Música e Organização do Tempo Narrativo em Irreversível

Felipe Hickmann possui graduação em Música – Produção Sonora pela Universidade Federal do Paraná (2005) . Atualmente é Professor da Universidade Federal do Paraná. Tem experiência na área de Artes , com ênfase em Música. Atuando principalmente nos seguintes temas: trilha sonora, cinema, narrativa.

UFPR, Curitiba, 2008

Resumo:
A trilha musical de Irreversível (2002), filme do diretor Gaspar Noé, é tomada aqui como objeto de análise. O objetivo é determinar suas relações e implicações sobre a organização do tempo narrativo da obra, cuja particularidade é a inversão do tempo do discurso em relação à história. É discutida ainda uma possibilidade de expansão do discurso musical original do filme, buscando obter uma relação mais estreita com suas soluções de ordem temporal*.

Palavras-chave: trilha musical, tempo narrativo

1. Introdução: a reversão do discurso como estratégia narrativa

Irreversível (2002), filme do diretor franco-argentino Gaspar Noé, é seguramente uma das obras cinematográficas mais polêmicas já produzidas. Há raros casos de tamanha divergência entre críticas favoráveis e desfavoráveis, de forma que o filme tornou-se quase instantaneamente objeto de controvérsias a partir de sua estréia no festival de Cannes, em 22 de maio de 2002 .

Tal comoção não é injustificada. Irreversível é subversivo simultaneamente sob diversos aspectos diferentes, de forma que tolerá-lo completamente é um exercício improvável. De maior interesse aqui é sua abordagem narrativa, que desemparelha discurso e história ao situá-los em direções contrárias: o início do filme retrata o final do período narrado, enquanto seu final revelará o início do mesmo, organização que põe em evidência o mote que impulsiona a narrativa (“o tempo tudo destrói”) ao projetá-lo em sua dimensão estrutural.

A trilha musical de Irreversível procura evidenciar os efeitos dessa estratégia narrativa, e se apresenta como objeto pertinente a uma discussão detalhada. A análise que se realiza a seguir assume os princípios empregados por Thomas Bangalter, compositor da trilha musical, e procura expandi-los de maneira a gerar uma organização do discurso musical ainda mais firmemente enraizada na estrutura temporal da narrativa. Referencial para esse estudo é a fenomenologia estabelecida e empregada por Gérard Genette tendo em vista a análise do tempo narrativo. Genette (1976) divide a organização do discurso entre problemas de ordem, velocidade e freqüência temporal, e a partir daí introduz conceitos e definições suficientes para mapear com precisão a maior parte dos procedimentos de composição do tempo na narrativa literária e fílmica.

A estratégia narrativa de Irreversível, embora incomum, não chega a ser inédita. Apenas um ano antes de seu lançamento, Amnésia (2001)** já empregava o mesmo recurso discursivo. Também naquele caso, o discurso invertido era uma metáfora de um argumento contido na própria história: um homem que, devido a uma lesão cerebral decorrente de um acidente, não era capaz de armazenar novas memórias. Por conta disso, seu passado era uma incógnita intransponível. Sua obsessão era desvendá-lo, tomando como ponto de partida a única parcela de tempo que era capaz de reter: um presente que se consumia a cada instante.

Irreversível conta uma história simples: um casal de classe média-alta (Marcus e Alex, representados por Vincent Cassel e Monica Belucci), acompanhado por um amigo em comum (Pierre, ex-namorado de Alex, representado por Albert Dupontel), vai a uma festa de onde Alex resolve sair mais cedo, incomodada com os excessos do namorado. Ao atravessar um túnel subterrâneo sob uma avenida, é estuprada e violentada, até o estado de coma e a desfiguração completa, por um homem conhecido como Le Tenia, que será perseguido por Marcus e Pierre até ser encontrado em um clube de sadomasoquismo, o Rectum.

Lá, Pierre (em defesa de Marcus, que acabara de ter o braço quebrado) destrói com sucessivos golpes de um extintor de incêndio a cabeça de um homem que supunha ser o estuprador, e ambos acabam presos. Toda a ação transcorre em um intervalo de poucas horas. O que é importante observar, aqui, é que essa história não apresentaria qualquer interesse em especial se sua cronologia original fosse preservada. O resultado seria uma vingança motivada por um ato de covardia – nada que fuja do senso comum do circuito cinematográfico comercial.

