ser exaurida, porque a “verdade” contida na película indubitavelmente será única para cada um individualmente, contudo penso que se deve evitar de toda maneira ver o fim do mundo como algo meramente material. Assim como Tarkóvski em “Solaris”, o planeta é mais uma representação dos desejos e emoções humanas do que propriamente dito de um planeta real e concreto. Seria como retirar a essência espiritual do filme, considerá-lo como um filme sobre o apocalipse da mesma forma que o seria dizer que “Solaris” é um filme de ficção científica.

Mais do que o fim do mundo, o filme fala sobre os seres humanos.

Sobre o pessimismo do filme é interessante destacar que Justine, em momento próximo ao fim diz que sabia que o mundo iria acabar, que a vida na terra é má, que estamos sozinhos no universo, e ninguém sentirá nossa falta. Quando Claire pergunta como ela poderia saber disso, ela responde “678”,  o número de feijões contidos em uma garrafa na recepção da festa de casamento como jogo para os convidados adivinharem e que ninguém o fizera, nem Justine soubera do resultado. No entanto ela diz o número para o assombro de Claire. Essas certezas apenas intensificam a densidade do tema e sua forma de abordagem, pois é certo que para Lars von Trier não existe muito que importe nessa terra, ao menos não algo humano, e talvez o que melhor reflita isso seja a personalidade de todos os personagens, principalmente os masculinos.

Fotográfia do chileno Manuel Alberto Claro é destaque no filme.

Falar dos aspectos técnicos de Melancolia tomaria muitas outras páginas, então serei breve. A fotografia é simplesmente um deslumbre. Embora seja digital, atinge tamanha perfeição que parece ter sido gravado em película por um ter uma imagem tão apurada e uma direção de arte tão incrível. Alguns irão se queixar da câmera de von Trier, mas isso já é estilo e marca registrada do diretor desde que executava seus termos do Dogma 95 *. Melancolia nunca irá agradar o grande público, mas ele não foi feito para isso, e todavia, ao meu ver,  é uma das grandes obras-primas contemporâneas da sétima arte.

*Gabriel Dominato é graduando em direito no Centro Universitário de Maringá e é redator do blog Avant, Cinema!

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Este post tem 11 comentários

  1. Author Image

    Obrigado, Henry. Fico feliz que tenha gostado. Não sei se já conhece a RUA, mas existem várias outras excelentes análises no Plano Detalhe, dê uma olhada. Abraços!

  2. Author Image
    Veronica

    Gostei muito do que escreveu. Tenho um blog em que falo de filmes, escrevi sobre Melancolia e depois que li seu texto senti que o que escrevi foi tão superficial… Rs!
    Indiquei seu texto lá: http://eoqueeupensodosfilmes.blogspot.com/

  3. Author Image
    Pablo Pacheco

    Logo que o filme terminou eu fiquei pensando que teria perdido 2 horas da minha vida, então fiquei tentando achar maneiras de transformá-lo em algo interessante.
    Pensem comigo e me digam se não é possível que no fim das contas, eu possa estar certo e o filme possa ter sido muito mais legal do que imaginei. Aí vão algumas idéias (Contém Spoilers):

    1 – O nome do planeta melancholia seria uma metáfora que a própria Justine criou para aceitar sua depressão. (Se não me engano, ninguém no filme falou o nome do planeta)

    2 – Em decorrência do numero 1, o planeta melancholia realmente nem existiu. Era tudo consequencia da ilusão e metáfora de Justine para mostrar que ela iria morrer e matar a todos que ela amava (irmã e sobrinho) com sua depressão.

    2.A – O único momento no filme em que o planeta é discutido publicamente é no início do filme em que Justine se questiona sobre um ponto estranho no céu. Indagação que é respondida por seu cunhado, afirmando ser a estrela Antares, da constelação de Escorpião. Nada de planeta destrutivo, ainda mais um que teria um nome desses)

    2.B – Das vezes que a irmã de Christine procurava sobre Melancholia na internet, ela procurava na verdade sobre depressão e a possibilidade da irmã cometer suicídio. Coisa que seu marido achava que não ia acontecer e que os especialistas também achavam que não.

    2.C – No final do filme, o planeta só atinge Justine, sua irmã e sobrinho. O que dá a entender que a destruição só afetou a eles. Destruição essa que pode ser encarada como o suicídio de Justine e essa atitude poderia matar seus entes queridos, assim como eles poderiam perder uma parte de suas vidas.

    3 – Claire, a irmã de Justine, poderia nunca ter existido e ser na verdade a voz na consciência de Justine e como consequência, seu sobrinho seria na verdade seu filho.

    3.A – No casamento, Justine vai ao quarto do sobrinho mais de uma vez

    3.B – Somente Justine fala com seu pai, Justine nem aparece falando com ele

    3.C – Claire só aparece quando Justine está prestes a mudar seu estado mental. Por isso Clair falava tantas vezes que tinha raiva de Justine. Ela tinha raiva de si mesmo.

    3.D – Quando Clair acerta o número de feijões na garrafa, na verdade é porque ela é Justine e foi ela que ouviu isso.

    3.E – Somente Clair ve Justine tomar banho de lua, fato que dá a entender q isso pode nunca ter acontecido. Seria somente uma vontade meio doida que estava em sua mente.