A reversão do discurso, no entanto, confere à história um potencial dramático radicalmente amplificado. A extrema violência da cena em que a cabeça de um homem é destruída por um extintor de incêndio (projetada sem cortes), não possui naquele momento qualquer justificativa plausível: trata-se da segunda cena do filme, o ponto culminante de um plano-sequência claustrofóbico em que uma câmera gira alucinadamente enquanto atravessa o interior do clube, onde se passa todo tipo de depravação. O impacto emocional dessa cena (que só não é a primeira do filme por ser precedida de uma conversa desconexa entre dois personagens que não mais retornam) é assustador, e, se não é permitida ao espectador qualquer conclusão, a indagação a que é induzido é muito clara: que tipo de acontecimento poderia ter por conseqüência em um evento de tamanha brutalidade?

O argumento da narrativa, o problema a ser solucionado, passa a ser, então, a revelação de um evento ou contexto cujo resultado já se conhece. Daí para frente, os acontecimentos anteriores vão sendo projetados um após o outro, linearmente, em direção ao passado. Do ponto de vista de ordem temporal, empregando-se a fenomenologia de Genette (1976), o que se observa é uma série de elipses voltadas para trás no tempo, as chamadas analepses internas (já que cada uma delas está inteiramente contida no intervalo de tempo onde se situa a história completa) homodiegéticas (já que se reportam ao mesmo conteúdo diegético da narrativa primeira).

A história de Irreversível é recortada em 14 fragmentos temporais apresentados seqüencialmente, do último até o primeiro. Uma redução possível dessa estrutura, retomando-se ainda a prática de Genette, seria a seguinte: N M L K J I H G F E D C B A. Cada letra representa um fragmento da história, enquanto a ordem do alfabeto indica sua evolução cronológica. A leitura da esquerda para a direita indica a seqüência de apresentação dos eventos no discurso.

Também do ponto de vista da duração temporal, Irreversível assume uma postura peculiar: há uma quantidade incomum de tomadas gravadas em plano-seqüência, que vem a ser, em cinema, o recurso mais simples para a reprodução da velocidade narrativa que Genette denomina “cena”: aquela em que a duração do discurso é precisamente a mesma da história, sem que haja qualquer sugestão de retardo ou aceleração de um em relação ao outro. Ao menos duas cenas do filme têm o efeito profundamente realçado pelo uso dessa velocidade narrativa: a já mencionada morte de um homem golpeado por um extintor de incêndio e a cena do estupro de Alex.

O fato de que a duração da projeção corresponde precisamente à duração real dos acontecimentos induz a um efeito de realismo extremo, suficiente para provocar inúmeros desconfortos e abandonos das salas de cinema à época em que Irreversível esteve em cartaz*** . Martin (2003, p.231) assinala que a maneira mais comum de se fazer sentir a duração, de representá-la, concretizá-la, é justamente filmá-la integralmente. Não seria correto, no entanto, dizer que a experiência do espectador, nesses casos, é a do tempo cronológico. É certo que o plano-seqüência obriga o espectador à experiência integral do tempo, e essa experiência, em cinema, pode resultar tediosa se não houver argumento ou interesse na cena que a justifique – Martin (2003, p.236) sugere até mesmo que “(…) na tela, toda ação parece, considerando um tempo igual, ser mais longa do que na realidade”.

Em Irreversível, no entanto, não é dada ao espectador a alternativa de refugiar-se no tédio ou no desinteresse: a violência das imagens impõe-se à sua consciência com vigor inexorável, e se a impressão do espectador é de que o tempo passa muito lentamente, não se pode dizer que tal impressão resulte do tédio; antes disso, resulta de seu desejo de que a angústia que sente, por extensão e cumplicidade em relação aos personagens, termine o quanto antes.

Por fim, em se tratando das questões de freqüência, a moral professada pelo filme (de que até mesmo acontecimentos banais podem provocar conseqüências em cadeia cujos resultados não podem ser controlados, tampouco revertidos – “o tempo tudo destrói”) é fielmente reproduzida em sua temporalidade. A narrativa é inteiramente singulativa, ou seja, não existe qualquer tipo de repetição: acontecimentos que ocorreram uma única vez somente são reproduzidos uma vez. Desse ponto de vista, a forma da narrativa reafirma seu conteúdo: a ausência de repetições é uma metáfora daquilo que é irreversível, daquilo que não pode oferecer uma segunda oportunidade.

2. Trilha musical e direção do discurso: dois pólos estéticos opostos

A música é um recurso narrativo empregado com parcimônia em Irreversível. O autor da trilha musical, Thomas Bangalter, é compositor e produtor de música eletrônica house, conhecido principalmente por seu trabalho como integrante do duo Daft Punk. A estética eletrônica, de fato, predomina em Irreversível do início até que o Allegretto da 7a. Sinfonia de Beethoven irrompa nos minutos finais, já inserido em um contexto narrativo completamente diferente.

Tanto em um caso quanto em outro, é flagrante uma abordagem formal que integra a música a um conteúdo narrativo localizado, de curto alcance. Seu emprego como componente do discurso audiovisual é claramente priorizado em relação a qualquer preocupação com a estruturação musical em si, de forma que, em alguns momentos de Irreversível, determinar se a dimensão sonora pode ou não ser considerada música é meramente uma questão de posicionamento estético. Em grande parte do filme simplesmente não há música, e por vezes uma função narrativa normalmente delegada à música – a intensificação da resposta emocional provocada por certas cenas – é desempenhada unicamente pelos efeitos sonoros.

A partir dos 29’50” de projeção, por exemplo, Marcus e Pierre procuram por Guillermo Nunez, um travesti, em busca do estuprador de Alex. Assim que o encontra, Marcus, completamente transtornado, passa a abordá-lo com violência crescente, elevando rapidamente o nível de tensão da cena. Não há música que sublinhe essa curva ascendente de tensão, como poderia ser considerado convencional. No entanto, o intenso ruído provocado pela passagem de um trem próximo (não mostrado na imagem) responde perfeitamente à intensificação emocional desejada, elevando o nível de tensão do espectador por meio da saturação de sua escuta.

Efeito semelhante é o que se observa a partir de 12’17”, a angustiante cena dentro do Rectum. A montagem dessa tomada foi realizada com o objetivo deliberado de provocar desconforto*. A câmera gira desordenadamente enquanto atravessa diversas salas da boate, onde Marcus e Pierre abordam freqüentadores à procura de Le Tenia e se deparam com todo tipo de depravação.

A fotografia é muito escura e avermelhada, o que em combinação com os movimentos da câmera impede a identificação de formas e de grande parte da própria ação em curso, desorientando o espectador. A música é extremamente incômoda e de volume ensurdecedor. Trata-se da repetição exaustiva de um som muito grave e áspero, ainda que afinado, semelhante a certos alarmes de grandes embarcações ou submarinos.

A partir de 15’10”, soma-se ainda a música diegética da boate, eletrônica drum’n bass, com pulsos fortes e andamento rápido. O resultado é a composição de um ambiente ficcional caótico, onde predomina uma intensa sensação de claustrofobia. Aqui, a música é empregada da mesma maneira que o trem da tomada G. Do ponto de vista funcional, é um som diegético (ao menos parcialmente) cumprindo um objetivo expressivo: induzir no espectador uma resposta emocional específica.

Esse tipo de uso da música vem reafirmar princípios que são amplamente aceitos entre teóricos e produtores de som e música para filmes. A eficiência da música em um contexto audiovisual está muito mais relacionada ao emprego de uma gestualidade que, em conjunto com os demais elementos da narrativa, resulte em uma mensagem coerente, do que ao conteúdo do discurso musical quando isolado. Por conta disso, aspectos do material musical cuja assimilação é mais rápida, como dinâmica, articulações e andamento, pesam mais no resultado narrativo do que estruturas pertinentes a uma sintaxe musical e que, portanto, levam um certo tempo para se articular, como a harmonia ou a própria forma. Ney Carrasco resume a questão da seguinte maneira:

“(…) em determinadas situações em uma trilha musical, sequer é necessário que exista música, no sentido estrito do termo. Usamos recursos musicais, mas sem que eles sejam necessariamente música. Em determinada situação, pode ser que a opção mais eficiente para a composição audiovisual seja a inserção de uma simples nota pedal nos contrabaixos. Uma inserção desse tipo não pode sequer ser classificada como música. É uma sonoridade que tem sua origem no vocabulário musical, mas não chega a ser construída como música.” (Carrasco 2005, p.50)

A função do compositor de uma trilha musical muitas vezes pode não passar pela composição de música propriamente, mas sim de um componente do discurso fílmico que atuará pela via sonora. Desse ponto de vista, o compositor também é narrador da história, assim como o roteirista ou o diretor. O que diferencia o ofício em si é que o domínio do vocabulário sonoro é de responsabilidade do compositor, e não do cineasta. Bangalter parece estar plenamente consciente disso quando opta, na cena recém descrita, pelo uso de uma sonoridade simplória em repetição exaustiva. Esse tipo de estética, na verdade, não chega a ser estranha à música eletrônica, especialmente àquela difundida no tipo de ambiente em questão. Por conta disso, o compositor consegue obter através da trilha musical dois resultados narrativos simultâneos: caracteriza e confere verossimilhança ao espaço representado, ao mesmo tempo em que desperta na platéia uma resposta emocional específica.

As peculiaridades da trilha sonora de Irreversível descritas até aqui, embora influentes em seu conteúdo narrativo, mantêm pouca relação com o aspecto especificamente temporal da narrativa, objeto maior da análise em curso. A essa altura, se faz necessário um olhar atento a essas questões. Do ponto de vista da articulação narrativa, o momento central a uma construção como o roteiro de Irreversível é aquele em que se estabelece a analepse (a elipse, ou “salto”, em direção ao passado). As sucessivas retrospecções distanciam o filme da perspectiva de uma narrativa clássica, em que analepses servem à recuperação ou esclarecimento de eventos específicos, e são em algum momento compensadas por prolepses (o equivalente “futuro” das analepses) que retornam o discurso ao presente, à “narrativa primeira”.

Se o objetivo aqui é a busca de indícios de música que apresente especial atenção a esse tipo de temporalidade narrativa, o momento da transferência temporal parece um bom ponto de partida. Em Irreversível, boa parte das 13 analepses do roteiro é sinalizada pelo som. O ruído empregado para tal fim é de um zumbido elétrico agudo, que logo a 12’ de projeção aparecia associado a uma lâmpada do lado de fora do Rectum, e que na continuação do filme ressurge sempre associado a transferências de tempo.

O som, no entanto, não é elemento indispensável à percepção das elipses. Há informações visuais que reafirmam a transferência de tempo (como o movimento circular da câmera), e mesmo essas “pistas” se tornam dispensáveis após um certo número de repetições. A rigor, a própria sucessão das analepses é suficiente para sugerir que o discurso se move para trás. De maior valor, aqui, seria algum indício de participação da música em um nível estrutural da narrativa – participação não restrita a um âmbito tão localizado, nem relacionada a uma funcionalidade tão específica. Quando observada a distância suficiente, a música de Irreversível revela esse cuidado. Em primeiro lugar, ao se analisar as duas extremidades do discurso (e da história), fica claro que a orientação da trilha musical se modifica radicalmente. A sonoridade áspera e simplória do início do filme contrasta com o Allegretto da 7a Sinfonia de Beethoven, um “tema com variações” dotado de amplo uso de polifonia e recursos de dinâmica e orquestração, além de acesso a uma escala dramática extensa. Em relação à narrativa invertida de Irreversível, pode-se afirmar que o momento de máxima aspereza da trilha musical, alinhado à sua face eletrônica, coincide com o clímax da história (início do discurso), enquanto o ápice dramático do uso da orquestra coincide com o clímax do discurso (início da história):

TEMPO DO DISCURSO

CLÍMAX ORQUESTRAL

Assassinato no Rectum | Estupro de Alex | Alex grávida
TEMPO DA HISTÓRIA

CLÍMAX ELETRÔNICO

Figura 1: Pólos estéticos da trilha musical em Irreversível.