    Coisas estranhas que devem ter alguma explicação (Por favor me ajudem com idéias)

    1 – O cunhado se matou ?? Eu custo a acreditar nisso. Prefiro pensar que ele seria na verdade a personificação do noivo de Justine que a largou e por isso ela preferiu acreditar que ele cometeu suicídio

    2 – Ao anoitecer, quando a familia está em uma mesa a espera do planeta, logo após a cena em que Clair compra o veneno (ou seja lá o que tiver no frasco), tem um momento em que todos estão meio que dormindo com a cabeça pra cima, dando a entender que estão todos mortos! Será que fiquei louco vendo o filme ou alguém também notou ?

    Obrigado. Agora vou ter que parar de escrever pois já estão querendo colocar novamente minha camisa de força.

  4. Author Image
    Fernando Duarte

    Prezado Gabriel….De fato, parabéns pelo texto……O filme, enredo, fotografia, musica, atuações….É um filme inesquecível e desde já constante em qualquer lista dos 5 +, dos 10 +, etc…..A metáfora do filme, para mim, é que a Melancholia – Melancolia – o planeta / a destruição, estão presentes em nós, fazem parte de nós e cabe a nós, a cada um de nós, administrarmos a possibilidade – irreversível – de nossa “destruição”, de nossa morte, de nosso fim. A personagem Justine se mostra, ao final das contas, uma pessoa serena, aceitando seu destino. A organizada e confiante Claire, desaba e “cai” cada vez mais até o fim, mas…digo que seu fim não é de todo ruim, digamos assim, pois termina junto ao filho amado e à sua irmã, de mãos dadas. Acho que isto é um conforto. O personagem John….Como podemos julgá-lo…???…Quem somos nós, cada um de nós, para julgá-lo…???…Egoista…???…Covarde…???….Para mim, seguidor do conceito de que “cada um tem seu jeito de ser” , prefiro acreditar que ele, tão confiante na ciência, afinal capitulou….O fim próximo, para ele, foi algo inaceitável, pelas suas crenças, e preferiu o suicídio (covardia para uns, para mim, movido pelo desespero e / ou pela dor, exige um mínimo de coragem)…Os demais personagens satélites formaram um bom pano de fundo para os personagens principais….Para mim, a abertura do filme é antológica, sem mais palavras para descreve-la.O filme, o tema e seu desenvolvimento, me marcou e me levou a várias reflexões….Embora seja um tanto refratário a análises posteriores (a livros, peças de teatro ou filmes), achei o filme tão instigante que não pude deixar de refletir sobre o mesmo….Depois, por curiosidade, naveguei pela rede…E encontrei esta página, site, blog, o que seja…E depois de ler sua análise, ousei deixar minha opinião. Alguém já disse que – gosto não se discute, lamenta-se – …Talvez esta frase encerre um tanto de mal gosto….Enfim….Prefiro pensar que gosto se discute sim….E ao discutir, cada um de nós….Dá alguma coisa ao outro….E recebe alguma coisa do outro…E assim vamos vivendo…E assim vamos levando….Até o dia que encontremos, cada um de nós….Sua Melancholia…..Abraços & Felicidades….

  5. Author Image
    Caio

    que piração do cara =S

  6. Author Image

    Olá Veronica! A análise filmica é uma coisa que demanda trabalho e experiência, eu acho que meu texto ainda precisaria de muito pra chegar a um bom nível, mas é indo aos poucos que vemos chegando a análises mais rebuscadas e bem feitas. Obrigado!

  7. Author Image

    1 – sim, eles falam o nome do Planeta.

    2 – existe porque não só a Justine o vê, como John e sua irmã também.

    2A – John mente aqui, ele sabe que não é Antares. Uma desconfiança prévia, um medo retido talvez?

    2B – como John poderia saber sobre depressão sendo um astronomo?

    2C – o planeta destrói o mundo todo. Aquela é a perspectiva dos três apenas.

    3 – não vou comentar essa hipótese.

    3A – qual o problema aqui?

    3B – a mãe se refere ao pai, sendo suficiente para termos consciência de sua presença além da visão da Justine.

    3C – Claire muda seu estado mental quando vê o planeta quando está fazendo xixi no jardim, e não tem ninguém por perto.

    3D – não entro nesse mérito.

    3E – somente Claire vê isso porque no momento só tinha ela, John, o filho deles e a Justine, estando os outros dois dormindo.

  8. Author Image
    Andre Fts

    Não entendi assim o filme. Mas achei tua interpretação MUITO interessante. Me deu vontade de rever o filme (já tinha antes na verdade) mas para pensar sobre ela. “Certa” ou não, se é que existe isso na arte, achei bem interessante… Mas, quanto ás coisas dos planetas, achei estranho, acho q o pessoal fala sim… Era algo a rever…
    Abraço!

    http://processosubjetivo.blogspot.com

  9. Author Image
    Mayara Albuquerque

    Bem, eu devo dizer que fiquei um tanto quanto chocada com as ideias de Pablo Pacheco, me parece que ele não assistiu. Parabéns, Gabriel. Marquei a página como favorita, pretendo sempre visita-la. Abraço.

Deixe uma resposta