No tempo da história, o clímax é claramente o início do filme. É ali que a vingança se concretiza brutalmente, e o conflito gerado pelo estupro é resolvido com semelhante medida de violência. Em função da organização invertida da narrativa, porém, o clímax do discurso (e, por conseqüência, do filme) se situa em seu final – portanto, no início da história. Apenas aí o espectador percebe que, antes de uma seqüência de fatalidades cujo desfecho será colérico, Marcus e Alex eram um casal comum, íntimo, de relacionamento pacífico e apaixonado, em torno do qual pairava uma aura de boa ventura.

A carga dramática desse fato é extremamente acentuada pela memória, ainda presente no espectador, do homem ensandecido que Marcus se tornou após o estupro. Pior ainda: Marcus sai de casa para comprar vinho e Alex, sozinha, faz um exame de gravidez que resulta positivo. O espectador sabe que Marcus, o pai, sequer chegou a saber disso. Finalmente, o ápice dramático do filme é atingido quando Alex aparece sentada no gramado de um parque, lendo um livro sobre premonições (em referência imediata à moral do filme).

A força dramática do Allegro de Beethoven cresce sem parar enquanto a câmera desloca-se de Alex e mostra, do alto, crianças correndo em torno de um irrigador de grama, que gira. A própria câmera gira. E a impressão que se apodera do espectador é de que o Allegretto de Beethoven também gira: conseqüência de sua forma em tema e variações, em que o tema se reconecta continuamente ao próprio início enquanto as diversas vozes se repetem e sobrepõem uma após a outra, fazendo a intensidade emocional da cena crescer em uma espiral sem fim. De fato, em seguida a câmera abandona o eixo e passa a girar em direção ao céu, mergulhando no espaço em meio às estrelas. O espaço sonoro é tomado por uma profusão de sons ruidosos, desde a rotação de um projetor até algumas notas esparsas de uma orquestra de cordas.

Por fim, com a tela já escura, resta apenas o som de um relógio marcando a passagem dos segundos quando ressurge em letras grandes e brancas o mote do filme: “o tempo tudo destrói”. Quase desnecessário dizer, o impacto emocional de uma experiência audiovisual de tamanha intensidade, somada à gravidade da memória que o espectador acumula, à saturação de referências (crianças correndo – a gravidez que não se concretizará; o livro e os movimentos circulares – associáveis a conceitos como o irreversível, o inevitável, o pré-destinado), é extraordinário.

3. Rumo ao interior da narrativa: uma proposta de expansão

Antes de observar mais atentamente os reflexos do tempo narrativo de Irreversível sobre sua trilha musical, é preciso considerar que a música, por princípio, não pode evitar exprimir a passagem do tempo, simplesmente porque se projetar sobre ele é condição para que aconteça. Desse ponto de vista, mesmo em um filme hipotético em que fosse inerte o suficiente para não se sensibilizar com nada, a música ainda revelaria a duração apenas por existir. Na tradição do cinema sonoro, porém, a trilha musical vai muito além disso; quando se relaciona a uma transformação qualquer da diegese, já está refletindo a temporalidade narrativa ao evidenciar que em um dado instante o conteúdo narrado é diferente daquele do instante anterior.

Em Irreversível, a principal particularidade da narrativa é a direção reversa do discurso. Quando se fala na relação da música com o tempo narrativo, portanto, o objeto é ainda mais restrito: a referência é à maneira como a trilha musical interage especificamente com os problemas de ordem temporal da narrativa. As abordagens que caracterizam as duas extremidades do discurso/história, ainda que muito diferentes, poderiam ser entendidas como meramente pontuais, limitadas à caracterização emocional de seus respectivos contextos diegéticos, se não se estendesse o olhar para o interior do discurso: somente aí cabe buscar indícios de um diálogo do discurso musical com a estrutura temporal da narrativa que vá além do que já lhe é inerente. A esse respeito, Bergson aponta:

“(…) consideremos, por exemplo, o movimento no espaço. Posso, ao longo de todo este movimento, representar-me paradas possíveis: é o que chamo de posições do móvel ou de pontos pelos quais o móvel passa. Mas com estas posições, mesmo em número infinito, não faria o movimento” (apud Seincman 2001, p.29-30).

Esse pensamento demonstra a inviabilidade de se entender o tempo senão como processo. A identificação de dois pólos estéticos afastados da trilha musical, um em cada extremidade do filme, não diz nada a respeito da duração que lhes unifica ao convertê-los em instantes de um mesmo tempo que flui. É para verificar se esses fragmentos de música, mesmo isolados por quase duas horas de intervalo, compartilham um fluxo comum ao tempo da narrativa, que a atenção precisa se voltar ao espaço entre eles.

Uma primeira observação diz respeito à face eletrônica da trilha musical: sua predominância não se restringe ao início do filme (clímax da história), mas se estende ao longo de quase toda a projeção. Seu ímpeto expressivo, no entanto, se retrai do início do filme até cerca de 30 minutos de projeção, quando a música deixa de existir e o filme se estende por um longo período apenas com ruídos de cena. O relativo silêncio será interrompido apenas pelo som diegético, também de música eletrônica, da festa retratada a cerca de 54 minutos, para em seguida retornar e não mais ser interrompido até os últimos 15 minutos do filme, quando um aparelho de som no quarto de Marcus e Alex toca uma canção romântica. Depois disso, o Allegretto da 7a. Sinfonia encerra a narrativa e é um dos raros momentos em que há música não-diegética em Irreversível.

Não parece possível deduzir dessa análise uma organização da trilha musical que se relacione, em qualquer instância, com a estrutura do tempo narrativo em Irreversível. Seus contornos, no entanto, permitem projetar hipóteses de como realizá-lo – ainda que o próprio filme opte por mantê-las em suspenso. As coincidências entre a culminância dramática da música eletrônica e do tempo narrado (da história), e da música orquestrada e do tempo da narração (do discurso), sugerem que se estenda ambas as relações, aqui posicionadas apenas nas extremidades, por sobre o centro da narrativa. Caso Irreversível tivesse optado por investir nessa perspectiva, o resultado seria uma expansão da dimensão orquestral da trilha na medida em que avança o tempo discurso, e uma expansão proporcional da dimensão eletrônica conforme avança o tempo da história. Ora, é sabido que o tempo da história, nesse caso, está disposto ao contrário. Por conta disso, a música eletrônica estaria na verdade recuando com o passar do filme e o retroceder da história:

TEMPO DO DISCURSO
(proporção da música orquestral)
TEMPO DA HISTÓRIA
(proporção da música eletrônica)

Como o avanço de uma tendência se encontra na medida do recuo da outra, o conteúdo estético da trilha musical se torna volúvel: cada instante do filme relaciona os dois pólos em medidas diferentes e, por conseqüência, tanto o avanço do discurso quanto o recuo da história são representados integralmente.

Uma estrutura dessa espécie transformaria a maneira como o espectador compreende e interpreta o filme. O clímax da história de Irreversível coincide com o assassinato do suposto estuprador por Pierre. Esse evento se situa no começo do filme, e a partir daí o nível de tensão da história recua na medida em que ela retrocede. Quando, junto ao final da projeção, a história chega ao ponto de partida (onde ainda não há conflito a ser solucionado), a face eletrônica da trilha musical já teria decrescido até se recolher por completo. A proporção direta entre o nível de tensão da história e a presença de música eletrônica individualizaria ao menos uma conotação: o caos que predomina no clube sadomasoquista Rectum corresponderia à estética ríspida desse tipo de música. O transcorrer do filme viria confirmar essa relação, ao diluir a proporção de música eletrônica conforme o conteúdo diegético se suaviza.

Por extensão dessa lógica, o pólo orquestral da trilha poderia se ver reforçado na medida em que a história recua e o ambiente emocional se abranda, até finalmente encontrar na serenidade das últimas cenas sua contrapartida ficcional. Esse processo, no entanto, sofreria interferência mais direta e decisiva da memória do espectador do que aquele atravessado pela face eletrônica. Ainda que a conclusão da história seja projetada logo no início do filme, é apenas no final que o discurso atinge o ponto culminante de uma curva emocional ascendente e acentuada. Somente aí o espectador compreende as dimensões da fatalidade que acomete os personagens – não ao conhecer suas conseqüências, que são dadas logo a princípio, mas ao identificar suas causas. As conseqüências, no entanto, integram a experiência recente do espectador, e não há como ignorá-las ou eliminá-las da memória.

Sabendo disso, nem o mais lânguido dos espectadores seria capaz de relacionar o Allegretto da 7a Sinfonia de Beethoven a uma atmosfera emocional tranqüila: ainda que o conteúdo diegético seja sereno, a organização do discurso não é – justamente porque conta com a memória do espectador para presentificar a tragédia que, no tempo da história, ainda é incipiente. Se o uso de música orquestral fosse posto em paralelo à passagem do tempo no discurso, compartilharia da mesma carga emocional acumulada por ele – processo cuja culminação aponta justamente para o Allegretto de Beethoven, nos instantes finais do filme.

Por fim, é necessário esclarecer que a hipótese levantada aqui se baseia em uma circunstância absolutamente idealizada, porque indiferente à miríade de problemas de funcionalidade que resultaria de uma trilha musical que soasse ininterruptamente – circunstância que não se aplica sequer à ópera, tampouco ao cinema. Essa licença se permite em função do objeto da análise, que não se refere à funcionalidade da música de cinema, mas à sua relação com a organização do tempo narrativo.

A análise realizada aqui representa não mais do que um ponto de partida: apenas na produção da última década, há inúmeros exemplos de filmes cuja abordagem do tempo narrativo foge ao convencional e sugere diferentes interações da trilha musical com o tempo discurso. Buscá-las, compreendê-las e aplicá-las é um ato de pertinência, dada a vocação inerente à música de ser, por sua própria essência, uma forma de manifestação sensível do tempo.

*http://cannes.juryoecumenique.org/spip.php?article291. O site oficial de Irreversível é o de sua distribuidora, http://www.marsfilms.com/
**Alguns críticos lembram ainda Traição, filme de 1983 (http://www.cinemaemcena.com.br/cinemacena/crit_editor_filme.asp?cod=2249), e um episódio do seriado norte-americano Seinfeld (http://www.cinedie.com/irreversible.htm).
***Procedimento semelhante, visando o mesmo efeito, pode ser observado em A Bruxa de Blair (1999), que emprega a mesma velocidade narrativa (da cena) e recursos de montagem semelhantes (planos-sequência extensos, nesse caso em movimento).
*Até cerca de 30 minutos de projeção, há um constante ruído de baixa freqüência (28Hz) cujo objetivo declarado é provocar náuseas (http://www.imdb.com/title/tt0290673/trivia).


Bibliografia
Livros:
CARRASCO, Ney. O Compositor Camaleão. In: Anais do 1º Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais. Curitiba: Deartes, 2005.
GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega Universidade, 1976.
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.
SEINCMAN, Eduardo. Do Tempo Musical. São Paulo: Via Lettera, 2001.

Filmes:
IRREVERSÍVEL. Direção: Gaspar Noé. Produção: Christophe Rossignon. Roteiro: Gaspar Noé. Música: Thomas Bangalter. Intérpretes: Monica Bellucci, Vincent Cassel, Albert Dupontel, Philippe Nahon e outros. 99 min. França, 2002.
AMNÉSIA. Direção: Christopher Nolan. Produção: Jennifer Todd e Suzanne Todd. Roteiro: Christopher Nolan. Música: David Julyan. Intérpretes: Guy Pearce, Carrie-Anne Moss, Joe Pantoliano, Mark Boone Junior e outros. 120 min. EUA, 2001.
A BRUXA DE BLAIR. Direção e Roteiro: Daniel Myrick e Eduardo Sánchez. Intérpretes: Heather Donahue, Joshua Leonard e Michael C. Williams. 86 min. EUA, 1999.

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Este post tem 3 comentários

  1. Author Image
    Flavia

    Olá. Parece brincadeira, mas decidi fazer um trabalho acadêmico sobre esse mesmo assunto, sobre o mesmo filme. Gostei das dicas aqui impressas. Sua percepção está bem clara.
    Parabéns!

  2. Author Image
    Felipe Hickmann

     Obrigado, Flávia! Demorei tanto pra ver seu comentário que o trabalho já deve até estar pronto!
    Um abraço!

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